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Pela 1ª vez, Semana Farroupilha em Porto Alegre tem patrona negra

Liliana Duarte, patrona dos festejos da Semana Farroupilha, dentro do Palácio Piratini, em Porto Alegre - Tiago Coelho/UOL
Liliana Duarte, patrona dos festejos da Semana Farroupilha, dentro do Palácio Piratini, em Porto Alegre
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Gabriele Maciel

Colaboração para o TAB, de Porto Alegre

25/09/2021 04h01

Um público minguado aguardava a passagem do desfile de encerramento da Semana Farroupilha em frente ao Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, às 10h da segunda-feira (20). A data, que celebra o Dia do Gaúcho no estado, remete ao início da Revolução Farroupilha ou, para os historiadores, da Guerra dos Farrapos (1835-1845).

Além do tempo firme e sem chuva, o evento deste ano também se diferenciou pela presença, no palanque, da primeira patrona negra dos Festejos Farroupilhas. Eleita pela Comissão dos Festejos, a declamadora Liliana Duarte, 44, tem como função representar a cultura gaúcha em eventos por todo o Rio Grande do Sul.

Trajando um vestido tradicionalista e um lenço à meia espalda no pescoço — segundo o folclore gaúcho, sinal de que está pronta para o combate —, Liliana aproveitou a oportunidade para dizer que sua luta é por reparação histórica. "A cultura gaúcha foi forjada por mãos negras. Quem são estes homens? Onde estão suas estátuas?"

No episódio mais controverso da guerra, que muitos gaúchos parecem ignorar, homens negros que lutavam junto ao exército farroupilha na incumbência de serem libertos foram traídos. O episódio ficou conhecido como Massacre dos Porongos. Mas esse fato e a derrota dos farroupilhas não ganham espaço no imaginário local, onde prevalece a versão heroica e valente dos combatentes.

"Eles fizeram façanhas incríveis e mostraram como o gaúcho é brabo, o quanto nós somos firmes e fortes. No contexto geral, acho que a guerra foi vitoriosa", declara a veterinária Denise Garcia, 43. A tradicionalista e mais cinco mulheres representaram no desfile da Farroupilha a "heroína dos dois mundos", Anita Garibaldi, que, segundo a música famosa, lutou contra os imperiais carregando "um filho no braço e no outro um fuzil".

Público acompanha o desfile de encerramento dos Festejos Farroupilhas, na frente do Palácio Piratini - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Público acompanha o desfile de encerramento do Dia do Gaúcho, na frente do Palácio Piratini
Imagem: Tiago Coelho/UOL

A cavalgada, que anteriormente reunia até 3.000 cavalarianos, contou dessa vez com apenas 150 pessoas que, como manda a tradição, estavam "pilchadas", ou seja, vestiam as roupas tradicionalistas da cultura: calça bombacha, camisa, bota e chapéu.

O clima entre os participantes era de seriedade, como se realmente fossem encampar uma missão e a cavalariana Sandra Abech, que levava nos braços um boneco enrolado na coberta, chegou até mesmo a derramar lágrimas ao passar em frente ao palanque.

A plateia de pouco mais de 50 pessoas aplaudia fervorosamente. Logo depois da passagem dos cavalos, a comitiva do palanque entrou no Palácio para a cerimônia de apagamento da chama "crioula", que indica o fim dos festejos daquele ano.

Preparando terreno para as prévias do PSDB para a presidência, o governador Eduardo Leite comparou, em seu discurso, a batalha dos farroupilhas com aquela que, segundo ele, hoje devemos enfrentar. "A coragem de hoje é a de justamente nos opormos à cultura que divide a população". E completou: "Costumo dizer nas andanças que tenho feito pelo Brasil que nós não perdemos a guerra, nós mudamos de estratégia e começamos a distribuir gaúcho para tudo quanto é lado para tomar conta desse Brasil."

Antes de ser extinta, porém, a chama se manteve acesa durante sete dias no parque Maurício Sirotsky Sobrinho, o parque Harmonia, sob os cuidados da guardiã oficial Vera Aguiar, 66. "A chama crioula representa a alma dos nossos heróis farroupilhas", explica a aposentada, que tem como missão não deixar faltar óleo diesel e guardas no espaço construído para proteger o fogo das intempéries. A cada meia hora, outras duas pessoas do MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho) assumem a função que, nas edições anteriores à pandemia, era feita durante as 24 horas dos sete dias da Semana Farroupilha. Este ano, porém, a guarnição vai das 8h às 18h.

