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A vida 'Big Brother' de uma brasileira sob o regime 'covid zero' na China

Fila de testagem em massa em Xian, na China  - Carla Viveiros/UOL
Fila de testagem em massa em Xian, na China
Imagem: Carla Viveiros/UOL

Carla Viveiros

Colaboração para o TAB, de Xian (China)

27/10/2021 04h01

Desde que admitiu ao mundo que um novo coronavírus tinha saído do controle em Wuhan, capital da província de Hubei, a China foi duríssima da porta para dentro.

Toda vez que surge um registro de contaminação numa cidade, a adoção da política de zero caso — "covid zero" — bagunça a rotina dos cidadãos.

Na verdade, vai além disso — e é pior: se alguém contaminado com covid-19 apenas passar por uma localidade, os alarmes soam e todo mundo entra em modo de prevenção. Tem sido assim há 20 meses. O protocolo implementado desde a saída da crise inicial atravessa aspectos importantes da cultura chinesa, como a dos feriados nacionais.

Assim que confirmado um caso de transmissão local, o primeiro passo é localizar todos que tiveram contato com aquela pessoa. Isso é feito pelos QR codes que somos obrigados a apresentar em shoppings, mercados, transportes públicos, hospitais, prédios do governo, condomínios, atrações turísticas, prédios comerciais.

Cada cidade e província tem seu próprio código. Quando você viaja, deve apresentar o QR code do lugar onde estava antes. Esses códigos operam em um sistema de cores e contêm informações sobre a vacinação e o último teste de covid-19 realizado pelo usuário.

Todas as pessoas que estiveram no mesmo local que o contaminado são avisadas por SMS que estão em perigo e precisam ser testadas em até 48 horas. Se o indivíduo não fizer o teste, o código sai do verde e vai para o amarelo: com ele, sua circulação fica comprometida. Empregados deixam de ir trabalhar — e quem não trabalha não ganha. É impossível ter permissão de ficar em algum local fechado ou de grande circulação.

No dia 16 de outubro, Lucila Dias, brasileira que, como eu, mora em Xian, foi almoçar num shopping com o marido e as filhas. Era domingo. Uma semana depois, ela e a família receberam mensagens avisando que um casal de idosos contaminados passou pelo shopping na mesma hora. Tiveram de fazer teste PCR para covid-19. A família não se ligou em fazer o teste a tempo. Seus códigos caíram para o amarelo. Fazê-lo voltar para o verde é um processo que envolve isolamento, alguma espera e dois testes negativos no intevalo de 48 horas.

Ruas de Xian, lotadas de gente para testagem em massa de covid-19 - Carla Viveiros/UOL - Carla Viveiros/UOL
Ruas de Xian, lotadas de gente para testagem em massa de covid-19
Imagem: Carla Viveiros/UOL

'Big Brother' da coletividade

Fazer isolamento na China vale um tópico à parte. Boa parte das moradias no país se organiza em condomínios. Mais luxuosos ou mais simples, mais degradados ou novos em folha: tudo é sobre a comunidade onde você mora. As casas são propriedades privadas, mas o poder do Estado chinês se sobrepõe e se vale da organização das administradoras de imóveis para fazer o controle pandêmico. Se alguém do seu condomínio for contaminado, todo o seu condomínio será isolado e testado.

Além disso, mesmo que ninguém esteja com covid-19, as cidades conduzem testes em massa assim que surge um caso. Sim, cidades inteiras, milhões de pessoas, em poucos dias. É impressionante ver uma cidade como Pequim (25 milhões de habitantes) testando todos os seus residentes. Já houve pelo menos 3 surtos na cidade, ou seja, todos os seus moradores já se testaram pelo menos 3 vezes desde que a pandemia começou. Em tempo: o último "surto" teve pouco menos de 20 resultados positivos para a doença. A paz só volta quando param de surgir novos casos.

Nos dias de testagem em massa, protocolos de segurança que já se tornaram parte do dia a dia são intensificados. O uso de máscara passa a ser obrigatório até ao ar livre. A apresentação do QR code é cobrada também na entrada do seu condomínio. Cinemas e karaokês são fechados, e locais de contato próximo, como spas e casas de massagem, só atendem mediante teste de covid-19 negativo nas últimas 48 horas.

O casal de idosos que fez a família de Lucila Dias "amarelar" empreendeu uma verdadeira turnê pelo país e instaurou um certo caos nas últimas duas semanas. Vindos de Xangai, os aposentados juntaram-se a uma excursão e passaram pelo interior da Mongólia, onde provavelmente foram infectados. Ao saírem do local, fizeram o exame de covid-19 e apresentaram resultados difíceis de avaliar.

Foram orientados a se isolar por lá mesmo, mas queriam seguir viagem. Por isso, fizeram novas PCRs em outro hospital local e partiram. Chegaram a Xian e foram passear. Passaram por locais históricos, mercados, templos e restaurantes. Para seguir viagem, foram testados novamente. Naquela hora, os testes detectaram a infecção e o protocolo de segurança foi iniciado.

