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Ricardo Araújo Pereira, o artista português que inspirou o Porta dos Fundos

Ricardo Araújo Pereira, humorista e cronista português - Daryan Dornelles/UOL
Ricardo Araújo Pereira, humorista e cronista português
Imagem: Daryan Dornelles/UOL

Adriana Negreiros

Colaboração para o TAB, de Lisboa

30/06/2021 04h01

O aparelho de DVD recolheu a bandeja com o disco e as imagens então surgiram no televisor do humorista Gregório Duvivier. Quatro homens, em diferentes cenários de aparência amadora e figurinos ligeiramente rústicos, a protagonizar alguns dos melhores esquetes de humor que já havia visto. Um dos atores, o mais alto e bonito, chamou-lhe especial atenção. Era ele quem, em um dos quadros, interpretava um vendedor de frutas que negocia ameixas podres como se fossem raríssimas frutas tropicais denominadas kunami.

"Cara, isso é muito bom", surpreendeu-se Duvivier.

Aquele era o fim da primeira década dos anos 2000 e Gregório Duvivier havia recebido o DVD emprestado do amigo Fernando Caruso, também humorista, cuja mãe — a produtora cultural Eliana Caruso — acabara de chegar de uma viagem para Portugal, com o disquinho na bagagem. Ela ficara impressionada com o sucesso e a graça daquele grupo de humor lusitano de nome inusitado, Gato Fedorento, e resolvera presentear o filho com a coletânea.

Por achar os esquetes engraçadíssimos, Fernando emprestou o disco para Gregório, que antes de devolver a peça decidiu reproduzi-la em dezenas de cópias piratas posteriormente enviadas para outros amigos. A aprovação foi geral. Aquilo não só era hilário como parecia diferente de tudo o que conheciam em matéria de humor. Claro, notavam ali as referências aos britânicos do grupo Monty Python, mas com uma diferença fundamental: havia regularidade. Todas as piadas eram boas. Outra vantagem: os diálogos davam-se em português. De Portugal, vá lá, com algumas expressões e pronúncias incompreensíveis para os brasileiros; mas, ainda assim, em português.

Desse modo, o Gato Fedorento tornou-se uma obsessão para aquela turma de amigos. Uma "religião", como conta Duvivier. "Nunca fui o jovem de ter uma banda indie. Eu tinha um grupo de humor indie", diz.

Mais tarde, em 2012, quando ele, Antonio Tabet, Fábio Porchat, João Vicente de Castro e Ian SBF criaram o Porta dos Fundos, a inspiração no grupo português estava clara: o apuro no texto, a interpretação a um só tempo cômica e esmerada, a obsessão em jamais reciclar piadas.

Se o Gato Fedorento tornou-se, para Duvivier e alguns amigos, uma religião, Ricardo Araújo Pereira — o vendedor de ameixas podres do esquete — transformou-se numa espécie de Deus. "Ele é o maior humorista da minha geração. Do mundo, não só de língua portuguesa", elogia Gregório Duvivier.

O maior cronista brasileiro

"Isso é um exagero. É mera cortesia brasileira", esquiva-se o ator, humorista e escritor português de 47 anos. "Se Porta dos Fundos partiu de alguma herança nossa, camuflou muito, porque o grupo é excelente. Essa dívida não existe", diz Pereira, numa manhã quente do final da primavera em Lisboa, enquanto tenta acomodar o corpanzil de 1,93m de altura numa das poltronas da casa onde vive com a esposa, as duas filhas adolescentes, uma gata amarela e uma cadelinha de rosto achatado com um terrível — como o próprio alerta, ante eventuais aproximações no rosto do bicho — hálito fétido.

