Topo

Como uniformes femininos no esporte ficaram tão curtos ao longo dos anos?

Sarah Voss compete no solo com uniforme de corpo inteiro - Matthias Hangst/Getty Images
Sarah Voss compete no solo com uniforme de corpo inteiro Imagem: Matthias Hangst/Getty Images

Natália Eiras

Colaboração ao TAB, de Lisboa (Portugal)

05/08/2021 04h00

Em vez de fazer piruetas, mortais e outras acrobacias com as pernas e a virilha à mostra em collants, a equipe de ginástica da Alemanha competiu nas Olimpíadas de Tóquio, que acontecem até domingo (8), com um look diferente: calças leggings. Mais confortáveis, as roupas, que fazem parte do código de vestimenta da modalidade, foram escolhidas como uma forma de protesto liderado pela ginasta Sarah Voss contra a sexualização das atletas da ginástica — já que as imagens das esportistas costumam ser muito exploradas e divulgadas em sites de conteúdo adulto. Pelo que parece, estes pequenos atos de rebeldia são uma tendência de moda esportiva.

Em uma partida do campeonato europeu de handebol de praia, no fim de julho, a seleção da Noruega deixou de lado o biquíni e jogou de shorts. Elas foram punidas pela decisão de abrir mão da parte de baixo que, de acordo com as regras da Federação Europeia de Handebol, deve ter largura lateral máxima de 10 centímetros. A Comissão Disciplinar de Handebol de Praia do Euro 2021 multou a seleção da Noruega em 1500 euros por "vestuário impróprio". "É chocante termos que pagar para não jogar de biquíni", falou a goleira Tonje Lerstad à BBC. O caso teve repercussão e a equipe recebeu o apoio da cantora Pink, que pagou a multa pelas jogadoras.

A discussão sobre o design e o papel do uniforme feminino no esporte está em alta — mas não é algo que começou na abertura dos jogos do Japão. O evento, concebido na Grécia Antiga, seria uma forma de exibir as grandes potencialidades do corpo humano. Porém, a versão do século 21 dele também traz à tona como o corpo feminino é explorado não só por sua performance, mas, exposto em uniformes reveladores e justos, por sua "beleza" e sexualização. E nada disso tem a ver com o propósito de uma roupa esportiva.

O esporte ganhou uniforme no início do século 20. É o que diz Carmen Lucia Soares, professora titular do curso de educação física da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em seu livro "As roupas nas práticas corporais e esportivas: beleza, conforto e eficiência (1920-1960)", de 2007. "Antes disso, se fazia esporte com roupas confortáveis, mas não específicas", afirma a pesquisadora. A partir dos anos 1920, o esporte moderno se organiza e são criadas uma série de regras. "Vai ser construído um conjunto de necessidades e normas, sendo uma das mais básicas a de igualdade de condições", diz a professora. É assim que surge uma metragem padrão para os campos de cada modalidade, tipo de piso em que o esporte será praticado. Outra forma de garantir que todos começarão a partida em pé de igualdade é definir um mesmo conjunto de vestimentas para todos os atletas. "Além disso, a função da roupa era evidenciar a beleza do gesto esportivo, proteger o corpo e garantir a eficácia dos movimentos. E, até hoje, não deveria ser nada além disso", complementa Carmen Lucia.

Na roupa feminina, o recato e o funcional competiam. Por mais que as mulheres fossem relegadas a papéis secundários nas primeiras Olimpíadas modernas, elas começaram a participar do evento em 1900, nas modalidades tênis e golfe. "E, no caso do primeiro esporte, a roupa esportiva foi se adaptando: a partir de 1910, as saias eram longas, porém, por uma questão de performance [a saia atrapalhava os movimentos das tenistas], foram diminuindo até chegar ao comprimento de hoje em dia", explica Carmen Lucia. Segundo a pesquisadora, as roupas esportivas nos anos 1930 eram adequadas: não eram curtas nem longas, recatadas demais. "Elas protegiam a mulher tanto física como moralmente", afirma. Por mais que não fossem reveladoras como as peças de hoje, o design sempre evidenciou a feminilidade das atletas. As mulheres podiam competir, mas não podiam deixar de ser "elegantes". O uniforme das mulheres é uma forma de compensação, segundo a professora norte-americana de educação física e fisioterapia Emily Wughalter. Ele deve ser ultra-feminino e, muitas vezes, sexualizado por conta do que a pesquisadora batizou, em 1979, de "female apologetic" (compensação feminina). Ao serem atletas de alta performance, as mulheres estariam mostrando habilidades tidas como "masculinas", como agilidade e força, e a roupa esportiva mais justa viria para afastá-las dos estereótipos de lesbianidade — muito comuns nos anos 1970 e até atualmente. Os uniformes compensariam, assim, a falta de "feminilidade" das esportistas. Após as Olimpíadas do Rio, em 2016, a pesquisadora canadense Elizabeth Hardy atualizou o estudo de Wughalter, sinalizando que as atletas que seguissem o estereótipo e tivessem o corpo mais padrão e normativo conseguiam mais cobertura e tinham maiores chances de fechar patrocínio com marcas. "Se enfatizam essa visão idealizada da feminilidade tradicional, garantem que permanecerão desejáveis para os homens", escreveu Hardy. E essa construção é feita a partir de mudanças profundas na forma que consumimos esporte e roupas esportivas.