Dia do Gaúcho: Vera Aguiar (guardiã da chama) e Mariana Matusiak, contadora e patroa do Maragato. Segundo as regras do Movimento de Tradições Gaúchas, as guardiãs da chama crioula devem permanecer imóveis e sem conversar - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Vera Aguiar (guardiã da chama) e Mariana Matusiak, contadora e patroa do Maragato. Segundo as regras do Movimento Tradicionalista Gaúcho, as guardiãs da chama crioula devem permanecer imóveis e sem conversar
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Acampamento Farroupilha

Pelo segundo ano consecutivo, a pandemia impediu que o parque fosse palco do maior acampamento Farroupilha do estado. O público que circulou por lá esse ano passou longe dos cerca de um milhão de pessoas de 2019, quando era difícil circular pelos 175 mil m² do parque sem esbarrar em alguém.
Dessa vez havia espaço para as famílias se sentarem para almoçar na área de alimentação montada pela GAM3 Parks, empresa que ganhou a concessão do Harmonia em novembro de 2020 e que promete investir R$ 281 milhões para transformar o espaço em uma atração turística. Por enquanto, porém, os R$ 650 mil para montar o palco modesto, pagar o cachê dos artistas e a estrutura de transmissão dos shows foram arrecadados através de LIC (Lei de Incentivo à Cultura). "A ideia é atrair os turistas que descem no nosso aeroporto para que, antes de irem a Gramado, passem aqui para conhecer a cultura do gaúcho", esclarece Alan Furlan, diretor operacional da empresa.

Dia do Gaúcho: um grupo de turistas do Recife foi ao parque para entender o motivo do feriado no estado - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Grupo de turistas do Recife foi ao parque para entender o motivo do feriado no estado
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Pessoas das mais variadas idades, a maioria sem máscara, conversavam e aproveitavam o dia. Uma figura pitoresca envolta numa bandeira com as cores do Rio Grande do Sul atraía a atenção de quem passava. Era o cantor e compositor de sucessos da música nativista Tio Nanato, ou João Fortunato Nunes Reis que, ao saber da reportagem do TAB, afirmou sem devaneios: "Sou a história viva da cultura galponeira". O artista também fez questão de mostrar a faca que carregava na cintura. "É uma relíquia histórica, foi do Barão Chagas", orgulha-se.

Semana Farroupilha: o cantor e compositor Tio Nanato carrega na cintura a faca enferrujada que diz ser uma relíquia histórica - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
O cantor e compositor Tio Nanato carrega na cintura a faca enferrujada que diz ser uma relíquia histórica
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Pedro Coelho Pereira, de seis meses, arrancava sorrisos dos frequentadores. "Não é a coisa mais linda?", disse uma senhora que parou e balançou os pequenos pés calçados de alpargatas. A mãe do menino, Sheila Pereira, garante que o filho não passa calor, apesar da temperatura pedir uma camiseta. "Assim que o pediatra liberar, vamos oferecer chimarrão para ele."

No ar, o cheiro do churrasco e a fumaça impregnavam o nariz e também as roupas dos passantes. A carne era assada em churrasqueiras improvisadas nas valetas do chão do parque ou nos "piquetes gastronômicos". Se a fome não fosse muita, dava para apreciar inclusive um cordeiro que fumegava aberto na brasa do chão. "Esse aqui é só para o final do dia, são dez horas assando", afirmou o assador Maclaud Oliveira, 46, que se dispôs a assumir a função, por amor à festa e também porque consegue aproveita o ensejo para testar as churrasqueiras que fabrica e vende.

Dia do Gaúcho: o motorista Everton Duarte tirou folga do trabalho, em Florianópolis, para acompanhar os festejos com a família - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
O motorista Everton Duarte tirou folga do trabalho, em Florianópolis, para acompanhar os festejos com a família
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Sirvam nossas façanhas de modelo?

Rica em simbolismos, a cultura gaúcha foi, segundo historiadores, construída socialmente a partir de uma idealização positiva do evento histórico, que passou a ser narrado como uma grande epopeia. A razão primordial de os farroupilhas lutarem por dez anos contra o Império era a busca por autonomia política, entre outras demandas, que partiram de uma elite latifundiária.

Para grande parte dos gaúchos ouvidos pelo TAB, os farrapos tinham valores nobres. "Os gaúchos queriam o federalismo e o direito à propriedade privada. Eles queriam escolas e pontes aqui. O Brasil demorou 50 anos para fazer o que os Farroupilhas pregaram", diz o presidente do MTG, Manoelito Savaris, 65. Brigadiano aposentado e historiador, Savaris critica aqueles que defendem o revisionismo histórico: "É uma tentativa romanesca de tentar reescrever a história a partir do ponto de vista dos perdedores".

As mulheres vêm conquistando espaço nos movimentos tradicionais gaúchos, como é o caso da patroa do Maragatos, Mariana Matusiak, 45, que segurava uma lança ao lado da "chama crioula". A tradicionalista guarnecia a chama ao lado de Aguiar e juntas declararam: "O Rio Grande é meu país".