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Homem de duas faces: em Salvador, carioca fugiu de seu passado por 20 anos

Anderson virou Adson e fugiu de seu passado por 20 anos - Rafael Martins/ UOL
Anderson virou Adson e fugiu de seu passado por 20 anos
Imagem: Rafael Martins/ UOL

Alexandre Lyrio

Colaboração para o TAB, de Salvador

15/10/2021 04h00

Em janeiro de 2002, o carioca Anderson Luiz Moreira da Costa entrou em um cartório de registro civil, em Salvador, para nascer de novo. Anderson não tem nada contra o nome de batismo. O que pretendia era se livrar do passado de crimes. Sonhava em ter uma nova vida. E conseguiu.

A nova certidão de nascimento abriu caminho para novos RG e CNH, além de matrícula na universidade, formatura em direito, carteira da OAB, abertura de um restaurante, casamento com uma baiana e filhos. Entrou Anderson no cartório e saiu Adson Moreira de Menezes, sem despertar suspeitas. Nem mesmo a família que construiu desconfiava que havia anos ele era apontado como perigoso traficante de drogas e assaltante de carro-forte.

Anderson - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Ele abriu um restaurante em Salvador e, com outro nome, viveu fugindo de suas sombras
Imagem: Rafael Martins/UOL

Como Anderson conseguiu tirar a nova certidão com outro nome? Ele simplesmente entrou no cartório e disse que nunca havia sido registrado. "É lei. Eles têm que registrar. E assim foi." Só que o chamado "registro tardio" só foi possível, segundo o Tribunal de Justiça da Bahia, porque Anderson levou consigo uma petição judicial, cuja origem não foi revelada.

Adson, personalidade assumida por Anderson há quase 20 anos, teria nascido no dia 7 de julho de 1971. Anderson nasceu, de fato, no Rio, em 23 de setembro de 1970. Nessa história em que o bem e o mal se misturam, não existe resposta para tudo. São duas vidas em um só homem, uma trajetória entre a luz e a escuridão.

Homem 'multifacetado'

Anderson se envolveu com o tráfico de drogas no Complexo da Serrinha, em Madureira, no Rio, e foi preso algumas vezes por porte ilegal de armas. Entre 1994 e 1996, cumpriu seus primeiros anos de cadeia com seu nome real: um inquérito o ligava a uma espécie de consórcio criminoso com traficantes de várias regiões da cidade. Essa parte da história é uma das poucas bem definidas em sua trajetória.

A partir de 1998, é missão quase impossível refazer seus passos com precisão. A polícia afirma que Anderson foi preso pelo menos outras três vezes, portando documentos falsos. Ele próprio não confirma nada. Em 12 de dezembro de 2000, ocorreu o crime pelo qual foi acusado de latrocínio. Na BR-101, 15 criminosos abordaram um carro-forte. O vigilante Alexandre Moreira, de 29 anos, morreu. Foram roubados cerca de R$ 700 mil.

Anderson foi preso meses depois, enquanto voltava de Teresópolis. Jamais confirmou ter participado da ação. No primeiro relaxamento de prisão, articulou sua fuga para Salvador. Dois meses depois de solto, entrava no cartório como Anderson e saía Adson.

Anderson - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Anderson virou Adson e assumiu nova vida
Imagem: Rafael Martins/UOL

Em abril de 2003, já passava temporadas na capital baiana atendendo pelo nome de Adson quando fez uma viagem e foi preso como Anderson, em uma rodoviária no Espírito Santo, dessa vez por associação com o tráfico. Ia ao encontro de uma namorada de seu passado, que era monitorada pela polícia. Obteve novo relaxamento de prisão e, a partir daí, não seria mais encontrado por quase duas décadas.

Colega pacato

Após se estabelecer na capital baiana, trouxe a mãe, Sandra Moreira, para Salvador. Mas, por que Salvador? "Eu já conhecia a cidade. Aqui o cara pode ser pobre, mas dá um jeito de viver bem, mora perto da praia. No Rio é tudo distante. Aqui eu iria ficar de boa."

Sandra sempre soube cozinhar bem. Mãe e filho abriram o restaurante Tropicália, no Pelourinho. Adson se tornou bom cozinheiro, mas, como sempre gostou de livros, estudou e passou no vestibular para direito.

Com o restaurante para dar conta, vivia com pressa. "Eu dizia: 'Adson parece que veio fugido de um morro carioca. Correu da polícia e veio parar aqui. Só vive correndo!'. Hoje, é muito louco saber que essa brincadeira se tornou real", diz o advogado Américo Fontenelle, colega de faculdade na 2 de Julho. César Cabral e Edilene Ferreira, também advogados e ex-colegas, confirmam essas características.

Um dos seus professores, Carlos Martinez, afirma que Adson era "inteligente, participativo e solícito". Adson confirma que fez grandes amizades ao longo do curso. E afirma que se deu bem em Salvador sem usar dinheiro do tráfico. "Pegava carona, não tinha carro. Como é que podem dizer que eu vim com dinheiro?".

Adson aprendeu capoeira e passou a treinar jiu-jítsu. Os colegas de roda e de tatame também o elogiam.

