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Memória da mais longa greve operária do Brasil segue viva em Perus (SP)

Angélica Müller, educadora nascida em Perus e uma das articuladoras do Centro de Memória Queixadas - Carine Wallauer/UOL
Angélica Müller, educadora nascida em Perus e uma das articuladoras do Centro de Memória Queixadas
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Adriana Terra

Colaboração para o TAB, em São Paulo

04/04/2022 04h01

"Fique onde estiver ou entre na casa do primeiro conhecido" era a orientação que Wilma Bernardo da Silva, 63, então criança, recebia dos pais em meados dos anos 1960 caso visse soldados na rua ao sair para buscar água nos arredores da vila em que morava em Perus, distrito do extremo noroeste da capital paulista.

"Olha, tem um vindo ali", dizia à irmã. E ambas corriam pelas trilhas que conheciam das brincadeiras diárias até chegar em casa. O que hoje é um fio que Wilma puxa na lembrança fazia parte, seis décadas atrás, da rotina de crescer em meio à mais longa greve operária do Brasil, ocorrida na maior parte durante a ditadura. "O que eu trouxe dessa época foi que me tornei uma pessoa que também quer lutar pelas coisas", diz Aparecida Pedroso Barbi, 69.

Antiga Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924  - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Aparecida Barbi, filha de operário, na frente do Centro de Memória Queixadas - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Aparecida Barbi, filha de operário, na frente do Centro de Memória Queixadas
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Tanto Wilma quanto Aparecida são filhas de operários que trabalharam na Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924 no distrito que cresceu com a indústria. Fechada desde 1987, ela foi tombada como patrimônio histórico em 1992 e, desde então, sua transformação em um espaço público cultural é reivindicada. Hoje ela é cenário de produções audiovisuais como o clipe "A Queda", de Gloria Groove, e a série "Sintonia" (Netflix), mas sua visitação para falar sobre a trajetória dos trabalhadores ainda encontra obstáculos.

Com um diálogo entravado com os proprietários, um centro de memória operária foi inaugurado em março na biblioteca municipal local, a fim de não perder de vista uma história que marca a vida de muita gente ali, como Wilma e Aparecida.

Centro de Memória Queixadas - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Centro de Memória Queixadas
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Centro de Memória Queixadas - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
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Cimento que ergue cidades

Após sete anos de passeatas e greves de fome por melhores salários e condições em um lugar dominado pelo pó de cal, os mais de 500 operários intitulados Queixadas — nome de um porco do mato que se une em bando e bate o queixo ao sentir perigo — conquistaram em 1969 direitos importantes, como o recebimento do salário reajustado, a possibilidade de retorno ao trabalho e o reconhecimento de que a paralisação era legal. Para se ter dimensão da relevância da fábrica à época, foi dali que saiu o cimento que ergueu os viadutos da Avenida Nove de Julho, a Biblioteca Mario de Andrade e trechos da rodovia Anhanguera.

Sentado na escada da casa que construiu após se aposentar, Carlos Bernardo da Silva, pai de Wilma, costumava passar tempo olhando para o local onde trabalhou por 33 anos. "Ele me falava que gostaria de ver isso tudo entregue para a comunidade conhecer", conta a filha. Vindo da cidade de Elói Mendes (MG), ele começou como auxiliar de operário e chegou ao cargo de analista químico.

Antiga Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924  - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Antiga Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Antiga Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924  - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Durante a paralisação, no entanto, por vezes havia apenas água e milho à mesa da família. A mãe de Wilma foi trabalhar fora para ajudar. A mesma coisa se deu com Aparecida: a mãe foi lavar roupas em uma padaria. "Existem mulheres que costuraram o tempo todo, sabe?", conta ela.

Uma das articuladoras do Centro de Memória Queixadas, Angélica Müller, 27, atriz e educadora nascida em Perus, ressalta a importância das mulheres na greve. Wilma se recorda da história contada pelo pai, quando em uma assembleia ela, bebê, estava no colo dele. Acusado por um militar de usar a criança como escudo, ele quis passá-la para a mãe. Sabendo do risco da situação, ela não a pegou.

"Estava num ponto sem limite. Mas eles tinham a linha que o doutor Mário Carvalho de Jesus (advogado do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Cimento Cal e Gesso) trazia, da não-violência ativa", diz ela. O lema dos Queixadas, hoje escrito em paredes da fábrica, deriva dessa filosofia: Firmeza Permanente.

