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'Realidade paralela': como é viver na Nova Zelândia durante a pandemia

Emanuele Pscheidt pôde comemorar os 28 anos em julho de 2020 cercada de amigos na Nova Zelândia. De volta ao Brasil, ela não tem esperança de fazer festa em 2021 - Emanuele Pscheidt/Acervo pessoal
Emanuele Pscheidt pôde comemorar os 28 anos em julho de 2020 cercada de amigos na Nova Zelândia. De volta ao Brasil, ela não tem esperança de fazer festa em 2021 Imagem: Emanuele Pscheidt/Acervo pessoal

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

07/03/2021 04h00

Em 6 de julho de 2020, a advogada Emanuele Pscheidt comemorou seu aniversário de 28 anos cercada de amigos em um restaurante de comida brasileira. Os parabéns puderam ser em forma de abraço, e depois rolou até uma festa cheia. "Já não tinha nenhum clima de pandemia", lembra.

Antes que você comece a julgá-la por ter se aglomerado, vale avisar que Pscheidt morava na Nova Zelândia até novembro do ano passado. No dia da festa, o país todo registrou apenas dois novos casos de covid-19. Já se passavam dois meses com apenas uma morte, e junho inteiro havia contabilizado menos de 30 casos no país. Era vida normal.

"Lá teve um lockdown que foi muito intenso, muito restrito, mas foi uma coisa temporária. Depois, a vida voltou ao normal e não existia mais esse medo [de contrair o vírus]. Nem máscara se usa mais lá, entende? Eu fui viver essa questão de pandemia mesmo aqui no Brasil", conta a advogada, que fez intercâmbio entre março de 2019 e novembro de 2020, quando voltou ao Brasil porque não pôde renovar o visto.

De volta à cidade de Rio Negrinho, no interior de Santa Catarina, ela vivencia o caos e quase colapso do sistema de saúde brasileiro sem nenhuma esperança de comemorar o aniversário de 29 anos cercada de gente. "Eu vejo meus amigos lá na Nova Zelândia se reunindo, vida normal. Vão para o lago, vão para festa. É como viver numa realidade paralela, mesmo."

Liderança e união

A Nova Zelândia é considerada um dos maiores exemplos de combate à pandemia, ao ter controlado o número de casos rapidamente quando comparado com o resto do mundo. Claro, o país é uma ilha e tem pouco menos de 5 milhões de habitantes, o que facilita o controle e o isolamento. Mas, além disso, a primeira-ministra Jacinda Arden costuma levar grande parte do crédito pela condução do enfrentamento à pandemia.

O país adotou medidas extremamente restritivas, como lockdown completo a partir de 25 de março, quando ainda havia apenas 102 casos. Durante mais de 40 dias, somente serviços essenciais seguiram abertos, e até mesmo a ida ao supermercado era controlada para que duas pessoas da mesma casa não entrassem juntas, reduzindo aglomerações em espaços fechados.

Até o início de março de 2021, 2.389 kiwis — apelido dos neozelandeses — haviam se infectado, e 26 morreram. As fronteiras para o exterior continuam fechadas; só entra e sai quem é residente, e é preciso arcar com os custos de uma quarentena de 14 dias em um hotel na volta. Novos casos são motivo para lockdown imediato.

A mineira Claudia Pereira, agente educacional e dona da agência de intercâmbio e imigração Brazil Kiwi, mora em Auckland, uma das maiores cidades da Nova Zelândia, desde 2007.

No fim de fevereiro, ela foi passear em um shopping center e, poucos dias depois, a cidade entrou em alerta nível 3 após a detecção de um novo caso de covid. Pânico: foi revelado que a infectada estava no shopping no mesmo dia em que Pereira foi passear. Só de saber que esteve no mesmo ambiente, a brasileira se isolou completamente em casa com as duas filhas, para não colocar mais ninguém em risco. "Felizmente o período de incubação já passou e não tivemos nada", diz, aliviada.

Enquanto isso, aqui no Brasil, a família de Pereira mora na pequena cidade de Lavras, no sul de Minas. São aproximadamente 100 mil habitantes, com mais de 1.700 casos confirmados e 48 mortes por covid até o início de março.

Segundo a mineira, o senso de comunidade fez muita diferença no combate à pandemia no país. "Apesar do isolamento total, foi uma união muito grande. Foi muito bonito assistir na Nova Zelândia a essa conscientização da necessidade do isolamento. Isso foi fantástico. As pessoas vestiram a camisa e falaram: vamos fazer isso juntos."

Claudia Pereira se isolou em casa com as duas filhas ao saber que esteve no mesmo shopping que uma mulher infectada com o novo coronavírus. A cidade de Auckland entrou em lockdown em seguida - Claudia Pereira/Acervo pessoal - Claudia Pereira/Acervo pessoal
Claudia Pereira se isolou em casa com as duas filhas ao saber que esteve no mesmo shopping que uma mulher infectada com o novo coronavírus. A cidade de Auckland entrou em lockdown em seguida
Imagem: Claudia Pereira/Acervo pessoal

Ivan Gomes do Vale, curitibano que mora com outros três brasileiros na cidade de Queenstown — capital dos esportes radicais — desde 2015, também destaca a união da população no combate ao vírus. Ele conta com surpresa que diariamente, durante os mais de 40 dias de lockdown inicial, a primeira-ministra fazia um pronunciamento na TV junto do ministro da saúde. Vale relata que os discursos eram informativos, diretos, traziam instruções claras de como agir e um apelo ao senso de comunidade: "Tivemos tantos casos, tantos recuperados, vamos fazer isso e aquilo, esperamos que os números cresçam por mais tantos dias até termos resultados", relata.