No dia seguinte, havia tendas de testagem em todos os condomínios da cidade. O mecanismo é simples: você lê seu QR code, o computador conecta suas informações ao código de barras da amostra e pronto. O resultado do teste de PCR gratuito sai em 24 horas.

A responsável pelo meu prédio, algo como uma síndica, me avisou que as tendas ficariam ali pelo tempo necessário. No primeiro dia, eles ficaram até as 2 da manhã. No segundo dia, recolheram tudo às 20h, mesmo comigo lá, pedindo para ser testada. As filas durante o dia eram enormes, e eu trabalho fora. Sabia que iam exigir a testagem, então me programei para ir ao final de semana a um hospital e resolver isso. Não deu tempo.

Na última sexta-feira (22), recebi mensagem da síndica: quem não se testasse nas próximas 24 horas teria o código automaticamente levado para o amarelo. Junto ao aviso vinha uma lista de tendas 24h do bairro para realizar a testagem.

Fui ao mais próximo para não cair no limbo amarelo. Cheguei às 18h30 e a fila estava enorme. A maioria dos que aguardavam eram trabalhadores da construção civil. O bairro onde moro cresce rapidamente. Estes construtores habitam os prédios recém-inaugurados, trabalhando em turnos que transformam a cidade num canteiro de obras 24 horas, 7 dias por semana. Muitos moram em apartamentos dentro dos mesmos condomínios que ajudaram a construir, em dormitórios com até 12 pessoas.

Testes para covid-19 em massa, em Xian - STR/AFP - STR/AFP
Imagem: STR/AFP

O medo do outro

A recente onda de casos veio acompanhada de um feriado nacional, a segunda maior pedra no sapato da política de zero caso chinesa. O país tem poucos feriados, mas eles são sempre nacionais e longos. Duram de 3 a 7 dias e promovem uma enorme movimentação no país.

Grandes e médias cidades são povoadas principalmente por migrantes, que chegam para trabalhar e/ou estudar. Com isso, os feriados são palco de movimentos migratórios sazonais impressionantes. O maior deles, o Ano Novo Lunar ou o Festival da Primavera, entre janeiro e fevereiro, leva pelo menos 1 bilhão de pessoas a viajar. Sempre que os feriados chegam, os casos surgem logo depois. O governo faz o que pode para passar uma ideia de normalidade segura, e promove campanhas para que as pessoas não viajem durante esses feriados. Nem sempre consegue convencer.

A primeira e maior pedra no sapato é, de fato, o fechamento das fronteiras. A China está fechada sobre si mesmo. Estimativas otimistas dizem que veremos uma flexibilização no segundo semestre de 2022. Os mais pessimistas jogam para 2024.

Dois desdobramentos têm sido curiosos de observar como estrangeira: o primeiro é uma certa xenofobia crescente. Já vivi situações em que chineses não pegaram o elevador por me ver lá dentro (e de máscara), além do reflexo automático de alguns em, ao notar a presença de um estrangeiro, colocar a máscara no rosto.

Amigos já foram impedidos de alugar apartamento porque o condomínio não estava aceitando estrangeiros, não puderam entrar em alguns restaurantes, e já presenciei uma fila de chineses entrar em um shopping sem máscara e sem apresentar QR code, mas quando chegou a minha vez de entrar, ambos os protocolos foram cobrados.

É curioso observar isso, porque quando cheguei aqui, quatro anos atrás, ser estrangeiro na China era quase como ser famoso. Tiravam fotos escondidas ou te paravam para fotografar, contratavam estrangeiros para comer de graça em restaurantes recém-inaugurados, só para chamar atenção. Agora somos vistos como possíveis portadores do vírus.

Muitos dos expatriados atrelam esse comportamento à forma com que os casos são reportados à população. Os infectados vindos de fora da China são anunciados como "casos importados", e o uso desse termo gera a ideia de que são estrangeiros que trazem a doença. Mas a maioria esmagadora é trazida pelos próprios chineses — por serem cidadãos, têm autorização para entrar e sair do país com certa tranquilidade, já que visitantes são obrigados a chegar ao país e quarentenar. Como os casos importados estão sempre em maior número, instaura-se um clima acusatório.

A transmissão local é assustadora para as autoridades chinesas, já que o controle de entrada no país é restritivo e rígido. Se há transmissão local, algo nesse protocolo falhou.

Morar na China não é fácil, e todos os expatriados afirmam precisar de respiros da vida por aqui — viagens internacionais pelos paraísos do sudeste da Ásia, ou um tempo em suas casas, revendo família e amigos. A pressão de não poder pegar esse fôlego tem levado muitos estrangeiros a deixar a China, depois de anos vivendo aqui. Mesmo que esteja o mais perto possível da normalidade, a vida na China ficou muito mais regrada e repleta de solavancos.