Anouk Vergé-Depré (esq) e Joana Heidrich, dupla da Suíça de vôlei de praia - Daniel LEAL-OLIVAS / AFP - Daniel LEAL-OLIVAS / AFP
Anouk Vergé-Depré (esq) e Joana Heidrich, dupla da Suíça de vôlei de praia
Imagem: Daniel LEAL-OLIVAS / AFP

A publicidade e a TV entraram em campo. No fim dos anos 1970, o culto ao corpo começou a bombar e a mulher conquistou mais liberdade, passou a ocupar espaços que lhes eram proibidos. E é a partir dessa época que ela também se torna um bem "comerciável". "Você folheia as páginas de revistas esportivas da época e percebe que as propagandas não vendem mais apenas os produtos, mas também as modelos que estão super erotizadas", opina Carmen Lucia. O culto ao corpo musculoso, atlético e bronzeado teve seu ápice nos anos 1980, quando as roupas esportivas também se tornam mais reveladoras. O tênis entrou para o look do dia. Houve, ainda, o aumento no interesse pelo esporte e passamos a consumi-lo pela TV. "A maior divulgação das modalidades é pelas imagens", comenta a pesquisadora.

Entretenimento para os olhos masculinos. As fabricantes começaram, assim, a pensar uniformes que pudessem garantir uma performance técnica, mas que também ficassem bonitos na TV e nas fotografias, para o deleite dos espectadores. E, no caso da roupa feminina, ela deveria agradar o público masculino. "Eles determinaram o 'padrão' de uniformes femininos fazendo prevalecer a sexualização dos corpos femininos, e não o conforto das mulheres atletas", diz a jornalista Roberta Nina Cardoso, do site "Dibradoras". Vendo que a ideia dava dinheiro, as federações também decidiram explorar o apelo visual.

O bumbum feminino foi colocado para jogo. Este aspecto fica muito evidente quando, ainda na década de 1980, um pôster de uma competição de vôlei de areia no Japão usou a imagem da bunda de uma jogadora para atrair o público. Até 10 anos atrás, era comum os meios de comunicação publicarem galerias e clipes com registros aproximados do corpo de atletas. Muitas vezes, emissoras pressionavam esportistas a, em dias frios, abrirem mão dos macacões térmicos usados por baixo dos uniformes oficiais porque eles "não dariam boa televisão". "Não há uma justificativa para determinar esses uniformes mais curtos ou justos para as mulheres. Mas há uma 'tradição' que se construiu ao longo dos anos — e que, talvez, se baseie muito no papel que se pensa para a mulher na sociedade", complementa Nina.

Estes casos não estão restritos às modalidades de areia. Até dá para achar que o biquíni é usado como uniforme por ele ser praticado ao ar livre, embaixo do sol. Uma boa maneira de aplacar o calor. Porém, até os anos 1990, as jogadoras do vôlei de quadra também tinham que jogar tanga de cintura alta que deixava a virilha à mostra. Depois, em 1998, o uniforme mudou para macaquinhos colados ao corpo. Apelidado de "É o Tchan", a roupa causava desconforto, impedia os movimentos das jogadoras, foi abolida e, por fim, elas puderam jogar com os shorts e camisetas usados até hoje. Foram mudanças de uniforme para atrair público, justificou a federação de vôlei na época. Mas nunca foi um caso isolado. Pouco antes das Olímpiadas de Londres, em 2012, a Federação Mundial de Badminton, esporte que inclui shorts, saias e vestidos em seu código de vestimenta, queria determinar que as jogadoras usassem, obrigatoriamente, saias durante as partidas para tornar o esporte "mais feminino" e "atraente". Um ano antes, o presidente da FIFA na época, Joseph Blatter, defendeu, em evento em Zurique, na Suíça, repercutido pelo jornal "La Nación", que as jogadoras de futebol feminino deveriam usar hotpants em campo. "Com shorts mais justos, as mulheres ficam mais bonitas", teria dito Blatter ao pedir uma estética "mais feminina" no esporte. "Por que não somar futebol e moda?". Nestes casos, o corpo da mulher seria uma moeda de troca para atrair dinheiro e atenção para as modalidades esportivas. "É uma forma de manter a mulher em seu lugar. Ela não pode ser uma atleta de alta performance, ela tem que se contentar com a beleza, com a elegância", diz Carmen.

Felizmente, no futebol e no basquete, as mulheres venceram. Por mais que Blatter fosse contra há dez anos, o uniforme do futebol feminino continua sendo muito semelhante ao do masculino. Marta não joga de hotpants, ainda bem. No badminton, o código de vestimenta continua sendo amplo. O basquete é outro esporte cujas vestimentas são iguais, mas a conquista levou alguns anos: antes disso, as atletas usavam macaquinhos como os do vôlei. "Essa diferenciação da roupa é completamente alheia à prática esportiva. Foram anos de discussão e educação para que chegasse a esse momento em que estamos refletindo sobre os uniformes femininos e a exploração do corpo da mulher no esporte", comenta Carmen.

A verdade é que mudar de uniforme é difícil. Nem mesmo estrelas como Serena Williams conseguem burlar as regras. Em 2018, ela jogou, no Roland Garros, com um macacão de compressão feito pela Nike para lidar com complicações pós-parto. A atleta foi criticada pela Associação de Tênis da França e a roupa foi banida do campeonato por ferir o código de vestimenta do esporte. "Para mexer no dress code de uma modalidade, é preciso mexer em regras de federações do mundo inteiro", diz a professora da Unicamp Carmen Lucia. E eventos mundiais são a ocasião perfeita para levantar essa bola. "É bom que estas discussões e mudanças aconteçam durante as Olimpíadas, porque o mundo está olhando e vai mexer em cadeia", afirma a pesquisadora. "A performance feminina é comprometida pelo uso de roupa esportiva que não é funcional para a modalidade. Finalmente elas estão lutando por um uniforme que cumpra suas funções básicas."
"O correto seria que as marcas, os clubes e as federações esportivas ouvissem as mulheres para que elas possam opinar sobre o que preferem usar. Afinal, a performance é delas, nada mais justo do que consultá-las", diz Roberta Nina Cardoso.