Casou-se e teve um filho com a gerente comercial Fernanda Ferreira, que sempre acreditou que ele se chamava Adson. "Conheço bem o cara que tenho ao meu lado. Não importa se ele tem esse passado. O que importa é que ele mudou."

Como universitário, estagiou no Complexo Penitenciário da Mata Escura analisando processos. Formou-se em 2010, uma das poucas vezes em que, ao lado de outros formandos, permitiu-se ser fotografado. Passou no exame da OAB após a segunda tentativa, um ano depois de se formar. Não atuou em grandes causas.

Em seus quase 20 anos de capital baiana, envolveu-se em apenas um processo, de violência doméstica, em outubro de 2008. O caso foi registrado na 1ª Vara de Violência Doméstica Familiar contra a Mulher.

A vítima seria uma professora de inglês estrangeira e o crime teria ocorrido em um motel. Adson foi denunciado pelo Ministério Público por prática de lesão corporal qualificada. Antes do julgamento, porém, o processo foi finalizado. "Era uma namorada. Ela lutava tae-kwon-do e capoeira. A mulher era valente. Não posso dizer que ela me bateu. Mas foi um desentendimento. Foi uma briga de casal que luta artes marciais, sabe?".

Deixe-me ir

Quando tudo parecia finalmente entrar nos eixos, Anderson voltou a bater à porta de Adson. Em 30 de agosto de 2018, ele foi preso próximo ao restaurante Tropicália. Os policiais vieram do Rio cumprir um mandado de prisão preventiva. Ele desconfia que foi reconhecido e denunciado: afinal, um restaurante movimentado na área turística da cidade não é o melhor lugar para se esconder.

Anderson - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Anderson Luiz Moreira da Costa: capoeira, lutas e uma vida de empreendedor na Bahia
Imagem: Rafael Martins/UOL

"Foi o pior dia da minha vida. Me senti naquela cena de 'Cidade de Deus' em que toca aquela música do Cartola: 'Deixe-me ir, preciso andar...'". Acusação: associação ao tráfico, porte de arma e latrocínio — aquele pelo qual já tinha sido preso.

Levado para Bangu 4, ficou nove meses preso. Trabalhou na biblioteca e deu palestras na cadeia. A acusação de latrocínio não avançou por falta de provas. "Olhei na cara do juiz e disse: 'doutor, eu só quero voltar a viver a vida que eu reconstruí'." Garante várias vezes que não participou do latrocínio. Seu nome, acredita, estava no inquérito porque andava com criminosos. Além disso, o irmão, que tinha um nome muito parecido com o seu, era sempre confundido com ele. Chamava-se Vanderson Luiz Moreira Costa. Foi morto no Rio em 1999, na guerra do tráfico.

Anderson afirma que tudo ficou para trás quando resolveu se tornar Adson. Apenas a mãe sabia da troca do nome. "Imagina como eu me sentia com minha família? Meus filhos só ficaram sabendo depois que fui preso aqui."

Agora que descobriram, nada mudou.

Acusações extras

Em plena pandemia, 2020, o histórico de Anderson voltou a atormentar Adson. Um processo antigo de roubo foi reaberto, e Anderson, condenado. Julgado em primeira instância e com recurso pendente, recorre em liberdade. "Não escondo o que fiz, mas não vou assumir o que não fiz."

Durante a conversa com a reportagem do TAB, ele deu detalhes do seu passado no Morro da Serrinha, algo que não costuma fazer. Ali, Anderson e Adson parecem finalmente construir o mesmo homem, o Carioca. É assim que a esposa aconselha a chamá-lo.

Ele reconheceu que integrou o tráfico e até mostrou fotos de ex-companheiros, quase todos mortos pela polícia ou por rivais. "Fui gerente de Miltinho Baixinho. O cara era bandidão, com um longo histórico no crime. Uma vez ele resgatou 11 companheiros na prisão na Ilha Grande", lembra. "Aqui todo mundo já morreu", diz, apontando para fotos. Revelou que seus primeiros contatos com o crime ocorreram aos 17 anos, em Irajá, onde morava com o padrasto.

Com que nome eu vou?

Assim que foi anunciada a última prisão de Anderson Luiz Moreira da Costa, a OAB - Seção Bahia abriu um processo disciplinar que segue em trâmite para apurar o caso. Em busca recente realizada pelo TAB no Cadastro Nacional de Advogados, a situação de Adson Moreira de Menezes consta como regular. Mas ele admitiu que, após a prisão em 2018, voltou a utilizar os documentos de Anderson.

Sua luta agora é para continuar com registro na OAB, já que, independentemente do nome, cursou direito e passou no exame da Ordem. "Eles me notificaram, mas veio a pandemia e atrasou tudo. Tenho que resolver isso um dia", afirma. Também deve responder a um processo pelo registro falso no cartório. A pena por crime de falsa identidade é de 3 meses a um ano de detenção.

"Hoje eu sou o Anderson, né? Vou fazer minhas alegações jurídicas para tentar utilizar meu diploma e minha OAB. E vida que segue."

Diante da eterna confusão de nomes, a reportagem insistiu. "Mas, então, é Anderson?". "Sou o Anderson no papel, quero dizer. Mas o Anderson transformado. O Anderson com a vida do Adson."