Embora não seja exatamente famoso no Brasil, Ricardo Araújo Pereira constitui-se uma das maiores celebridades de Portugal; RAP, como tratam-no fãs e jornalistas, é um tipo quase onipresente nos espaços públicos. Está na televisão (noites de sexta-feira e domingo, na SIC), publicidade (de cerveja, serviços de internet e lojas de eletrônicos), programas de rádio, revistas e nas gôndolas de maior destaque das livrarias, como autor de onze livros. O mais recente deles, "Idiotas Úteis e Inúteis", reúne alguns dos textos publicados no jornal Folha de S.Paulo, do qual é cronista desde 2017 — atualmente, escreve aos domingos, na companhia de outro escritor, Antonio Prata, que o considera "o maior cronista brasileiro", embora estrangeiro.

"O Ricardo desperta em mim um sentimento negativo, a inveja", brinca Prata, para quem o português possui uma característica essencial para um humorista: a elasticidade. "Ele joga nas onze", define-o, mencionando uma metáfora do futebol (RAP é torcedor fanático do Benfica). "Alia erudição a um conhecimento técnico específico de humor. É um cara que traduz Charles Dickens [romancista inglês do século 19], comenta política e conhece detalhes da série 'Friends' — Gato Fedorento é uma referência à música 'Smelly Cat', da Phoebe Buffay", conta.

Depois de brilhar na cena cômica portuguesa por 12 anos, o Gato Fedorento já não existe como grupo. Dois dos integrantes — José Diogo Quintela e Miguel Góis — ainda trabalham com RAP, no programa de domingo da SIC. "O Tiago Dores preferiu uma vida mais resguardada dos holofotes, o que o resto do grupo compreendeu e aceitou bem", informa Pereira.

Ricardo Araújo Pereira, cronista e humorista português - Daryan Dornelles/UOL - Daryan Dornelles/UOL
Imagem: Daryan Dornelles/UOL
Ricardo Araújo Pereira, cronista e humorista português - Daryan Dornelles/UOL - Daryan Dornelles/UOL
Imagem: Daryan Dornelles/UOL

'Abichanado'

Ricardo Araújo Pereira nasceu em Lisboa em 28 de abril de 1974, três dias depois da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura do Estado Novo português. É, portanto, um filho do raiar da democracia, regime político pelo qual tem grande apreço — a ponto de recusar-se a convidar para a bancada do programa que comanda ("Isso é gozar com quem trabalha") o deputado André Ventura, líder do Chega!, partido de extrema-direita de Portugal.

A decisão de não conceder espaço àquele que, para alguns observadores da política local, é um arremedo de Bolsonaro português, faz lembrar as constantes aparições do presidente brasileiro no antigo programa de humor "CQC". Em setembro de 2020, a atriz Mônica Iozzi, ex-integrante do programa, disse que, a pretexto de fazer humor, o "CQC" deu palanque a Bolsonaro.

"Mas a razão para a qual Ventura não vai ao meu programa não é para que fique sem palco. Ele é deputado do parlamento português e, hoje em dia, com as redes sociais, todo mundo tem palco. Além disso, pelas coisas bizarras que diz, está sempre na imprensa", afirma. E explica o verdadeiro motivo. "Meu programa é dividido em duas partes. Na primeira, digo o que me apetece. Na segunda, faço provocações simpáticas aos convidados, não sou desagradável. É um jogo", afirma. "Faço isso com todos, da esquerda à direita, exceto com André Ventura. Como ele é antissistema e o sistema chama-se democracia, não estou disposto ao jogo."

A seu modo peculiar, o deputado André Ventura — terceiro colocado nas últimas eleições presidenciais, na qual foi reeleito o presidente Marcelo Rebelo de Sousa — já protestou contra o fato de não ser convidado para "Isso é gozar com quem trabalha". No Twitter, chamou RAP de "abichanado". "Faz grandes encenações na minha ausência, mas ainda não teve coragem de macho para me defrontar no programa que apresenta", escreveu, em junho de 2020.

