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Em pleno feriado, último leilão de peças do hotel Ca'd'Oro atrai saudosos

O corretor imobiliário Felipe Grifoni, durante a exposição das peças de leilão do hotel Ca"d"Oro, em São Paulo - Deise Machado/UOL
O corretor imobiliário Felipe Grifoni, durante a exposição das peças de leilão do hotel Ca'd'Oro, em São Paulo Imagem: Deise Machado/UOL

Deise Machado

Colaboração para o TAB, de São Paulo

11/10/2021 12h30

Gustavo Romiti, 35, chegou ao novo hotel Ca'D'Oro bem no comecinho da tarde de sábado (9). De dreadlocks no cabelo presos em um coque, vestia moletom, bermuda, tênis e levava uma sacola nos ombros. Em tom assumidamente saudoso e animado, contou que era no Ca'D'Oro que a família se hospedava cada vez que vinha de Santos (SP) para visitar parentes e passear. Foram muitas estadias até a decadência engolir o hotel que um dia foi referência de glamour e sofisticação.

"Pena que hoje a gente olha e não tem mais nada a ver", lamenta ele, que mora em São Paulo há 17 anos. A exceção, diz, é o restaurante, que, na sua opinião, ainda guarda certo clima de antigamente. E também o piano. Francês, da marca Érard, fabricado em 1860, o instrumento viria a ser citado várias outras vezes naquele dia.

O rapaz era um entre a dezena de pessoas que se dispuseram a sair de casa num dia cinza, chuvoso e frio, só para ver de perto as últimas peças de um tempo que não volta mais: 160 lotes de taças e copos de cristal Hering (extinta), bules, leiteiras, cremeiras de prata da alemã Wolff, e aquarelas com motivos florais, cuja referência máxima é terem sido pintadas por Sofia, neta de Hércules Florence, reconhecido como um dos pais da fotografia. Os resquícios do acervo do antigo Ca'D'Oro serão leiloados no dia 19. Além do leilão de sábado, haverá exposição das peças no próximo (16), das 10h às 15h.

Disposto a arrematar "alguma coisinha" para si e quem sabe também um presentinho para o pai, cujo aniversário de 50 anos foi comemorado ali, Gustavo não esconde a saudade. Mostra interesse sobretudo nas peças para servir café da manhã. Ao falar delas, lembra das panquecas feitas para ele na refeição matinal do hotel: "Era irado!".

Entre uma e outra observação do tipo "a história do Ca'D'Oro é a história do centro de São Paulo" ou "todo mundo vinha aqui", ouve explicações de uma das atendentes da empresa promotora do leilão que lhe dava dicas para arrematar algo. Ocorre que o rapaz tem uma filha recém-nascida e, por isso, embora tenha muito interesse em ficar com algo, não vai se valer de táticas. Falta de tempo, justifica. Vai entrar no site e dar o lance. Se vingar, vingou.

Gustavo Romiti, 35, visitou a exposição das peças em leilão do hotel Ca'd'oro, em São Paulo - Deise Machado/UOL - Deise Machado/UOL
Gustavo Romiti, 35, também visitou a exposição para lembrar dos tempos em que se hospedava com a família no hotel
Imagem: Deise Machado/UOL

Achados e laços

Felipe Grifoni, 29, é corretor de imóveis assinados (projetados por arquitetos renomados). Chegou para ver as peças quase no encerramento e já estava de olho nas taças de licor com o logotipo do Ca'D'Oro (todas as peças, de cristal ou prata, têm encravado o logotipo do hotel).

"Vou ser sincero: adoro tomar amaretto e essas tacinhas são muito charmosas, mas também me interessam os jogos de chá e café." As memórias de Felipe são menos do Grand Ca'D'Oro e mais do primeiro leilão do acervo do hotel. Ele conta que, na época, em 2010, estudava arquitetura e não tinha dinheiro para comprar nada, embora o interesse fosse grande. Lembra de um pendente pelo qual se apaixonou. Hoje, diz, a situação é outra. Pode comprar não um pendente — que talvez nem fique bem no apartamento para onde acaba de se mudar —, mas as tacinhas, por que não? "Vai ser muito legal ter algo que foi do Ca'D'Oro. A gente cria laço afetivo a partir do lugar de onde veio a peça."

Acompanhado de um amigo, o arquiteto Roberto Schiesser, 64, foi o visitante a passar mais rápido pelo local. Entrou, percorreu a mesa expositora forrada com toalhas brancas com olhar investigador e logo disparou: "É só isso?". As atendentes procuraram explicar que, no primeiro leilão, algumas peças foram reservadas ao acervo particular da família Guzzoni. Passado um tempo, entretanto, como todos da família já tinham um pouco de tudo, ficaram os excedentes — que serão leiloados agora.

