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'Amarração que dá certo': mestra em shibari democratiza prática erótica

Sansa Rope, uma das principais shibaristas do Brasil - Fernando Moraes/UOL
Sansa Rope, uma das principais shibaristas do Brasil
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Marie Declercq

Do TAB, em São Paulo

18/10/2021 04h01

O povo nem piscava para não perder os movimentos de Sansa Rope. Com destreza quase coreografada, ela apertava as cordas de juta bem rentes ao corpo da modelo. A despeito da música alta invadindo o ambiente, a concentração de Sansa parecia à prova de balas. Em poucos minutos, a modelo já estava quase toda amarrada.

No pico da performance, cada extremidade da modelo ficou completamente suspensa, inclusive pelos longos cabelos, pretos e crespos. Tudo foi amarrado e conectado a dois suportes de bambu suspensos do teto.

Sansa, então, moveu as cordas de um lado para o outro, transformando a modelo em um balanço vivo. Aos poucos, foi desatando os nós e desenrolando as cordas, até deixar o corpo da modelo livre das amarrações. A pele ficou levemente marcada pelas cordas. A modelo sorriu e relaxou. Fim da performance de shibari.

A técnica de amarração japonesa tem origem feudal e ligada a uma arte marcial, o hojojutsu, dedicado à restrição por cordas. A prática era usada como forma de tortura ou na captura de prisioneiros. No século 20, o shibari ganhou outros contornos e hoje transita entre o universo do BDSM (sigla para um conjunto de práticas envolvendo bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo) e performances de arte. Ela se popularizou também nas fotografias artísticas de Araki Nobuyoshi e Romain Slocombe.

No Brasil, boa parte dos especialistas na técnica de amarração são homens. Porém, nos últimos anos, cada vez mais mulheres estão assumindo o controle das cordas. Sansa Rope, de 27 anos, é uma delas.

Drinks, petiscos, masmorra e música

O convite para entrar no bar Dominatrix é atraente. Na pequena lousa colocada na porta anuncia, em letras maiúsculas: DRINKS, PETISCOS, MASMORRA E MÚSICA. Nos últimos anos, com a aceitação cada vez maior do estilo de vida fetichista, o Dominatrix foi ampliando o espaço físico e recebendo um público mais variado. O que antes era restrito a festas fechadas hoje é popular o suficiente para disputar espaço com o circuito de bares na região da Consolação, no centro de São Paulo.

Transitando com familiaridade pelo lugar, Sansa Rope ajeita os cabelos pretos enquanto cumprimenta alguns conhecidos que tomam cerveja. Na parede, fotos de dominadoras profissionais e placas pedindo para que os clientes não usem os chicotes decorativos para bater em alguém.

Por influência do ambiente do bar, a performance de shibari trouxe consigo uma carga sexual fortíssima. Sansa (ela prefere não revelar o nome de registro) afirma que, apesar da coexistência entre o erotismo e a prática, sua intenção é conseguir mostrar que é possível desfrutar o shibari (amarrar ou ser amarrado, no caso) sem o contexto sexual.

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Apesar do visual fetichista das fotos, a shibarista prefere fugir da estética dark atrelada ao universo do BDSM e do shibari
Imagem: Fernando Moraes/UOL

De amarrada à amarradora

Sansa nasceu na zona sul de São Paulo e começou a frequentar o universo BDSM aos 18 anos."Não tenho aquela história engraçada pra contar que descobri que gostava de amarrar vendo desenho animado quando criança", conta a shibarista, usando de exemplo algo que ouviu de um cliente recente sobre a personagem de Penélope Charmosa sendo atada pelo Dick Vigarista nos trilhos dos trens.

A primeira vez que Sansa teve contato com cordas foi na posição passiva (amarrada por outra pessoa). "Não senti nada", relembra. "Só pensei 'tá, e daí?'".

Em 2016, quando teve um contato mais sério com o shibari, começou a buscar todo tipo de oportunidade para aprender. Com a carência de material disponível, chegou a modelar para shibaristas homens. "Aconteceu muito de eu pedir para aprender e os caras rirem de mim ou acharem 'fofa' minha vontade", conta. "Hoje, me orgulho em dizer que eu amarro melhor do que todos eles."