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Imagem: Daryan Dornelles/UOL

Humorista que não ri

Embora seja jornalista por formação, Pereira não se sente acossado pelo dever da imparcialidade. Assume-se como um entusiasta da democracia — o que, em tempos atuais, em diferentes partes do mundo, por vezes pode soar um tanto polêmico — e, na juventude, chegou a filiar-se ao Partido Comunista Português, o PCP. Deixou os quadros da agremiação por não concordar com certas manifestações de expoentes da sigla, como a defesa do ex-primeiro ministro da URSS Josef Stalin, e, também, por descobrir-se pouco vocacionado para a militância política. "Não tenho inclinação para dar sermão às pessoas. Meu único objetivo é fazê-las rir, nada mais — para mim isso já é muito", explica.

A saída do PCP e as críticas aos governos de inspiração soviética do leste europeu não impediram Pereira de sofrer perseguições dos que o têm na conta de um bolchevique. Anos atrás, ao defender a acolhida de imigrantes em Portugal, recebeu ameaças de morte por parte de defensores do fechamento de fronteiras para estrangeiros. Uma manhã, a palavra "comunista" apareceu pichada no muro da casa onde vive. A intimidação, se não reprimiu no humorista a manifestação das próprias ideias, acabou por reforçar um traço de sua personalidade: uma certa tendência à reclusão. A despeito da popularidade,

Ricardo Araújo Pereira é um homem discreto. Tanto quanto pode, evita os holofotes, não mostra o rosto das filhas e nunca permitiu que se fizessem imagens do interior da própria casa. Age assim por questões de segurança, mas igualmente por temperamento. RAP é um sujeito sério. "Quase nunca ri. Está sempre de terno. No Brasil, não conheço nenhum humorista que usa terno. Eu só uso para gravar", observa Gregório Duvivier.

Este aspecto do caráter do humorista remonta à infância, quando passava longas horas do dia na biblioteca do colégio de padres em que estudava, às voltas com poemas de Cecília Meireles, romances de Camilo Castelo Branco e contos de Machado de Assis. Filho único de um piloto de avião e de uma assistente de bordo, aprendeu em escolas religiosas o melhor da literatura universal, das ciências naturais e mesmo da Bíblia — mas não assimilou a fé. É um humano sem crenças no divino, o que frequentemente coloca-o diante do sentimento de falta de sentido da existência. "Para um ateu, a vida é um absurdo."

Um cidadão suspeito

Instagram, Facebook, Twitter, nada disso o seduz minimamente. "É um pouco por pudor", ele explica. "Mas também por incompreensão. A minha vida toda foi passada a resguardar a minha privacidade. As redes sociais parecem-me o movimento inverso", diz, naquilo que chama de "vitória ideológica das revistas cor-de-rosa" — ou de fofocas, como se chamam no Brasil. "As próprias celebridades convenceram-se de que faz sentido exibir a vida privada."

Como não tem redes sociais, Ricardo Araújo Pereira deixa de compartilhar com os fãs portugueses as inúmeras referências elogiosas que são feitas ao seu trabalho — ou a outros aspectos da sua presença, como o fato de ser "alto, rico e bonito, dessas pessoas tão superiores que a gente nem fica com ciúmes quando percebe a nossa mulher babando", a exemplo do que escreveu recentemente Antonio Prata no jornal Folha de S.Paulo.

Ricardo Araújo Pereira já pensou que, se fosse solteiro e anônimo, teria dificuldades em conseguir encontros a partir do Tinder. O fato de não possuir perfil em nenhuma rede e gerar poucas ocorrências no Google soaria estranho para qualquer possível namorada. "Pensariam que sou um psicopata", brinca.

Encerrada a entrevista para o TAB, o humorista recolheu-se por instantes para preparar-se para as fotos que ilustram esse texto. Voltou dos aposentos íntimos com dois ternos escuros — e, atendendo ao pedido do fotógrafo Daryan Dornelles para separar algum objeto com o qual pudesse interagir durante o ensaio, trazia uma espada de brinquedo na mão.

"Se eu fosse um cidadão anônimo, seria muito suspeito."