A pergunta de Roberto soa como frustração e tem razão de ser: ao ver o chamado para o leilão no Instagram, alimentou a esperança de encontrar ali "achados" como os que adquiriu no "leilão do Jockey": tapetes persas e candelabros de prata de lei, além de "desenhos e pratos maravilhosos, pintados à mão pelo pintor Cícero Dias".

Peças em leilão do antigo hotel Ca'd'oro, em São Paulo - Deise Machado/UOL - Deise Machado/UOL
Peças em leilão
Imagem: Deise Machado/UOL

Sem tapete persa ou Cícero Dias algum à vista, resolve rapidamente que o melhor é aproveitar a viagem e almoçar no restaurante do hotel, cujo cardápio mantém os pratos de outrora. Também quer rever o piano. A decisão de partir logo para o almoço é prontamente aprovada pelo amigo Luís Carlos Cury. "A ideia de ver as peças foi do Roberto. Eu vim mesmo para comer. Sabe como é: sabadão, feriado, almoço..."

De batina preta e máscara azul protegendo o rosto, o padre João Paulo Rizek, 42, foi outro que enfrentou a chuva para conhecer os objetos. Depois de subir os dois lances das escadas de incêndio do hotel, indicadas pela recepção, abriu a porta da sala como a pedir desculpas: "Senhoras, sou caipira demais. Vi que vai ter o leilão, mas nem sei mexer direito na internet. Por isso quis vir pra cá, para conhecer as peças e também saber se tem outro jeito de adquirir. Está tudo a preço de banana".

Uma das auxiliares decide entrar em cena novamente, dessa vez para ressaltar que se trata de preço inicial. "A gente não consegue mensurar quantas pessoas vão se interessar. E essas peças têm um valor intangível." Intangível, aliás, é a definição sobre o valor das peças repetida algumas vezes pelas pessoas ligadas à promoção e divulgação do leilão e pelo atual proprietário do hotel, Fabrizio Guzzoni, neto do fundador.

Rizek, da paróquia Nossa Senhora Aparecida, na Vila Arapuã, zona sul de São Paulo, também possui algo "intangível" do Grand Ca'D'Oro para chamar de seu. Há muitos anos, como um dos formandos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, sua turma encerrou a festa de formatura com um café da manhã no restaurante do hotel. A advocacia foi abandonada por ele anos depois; a memória daquele dia, não. "Por isso eu queria ter uma lembrança desse hotel. É um hotel muito simbólico da história de São Paulo." E aponta: "queria comprar algo com isso" — o logotipo na peça.

Num primeiro momento, o padre aceita o pedido do TAB para ser fotografado. Permite um clique, inclusive, mas logo retrocede: "melhor não, por favor".

A repórter insiste, mas ele se mantém firme. Também não fala, mas é irmão do ex-secretário de governo do falecido prefeito de São Paulo, Bruno Covas, Rubens Rizek. Um dia antes da morte do ex-prefeito, aliás, o padre esteve no hospital Sírio-Libanês, a pedido da família.

Peças em leilão do antigo hotel Ca'd'Oro, em São Paulo - Deise Machado/UOL - Deise Machado/UOL
Imagem: Deise Machado/UOL

Na Augusta, acima e abaixo

A história do Ca'D'Oro começa em 1953 como restaurante, embora a ideia inicial de seu fundador, Fabrizio Guzzoni (o avô), fosse dar vida a um hotel, o que realmente aconteceu três anos mais tarde. Quase uma década depois, o hotel de Ca'D'Oro passou a Grand Ca'D'Oro, primeiro cinco estrelas de São Paulo, também primeiro a oferecer uma piscina a seus hóspedes.

Entre as décadas de 1970 (quando migrou para a rua Augusta) e 1990, o Ca'D'Oro viveu seu apogeu. Recebeu reis, rainhas, políticos, personalidades, além de anônimos com dinheiro suficiente no bolso para bancar o valor cobrado por uma de suas diárias. Ganhou notoriedade como espaço de elegância e luxo, ponto de encontro da elite.

Engrenagem do cenário urbano, o hotel foi mudando junto com a paisagem e o eixo financeiro paulistano, que se deslocou do Centro, já em acelerado ritmo de degradação, rumo a avenidas como Brigadeiro Faria Lima e Luís Carlos Berrini.

Em 2009, encerrou as atividades de vez e um ano depois leiloou a maior parte do acervo: mobiliário, louças, pratarias, obras de arte, cristais, tapeçarias, roupas de cama e mesa. O pregão, incomparável ao do próximo dia 19, foi também online e envolveu três meses de trabalho dos funcionários da Lance Total, mesma responsável pelo certame de agora.

Ao final de outubro, nada mais restará à venda dos objetos que um dia compuseram a história do hotel. Há ainda o célebre piano de cauda e as obras de arte da escola napolitana, do século 14, mas destes o proprietário não pensa em se desfazer tão cedo. A menos, é claro, que surja uma proposta irrecusável. Dessas que faz um homem de negócios de juízo parar e pensar.