Ele lembra que saía para correr e percebia que as pessoas faziam exatamente o que havia sido instruído por Arden: atravessavam a rua para não cruzar com outras pessoas na calçada. "Era tipo Curitiba, que você passa por alguém e nem olha na cara", brinca.

"Dali a pouco os números começaram a diminuir e os caras seguiam na TV: 'Vamos aí, está dando certo, somos um exército de 5 milhões, vocês estão fazendo tudo certo, o que vocês têm que fazer agora é ficar em casa'. Não tem como não respeitar. Ao mesmo tempo, você está em casa e está caindo dinheiro na tua conta, já que você não pode trabalhar", diz sobre os auxílios do governo à população. Vale é engenheiro civil e trabalha como técnico de manutenção em um hotel na cidade turística. Sem clientes internacionais, o hotel viu a ocupação cair para 8 a 10% do total, segundo ele.

Pereira tem uma visão crítica quanto à ajuda financeira. Para ela, o dinheiro foi distribuído indiscriminadamente, inclusive para quem não necessitava dessa ajuda. "Eu não gostaria de entrar em termos políticos, porque não sou partidária de lado nenhum. Mas só fazendo um adendo: a primeira-ministra é uma mulher fantástica, eu tenho uma admiração por ela, mas existem atos do partido liberal — que é como se fosse o PT no Brasil — que é de 'vamos dar'. Ela criou uma cultura de tirar dinheiro que poderia ser usado para outras coisas, para subsidiar empresas, pessoas que perderam o emprego e tudo mais, por um período muito longo", opina.

Ivan Gomes do Vale (no centro da foto) usou máscara pela primeira vez em dezembro, quando pegou um avião para visitar os irmãos e a mãe (todos na foto) no fim do ano - Ivan Gomes do Vale/Acervo pessoal - Ivan Gomes do Vale/Acervo pessoal
Ivan Gomes do Vale (no centro da foto) usou máscara pela primeira vez em dezembro, quando pegou um avião para visitar os irmãos e a mãe (todos na foto) no fim do ano
Imagem: Ivan Gomes do Vale/Acervo pessoal

Saudades

Volta e meia, Pscheidt chega a algum lugar em Rio Negrinho e percebe que esqueceu de colocar a máscara. Isso porque o número de casos foi tão pequeno na Nova Zelândia que os únicos lugares onde a proteção é obrigatória são no transporte público e em voos. "Eu tive que usar minha primeira máscara para ir ver meus irmãos, no ano novo. Foi a primeira vez que fui obrigado a usar máscara: dentro do avião", conta Vale.

Hoje, ele brinca que está vivendo o "velho normal". Shows, bares, restaurantes, tudo voltou a funcionar. Mesmo assim, ainda fica a preocupação com a família e os amigos que moram no Brasil. "Essa é a pior parte, na verdade. A gente está aqui, vivendo, aproveitando, de certa forma também correndo atrás do sonho, e meus pais lá, morando sozinhos", diz. "Em muitos momentos eu pensei em voltar por causa disso, para ajudar, ficar mais perto. Mas eles mesmos falam que é pra ficar aqui, que não vale a pena."

Quanto a isso, o engenheiro teve sorte, de certa forma. A mãe dele chegou à Nova Zelândia no fim de 2019 com passagem de volta comprada para 1° de maio de 2020. A irmã de Vale tem visto de residente e teve um bebê, o que garantiu à mãe um visto de avó, que permite visitas estendidas para ajudar a cuidar dos netinhos.

Com o lockdown, a mãe de Vale não pôde voltar ao Brasil em maio, e a visita acabou durando dez meses. Protegida da pandemia na Nova Zelândia, ela se acostumou com a sensação de segurança, que se esvaiu rapidamente antes mesmo de chegar ao Brasil. "Foi assustador na viagem já, quando ela saiu de Auckland. Ela ficou abismada quando pegou a primeira conexão com vários brasileiros — a galera sem máscara, fazendo rodinha, conversando junto no voo, sem se cuidar. Ela ficou horrorizada", conta Vale.

Jeitinho brasileiro

As características geográficas e sociais de Brasil e Nova Zelândia são completamente diferentes e a condução da pandemia pelos governos foi praticamente oposta, mas os três entrevistados falam também que a consciência e as atitudes individuais da população que pode se manter em casa foi drasticamente diferente.

Para Pscheidt, que viveu as duas realidades, a falta de perspectiva de fim da pandemia no Brasil faz com que as pessoas comecem a fazer pequenas concessões individuais — encontrar um ou outro amigo, ir a um restaurante, viajar. Ela mesma confessa que foi a um bar com uma amiga depois que voltou, mas não se sentiu segura.

Para quem olha de fora, como Pereira, é chocante o nível de desinformação no Brasil. "Recebi uma mensagem de um amigo meu brasileiro dizendo que os países, quando vão fazer o teste nas pessoas, estão introduzindo o vírus dentro do nariz com o cotonete. Eu respondi para ele dizendo: 'não acredito que alguém do nível intelectual que você tem (ele é doutor) vem com esse tipo de informação'", relata.

Nos piores dias da pandemia no Brasil, fica a tristeza, a preocupação e o sentimento de privilégio para quem está longe. "Esse foi um momento de perda muito grande", lamenta Pereira. "O Brasil é um país lindo, que tem de tudo para ser pioneiro em diversas coisas, mas a política criou uma cultura de que você tem que burlar as regras, você tem que sugar a energia do outro. Isso já está outdated (ultrapassado), não dá para continuar. Conscientização é uma coisa que, nesse momento de pandemia, as pessoas deveriam dar um tempo para pensar."