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Joel, o 'Irmão Evento', vaga pelo Recife sem festa, completamente offline

Joel Datz, o "Irmão Evento", ícone da cena cultural do Recife, em frente ao casarão da família, hoje abandonado, no bairro Boa Vista - Flavio Tavares/UOL
Joel Datz, o 'Irmão Evento', ícone da cena cultural do Recife, em frente ao casarão da família, hoje abandonado, no bairro Boa Vista
Imagem: Flavio Tavares/UOL

Joana Suarez

Colaboração para o TAB, do Recife

14/06/2021 04h01

Se para (quase) todo mundo está difícil viver há tanto tempo sem aglomeração nos fins de semana, calcula para um senhor que se alimentava de eventos, diariamente (e literalmente).

Joel Datz, 75, é conhecido como "Irmão Evento" no Recife. Antes da pandemia, segundo suas contas, já tinha passado de 60 mil celebrações comparecidas em 40 anos - o que dá uma média de 4 festas por dia. E o que ele faz? Apenas comparece. E come.

A presença dele chegou a gerar uma lenda na cidade de que, "se um evento não contou com o Irmão Evento, não prestou". Uma espécie de selo de qualidade. "Teve um cara que disse que ia me dar uma camisa para eu vestir quando gostasse do evento", contou Joel.

Conversei com Joel antes, durante e após 15 meses de pandemia. Apesar de ser arroz de festa na capital pernambucana, faz o tipo reservado: costuma se sentar sozinho nas festas e fica a observar os outros. Chega a ser misterioso. Não se expõe no maior palco dos dias atuais, as redes sociais. Irmão Evento sequer tem celular. "Nem nunca vou ter, eu vejo esse aparelho mandar nas pessoas, elas não fazem mais nada, não são elas que estão no comando."

Decidido a ser completamente offline, Joel não acessa internet pra nada. Também não tem televisão. E você deve estar se perguntando como é que essa criatura sobrevive no mundo das relações virtuais. Aliás, antes disso, como ele ficava sabendo dos agitos da cidade? Ora, simples: jornal de papel, boca a boca, de festa em festa, nas ruas. Anotava tudo em papéis miúdos, onde escrevia "ok" naqueles que já ocorreram. E sabia mais do que muito perfil no Instagram que se dedica às programações do fim de semana.

Com uma sacolinha na mão, calça, tênis e camiseta (quase sempre vestida ao avesso), ele ia de lançamento de livro à estreia no cinema; de palestras a casamentos. Contou que foi convidado para o matrimônio da filha do governador Miguel Arraes, mas declinou porque não gosta de usar paletó.

Aceitou o chamado para as bodas da filha de um garçom de outra festa. Este, por sinal, foi um dos que ele mais gostou. Ele ainda lembra como a comida era boa e bem servida. "Eu tinha um show pra ir no mesmo dia, mas achei que o garçom foi humilde e fui no casamento. Não me arrependi, tinha uísque bom, tudo muito gostoso."

Embora mencione o uísque, Irmão Evento não é dos birinaites. Bebe pouco, mas não nega um champanhe fino. Já foi até a uma inauguração de lancha "com direito a lagosta e camarão", lembrou. Come bem, come muito. Não só forra o bucho como de vez em sempre cochila, principalmente em filmes, teatros ou apresentações - quem já o encontrou sabe.

No primeiro dia de um festival de cinema pernambucano, lá estava ele na fileira da frente com a camiseta do evento. Dormiu por horas.

- Gostou do filme, Joel?
- Sim, muito bom.

Joel Datz, o 'Irmão Evento', ícone da cena cultural da cidade do Recife, olha da janela no casarão onde mora, no bairro Boa Vista - Flavio Tavares/UOL - Flavio Tavares/UOL
Joel Datz, o 'Irmão Evento', ícone da cena cultural da cidade do Recife, olha da janela no casarão abandonado, no bairro Boa Vista
Imagem: Flavio Tavares/UOL

Gêmeos, só que não

No tal casamento inesquecível entre os 60 mil eventos, Joel foi com o irmão Abrahão, 12 anos mais velho que ele. Eles eram vistos juntos e foram chamados de Irmãos Eventos por 15 anos - a forma singular veio quando o mais velho infartou e morreu em 1995 e Joel abraçou a missão sozinho. Apareciam ambos: altos, brancos, magros e portando barbas longas, aparadas a cada quatro anos, no 29 de fevereiro.

Pareciam gêmeos. E gostavam, pois vestiam a mesma roupa. No primeiro lugar a que foram juntos, viraram personagens marcantes e começaram a ser convocados. Só se transportavam a pé ou de ônibus, se fosse muito longe. "Não pego carona com estranhos, porque todo mundo me conhece", disse Joel, sobre a medida que ainda toma nos dias de hoje. Ultimamente não aguenta andar muito. Mas, mesmo sem evento, continua vagando na "busca de almas". Recife, para ele, é uma "cidade que tem alma" nas ruas, agora não mais. "Olinda tem a magia", mas a covid-19 apagou a euforia.

Em tempos de máscara de proteção, não reconhece mais ninguém. "Estava consultando com uma médica há semanas e tive de pedir pra ver o rosto inteiro dela ao menos uma vez."