Nos últimos quatro anos, Sansa se mantém apenas trabalhando com shibari profissional — em aulas particulares ou em grupo, gravando cursos, escrevendo manuais e atendendo clientes particulares que querem passar pela experiência da amarração. Ela também abriu a primeira loja especializada em shibari, onde vende cordas de fibras naturais, tratadas com cera de abelha e melaleuca — tratamento específico para amarração corporal —, além de tesouras especiais para cortar as cordas em caso de emergência. "Não existia nenhum tipo de 'carreira' no shibari, então decidi eu mesma criar isso dentro desse universo."

Longe do estereótipo

Horas antes de ir ao Dominatrix, Sansa recebeu o TAB no seu apartamento ao som de "Onda" do cantor Cassiano. Seu lar é minimalista, com algumas plantas espalhadas pelo ambiente. A única pista na sala sobre a profissão de Sansa é um tronco de bambu preso com cordas no teto, que ela usa para suspender do chão os clientes amarrados.

Apesar de ser adepta das práticas do BDSM, prefere afastar um pouco de si alguns os clichês vinculados ao sadomasoquismo. "Odeio essa coisa de que tudo tem que ser preto e vermelho", diz, observando a própria sala.

Seu estilo de vida, conta, também é mínimo. Acorda cedo, faz yoga e bebe suco verde. Não gosta de balada, de beber muito álcool, de dormir tarde e de comer mal.

Diz que leva uma vida "baunilha" (termo traduzido do universo BDSM gringo para definir quem não é do meio), mesmo transitando na cena há uma década. Todo dia, recebe convites para ser dominadora profissional, mas diz não gosta de misturar tanto a dominação com o shibari.

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A modelo Bela Violence foi amarrada e suspensa pela shibarista
Imagem: Fernando Moraes

Relações de confiança

O shibari tem apelo visual, mas seu intuito vai além da performance. Para uma boa prática, é necessário ter no mínimo uma noção básica de anatomia e pontos de pressão para causar sensações diferentes no corpo de quem é amarrado. Pode ser dor, prazer ou apenas relaxamento. "Se você sabe fazer com segurança, consegue extrair as sensações e sentimentos que você deseja", explica Sansa. "Quando o corpo está restringido, fica mais sensível e receptivo a isso."

Nas sessões particulares, Sansa perdeu as contas de quantos corpos já passaram pelas suas cordas. A maior procura pelos seus serviços, conta, é de homens que desejam ser amarrados.

Contraditoriamente, não é comum ver fotos ou demonstrações ao vivo com modelos masculinos. "Adoro amarrar homens, mas grande parte deles não gosta muito de aparecer. Tem esse preconceito de associar sempre quem tá sendo amarrado com uma posição de submisso. Isso os afasta."

Sansa diz que há um número crescente de curiosos que a procuram sem intenções eróticas. A tônica é sempre ter uma conversa inicial para combinar os limites de cada cliente. "A gente precisa criar uma relação de confiança."

"Muita gente que eu atendo nas sessões menciona outro tipo de experiência. Às vezes, é quase como se fosse uma meditação, um transe", conta. Do outro lado, controlando as cordas, Sansa descreve o ato como uma meditação também, um hiperfoco em que as cordas viram extensão das suas mãos.

A confiança entre o amarrado e quem amarra foi confirmada na prática. Depois de ser desatada, Bela Violence, 24, stripper e pole dancer que serviu de modelo na performance, pediu alguns segundos para tentar descrever a sensação.

"É difícil de explicar, porque o desconforto da restrição é justamente o que eu gosto", explica. "Até que ela te solta, e aí a sensação é de um relaxamento completo, como semeu corpo não tivesse peso algum." Para ela, a interação com a shibarista é "a cereja do bolo". "Ela pode fazer tudo que eu vou confiar", afirma.

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Performance de amarração foi realizada em um bar fetichista em São Paulo
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Amarração que dá certo

"Vocês são do TAB, né?", um dos espectadores pergunta, enquanto aguarda o início da aula de Sansa. Reconhecendo o apreço do canal do UOL por assuntos não muito tradicionais, contou que sempre se interessou pela prática do shibari, mas nunca teve tempo de se encontrar nas cordas. "Mas pode dizer que é uma amarração que dá certo", disse ele, rindo.

O público que pagou de R$ 100 a R$ 150 por 1h de apresentação e 2h de workshop no Dominatrix é variado. Havia desde casais héteros monogâmicos a curiosos solitários.

Para Sansa, a presença de pessoas que normalmente não teriam contato com o BDSM é uma vitória. "O que eu quero é fazer o shibari acontecer. Quero que ele se torne um movimento e continue, mesmo que eu pare. Que as pessoas aprendam a fazer com segurança."