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Mesmo com covid-19 em alta, Inglaterra vive euforia do 'Dia da Liberdade'

Festa "Renascimento" no clube Egg, no "Dia da Liberdade", quando se suspenderam quase todas as restrições legais de circulação em Londres - João Pedro Caleiro/UOL
Festa 'Renascimento' no clube Egg, no 'Dia da Liberdade', quando se suspenderam quase todas as restrições legais de circulação em Londres
Imagem: João Pedro Caleiro/UOL

João Pedro Caleiro

Colaboração para o TAB, de Londres

21/07/2021 10h58

"Dá para acreditar que você tá numa balada? Demorou, hein?", grita o homem ao lado, de óculos escuros, camisa branca apertada e o maior sorriso do mundo, enquanto ali perto um grupo de amigos tira foto dançando até o chão e o resto da pista pula sincronizada acenando para o DJ.

Foi assim a festa "Renascimento" de segunda-feira (19) na Egg, um dos mais famosos clubes de música eletrônica de Londres, com capacidade para mil pessoas e duas pistas tocando house e techno. No "Dia da Liberdade", praticamente todas as restrições legais da covid-19 na Inglaterra foram derrubadas. Usar máscara, por exemplo, virou questão de "responsabilidade pessoal", salvo algumas exceções (como a obrigatoriedade de usá-la dentro do transporte público). Desde o início do dia já era visível a queda na adesão.

Com o fim oficial do distanciamento social, clubes noturnos quase falidos puderam abrir pela primeira vez em 16 meses, sem precisar pedir prova de vacinação ou teste negativo (por enquanto) para os clientes. Na balada inteira, apenas um casal estava de máscara — devidamente customizada com brilhos.

Para muita gente, a reabertura é uma loucura e uma irresponsabilidade. O país está com uma média de 45 mil casos diários de covid-19, uma das maiores do mundo, resultado da reabertura gradual dos últimos dias (agora total), somada à circulação da variante Delta.

Festa 'Renascimento' no clube Egg, no 'Dia da Liberdade', quando se suspenderam quase todas as restrições legais de circulação em Londres - João Pedro Caleiro/UOL - João Pedro Caleiro/UOL
O 'Renascimento' no clube Egg, em Londres
Imagem: João Pedro Caleiro/UOL

O argumento do governo é que, com 54% da população totalmente vacinada, os casos se concentram entre os jovens, e poucos vão se traduzir em hospitalizações e mortes. O discurso é que chegou a hora de "conviver com o vírus", mesmo que isso signifique mais infecções, e que é melhor reabrir no verão do que no inverno, quando há mais pressão sobre o sistema de saúde.

Para os vulneráveis, o dia da liberdade é um dia de ansiedade; para muitos outros, o "verão da liberdade" pode se tornar o verão do isolamento, já que há exigência legal de quarentena para infectados e seus contatos — e esse é um grupo que não pára de crescer. No domingo (18), o ministro da Saúde Sajid Javid apresentou teste positivo e o primeiro-ministro Boris Johnson também teve que se isolar.

Como estou recuperado de uma infecção leve, possivelmente pela variante Delta, e completei o ciclo de vacinação, me considero relativamente imunizado. Pegar covid-19 de novo não estava no alto da minha lista de preocupações naquele dia.

Abrir a porta da pista e sentir o som do baixo vibrar no corpo foi tão bom quanto eu havia antecipado; era como se nada tivesse mudado. Mas deu um certo arrepio ver o pessoal se amontoando e tentando pegar um drinque no bar. Imaginei o tamanho do estrago, caso apenas uma daquelas pessoas estivesse infectada sem saber — o que é bastante provável.

Além da euforia, dava para sentir uma certa hesitação e a desorientação de algumas pessoas, como se fosse preciso reaprender a se comportar naquele ambiente. Muitos disseram que estar de volta à multidão era "overwhelming", palavra de excitação que também pode ser traduzida como uma sensação "esmagadora", de sobrecarga dos sentidos.