'Irmão Evento' na praça Chora Menino - Flavio Tavares/UOL - Flavio Tavares/UOL
'Irmão Evento' na praça Chora Menino, no Recife
Imagem: Flavio Tavares/UOL

Não aderiu de jeito nenhum às lives, por razões óbvias, e fala que isso pra ele não é evento, não tem calor humano. "Pra ser evento (e para ele comparecer), tem que ter gente."

Joel até que tentou se adequar ao "novo normal": foi chamado para fazer uma ponta numa peça teatral transmitida pelo Facebook do Museu do Holocausto de Curitiba. Para o papel, ensaiou as falas. Mas não tinha mais roupa elegante, de botão, que coubesse. Experimentou várias. Sem bater perna e comendo quentinhas que chegam todo dia para ele, engordou. Os meses de pandemia o fizeram ganhar 26 quilos.

Para o irmão evento, é triste ver tudo fechado e se acabando. Além de assíduo nos espetáculos, ele é amante dos museus recifenses. Classifica como "de primeiro mundo" o Paço do Frevo e o Cais do Sertão. "Estou percebendo que as pessoas vão ter que reaprender a falar."

Leitor de jornais, daqueles que passam o olho até nos pequenos anúncios, Joel lamenta o fim do papel com a digitalização dos veículos de comunicação tradicionais.

Nessa onda modernizante, um pouco antes da pandemia, tentaram desvalorizar a presença do irmão nos eventos. Ele até ameaçou abandonar Recife. Seus amigos fiéis fizeram subir a campanha #ficajoel. Ele diz há tempos que está escrevendo um livro sobre sua jornada da fama, mas por ora não há nem sinal da obra.

Joel Datz, o 'Irmão Evento', lê 'Toledot Isaac: um judeu marroquino em Recife', na praça Chora Menino, no Recife - Flavio Tavares/UOL - Flavio Tavares/UOL
Joel Datz lê 'Toledot Isaac: um judeu marroquino em Recife', na praça Chora Menino
Imagem: Flavio Tavares/UOL

Cartas para Joel

Os conhecidos, admiradores, artistas e produtores, compadecidos desse período de isolamento sem celebrações físicas, enviaram cartas a Irmão Evento, em agosto de 2020. Não escreveram, digitaram, mas uma amiga imprimiu e entregou em mãos as dez primeiras missivas. Haveria mais, só não chegaram até ele.

Sapucarana, 30 de maio de 2020
Saudações ao longe!
Caro amigo Joel, aqui do agreste te mando um abraço afetuoso cheio de arte e cultura, assim como você. Espero que essa cartinha te encontre bem e consiga dar um afago no seu grande coração. Você nos é bastante querido e torcemos para que tudo isso acabe logo para que possamos nos encontrar.
Se cuide!
Axé agrestino. Ciel

Ciel Santos, o Tropical Queer, é cantor e compositor. Junto da mensagem veio uma foto dele abraçado a Joel, que Irmão Evento mostra com orgulho. Ele aponta o nome e a história de tudo quanto é artista da cena pernambucana moderna e antiga. Se diz amigo de Alceu Valença e acompanha MC Loma, cantora de brega funk.

Ele nunca toma partido de estilo musical, nem de time de futebol, tampouco de político. Prudente, pois quer ser convidado para todos os eventos. Já foi a muitos ruins, mas não ousa citá-los porque os donos da festa são boa gente. Não é ele quem vai criar caso.

Da vida pessoal de Joel sabemos que é judeu nascido em Recife. Passou 12 anos no Rio de Janeiro e viajou apenas pela América do Sul. Não tem familiares. Morava desde criança com o irmão num casarão antigo na praça Chora Menino, área central, onde sempre era visto em um dos bancos.

Joel Datz, o Irmão Evento, na área onde costuma passar as noites no casarão onde vive, em Boa Vista - Flavio Tavares/UOL - Flavio Tavares/UOL
Joel Datz, o Irmão Evento, na área onde costuma passar as noites no prédio onde vive, em Boa Vista
Imagem: Flavio Tavares/UOL

Aposentou-se como engenheiro. Desde a morte de Abrahão, foi morar em um apartamento perto da praça. Conta que dorme todos os dias no pátio do prédio — "que é para não perder a hora. Gosto de ver o dia clarear". Os porteiros afirmam, porém, que ele tem medo de falecer em casa e de ninguém ficar sabendo. Ele já infartou em 2015, durante uma peça de comédia.

Vacinado, espera-se que de covid-19 não morra, mas tem visto muitos amigos partirem. Torce-se para que ele ainda dê ok em mais alguns eventos (com gente) na carreira. Em janeiro, quando o isolamento social foi flexibilizado, Joel chegou a ir à reabertura do Teatro do Parque (que ficou fechado 10 anos para restauração), mas depois veio o lockdown de novo.

Encara hoje o próprio fim de vida como um evento marcado todos os dias: o que fazia ontem já não consegue mais fazer hoje. O corpo está entrevando ainda mais com a pandemia. Numa fala controversa, indicou que quer ir para um lugar longe, "sem ninguém".

Esta reportagem, em formato digital, será impressa e entregue a Joel.