Antiga Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924  - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Antiga Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924  - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Antiga Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Poder conhecer onde se vive

Seguir de maneira firme e contínua também guia a atuação do centro de memória, iniciativa derivada do Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento. "Mesmo depois da greve os Queixadas continuaram conversando, se articulando, e como um desdobramento deles nasce o Movimento", conta Angélica.

"Eles foram além do sindical. Meu avô, por exemplo, era do conselho tutelar, de saúde", diz Sheila Moreira, 39, jornalista e neta do operário Sebastião Silva de Souza - que dá nome ao centro de memória. Para ela, falar do tema é contextualizar a trajetória do lugar. Se antes a maioria dos moradores de Perus estava ligada à fábrica, com o fechamento dela vieram novas migrações. "Acho importante a pessoa chegar aqui e entender esse processo de formação e modificação do bairro, e que agora a história dela está entrelaçada a isso", diz.

"Democratizar a memória para a população periférica é um ponto-chave, inclusive para a autoestima do cidadão que começa a compreender que não está ali por acaso", complementa Angélica. A arquiteta Patrícia Barbosa, 33, também parte do projeto, chegou a Perus em 1996. "Eu não nasci aqui. Então acho que é mais questão de a gente se sentir pertencente ao bairro e poder se apropriar da história."

Em um ano em que se completam seis décadas do início da greve, após esforços para colocar de pé o projeto, apoiado pela Lei de Fomento à Cultura da Periferia, o grupo pretende se concentrar na divulgação local do acervo. Tanto no espaço físico quanto no site há relatos, documentários, fotografias, livros e trabalhos acadêmicos.

A arquiteta Patrícia Barbosa, 33, também parte do projeto, chegou a Perus em 1996 - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
A arquiteta Patrícia Barbosa, 33, também parte do projeto, chegou a Perus em 1996
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Sheila Moreira, 39, jornalista e neta do operário Sebastião Silva de Souza - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Sheila Moreira, 39, jornalista e neta do operário Sebastião Silva de Souza
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Antiga Fábrica de Cimento Portland Perus, inaugurada em 1924  - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Memória viva entre ruínas

"Não adianta estrangeiros visitarem aqui se os moradores não conhecerem", diz Angélica, enquanto caminha pela fábrica. Sheila conta que chegou a fazer roteiros, mas teve dificuldade. "Eles criaram um pouco essa briga com o Movimento quando viram que a gente falava dos Queixadas", diz a atriz e educadora, referindo-se à administração do espaço.

Trinta anos após o tombamento, além do abandono do maquinário é possível ver grandes poças d'água, teias de aranha, marcas de paintball nas paredes. Animais de sítios vizinhos são alguns dos raros seres que passeiam por lá. No laboratório, ainda há sacos de cimento de quando o local estava em atividade.

"A proposta mais próxima que conseguimos aqui foi a de um museu da indústria", conta Angélica. No entanto, para o grupo não se trata apenas de manter as paredes do lugar, mas preservar a memória de seus trabalhadores. Dono da fábrica durante a greve, José João Abdalla comprou a Portland de empresários canadenses e, em sua trajetória, chegou a ser preso por não pagar impostos. O local ainda é da sua família. "Eu acho que eles estão esperando cair", lamenta a educadora.

Alda Giovanni, 83, última moradora da Vila Triângulo - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Alda Giovanni, 83, última moradora da Vila Triângulo
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Distrito de Perus cresceu em torno da indústria - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Distrito de Perus cresceu em torno da indústria
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Na Vila Triângulo, a única ainda em pé - as demais foram retiradas do tombamento em uma revisão da lei em 2004 -, uma mulher observa o raro movimento daquela tarde apoiada em um portão baixinho. Alda Giovanni, 83, chegou ao local com três meses de idade. Pai, irmãos e avô trabalharam na Portland como mecânicos e soldadores por décadas. Depois que o irmão e o vizinho morreram, nos últimos quinze anos, tornou-se a última moradora dali, em acordo com os proprietários.

Há décadas aposentada após um acidente, Alda também ajudou sua casa durante a greve. A lembrança das dificuldades divide espaço com a saudade do convívio. "Aqui tinha muita gente, muita criança. Todo sábado tinha baile, tinha parquinho, circo, quermesse. E eu cresci assim", conta. "Graças a Deus estou lúcida."

A memória viva contrasta com o vazio da vila e vai dando sentido ao espaço. Um sentido central para o trabalho que Sheila, Angélica e Patrícia estão construindo. "Acho que esse é nosso trunfo: de alguma forma deixar que as pessoas conheçam a fábrica mesmo sem entrar nela", diz a jornalista.