Havia jovens para quem aquela era não apenas a primeira balada pós-covid, mas a primeira festa noturna da vida, já que quem completou 18 anos durante a pandemia nunca pisou em uma festa como essa antes.

Boate G-A-Y, no bairro de Soho, em Londres, na noite de segunda-feira (19), dia da reabertura total - João Pedro Caleiro/UOL - João Pedro Caleiro/UOL
Boate G-A-Y, no bairro de Soho, em Londres
Imagem: João Pedro Caleiro/UOL
Ruby Bell-Gray com um amigo, na festa da G-A-Y, em Londres - João Pedro Caleiro/UOL - João Pedro Caleiro/UOL
Ruby Bell-Gray com um amigo, na festa da G-A-Y, em Londres
Imagem: João Pedro Caleiro/UOL

Um pouco mais cedo, na G-A-Y, balada no SoHo, Ruby Bell-Gray, 19, contava a alegria de ter chegado sua hora: "Estava deprimida, deitada na cama pelo último ano inteiro, e agora estou aqui, conhecendo um monte de gente nova de todos os lugares, é maravilhoso!", disse ela, antes de me puxar para um abraço.

Esse era um dos sentimentos mais ansiosamente esperados: a volta da espontaneidade e da aleatoriedade, de poder fazer amizades na fila do banheiro e esbarrar em um estranho suado. E suados estávamos: era a noite mais quente do ano.

Para alguns, o retorno à vida noturna simbolizava a volta de um estilo de vida, recuperar um pedaço da própria identidade e um certo senso de comunidade raro na vida metropolitana. Ali na Egg, Chester, 51, com uma camiseta onde se lia "techno", já estava em sua segunda balada pós-reabertura. Alguns poucos clubes já haviam reaberto na madrugada de domingo, ao soar da meia-noite, e Chester quase emendou uma noite na outra. Dizia que seu joelho teve problemas recentemente, mas que é só sentar um pouco que passa. Voltou para a pista.

O taxista da noite, Patrick McGuinness, foi nos contando as histórias dos clubes da cidade. Ex-promoter e ex-DJ, sóbrio há mais de 10 anos, falou do início da cena eletrônica dos anos 1990 e fez um paralelo com o último ano, no auge da pandemia de covid-19, quando festas secretas foram realizadas em lugares remotos, na calada da noite, com geradores e endereço enviado na hora.

Chester, 51, já estava na segunda balada pós-abertura em Londres - João Pedro Caleiro/UOL - João Pedro Caleiro/UOL
Chester, 51, já estava na segunda balada pós-abertura em Londres
Imagem: João Pedro Caleiro/UOL

Um dos visitantes da Egg no dia, Darius, 30, resumiu assim: "Quando você toma alguma coisa como certa e daí você a perde, é difícil. Agora sinto que um peso foi retirado dos meus ombros". Além do alívio, ao longo da noite também começaram a surgir aqueles outros sentimentos que sempre fizeram parte da experiência de se sair de noite: pequenas frustrações, eventual tédio e a necessidade de atenção e validação de estranhos sem que a gente entenda muito o porquê.

"Acabo de ter uma conversa muito chata, um pessoal falando sobre comida. Eu e meu amigo ficamos praticando passos de dança por um ano e ninguém está ligando pra gente!", reclamou Richard, 21, que se prontificou a me levar para a pista e mostrar o que havia treinado.

Quase no final da noite, o DJ, o mais eufórico de todos, tocou o hit das antigas "Free", de Ultra Nate, no qual ela canta: "Se você der mais do que você toma / A vida pode ser tão boa / Vá e tente, agora é o momento / Porque você é livre / para fazer o que você quiser / Você precisa viver a sua vida / Faça o que você quiser fazer". Se esse momento vai durar e se essa liberdade é para valer, ou só um delírio perigoso de verão, vamos saber em breve. Enquanto isso, a pista ferve.