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'Loucura é verso': o Carnaval fora de época nas ruas de Ouro Preto

"Desmascarando a hipocrisia, loucura é verso e liberdade, poesia!" foi o enredo do ano do Bloco Conspirados, de Ouro Preto (MG) - Vanessa Oliveira/UOL
'Desmascarando a hipocrisia, loucura é verso e liberdade, poesia!' foi o enredo do ano do Bloco Conspirados, de Ouro Preto (MG) Imagem: Vanessa Oliveira/UOL

Marcelo Afonso

Colaboração para o TAB, de Ouro Preto

19/05/2022 04h01

"Loucura não se prende! Saúde não se vende!", ecoava pelas ruas de Ouro Preto (MG) nesta quarta-feira (18), Dia da Luta Antimanicomial. O brado vinha do Bloco Conspirados, formado por profissionais e usuários dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) das cidades de Ouro Preto e Itabirito. Misto de protesto e Carnaval fora de época, o ato reuniu cerca de 160 pessoas.

Carregando estandartes e bonecos conhecidos como "catitão", entre pandeiros e maracatus, o grupo se reuniu em frente ao Museu da Inconfidência e seguiu em ritmo de frevo, com marchinhas repercutindo num carro de som, até o alto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, trajeto com pouco mais de 1 km.

Surpresos com a folia, a primeira realizada pelo grupo desde o início da pandemia de covid-19, muitos comerciantes e moradores do centro histórico foram até as calçadas para conferir o que se passava — e responderam com acenos e beijinhos aqui, buzinas contra o trânsito congestionado acolá.

Pré-pandemia, o Bloco Conspirados foi às ruas desde 2000. Surgiu de um movimento orgânico, sem liderança, mas com trocadilho: "conspirados" carrega o som de "com os pirados". Desta vez, o enredo foi "Desmascarando a hipocrisia, loucura é verso e liberdade, poesia!", mas nas ruas da cidade histórica outra frase fez as vezes de refrão: "Fora, Bolsonaro".

Bloco Conspirados, de Ouro Preto - Vanessa Oliveira/UOL - Vanessa Oliveira/UOL
O bloco é formado por profissionais e usuários de centros de atenção psicossocial de Ouro Preto e Itabirito
Imagem: Vanessa Oliveira/UOL

Casa dos Artistas

O dia de folia envolveu muitos preparativos no Caps 2 de Ouro Preto, uma unidade que visa substituir hospitais psiquiátricos, atendendo pessoas com transtorno e sofrimento mental severo e persistente em liberdade. Desde 2019, o espaço é conhecido como Casa dos Artistas, nome escolhido para homenagear Nise da Silveira, uma das precursoras do tratamento terapêutico através da arte.

A Casa dos Artistas fica num casarão colonial, antigamente conhecido como Solar Diogo de Vasconcelos. A estrutura foi adquirida pelo governo municipal em 1967 — na época, a construção abrigava artistas e celebridades em visita à cidade histórica — e, em 2001, o prédio foi cedido para o funcionamento do primeiro centro de atenção psicossocial.

Ao longo de quatro semanas, profissionais e usuários se dedicaram aos preparativos para o ato de 18 de maio. A oficineira Simone Falconi, profissional que acompanha os usuários nas atividades artísticas, orientou a produção de estandartes, bonecos e demais objetos que eles usaram para se fantasiar. "Não temos por objetivo a cura, mas que eles se conheçam e se respeitem melhor. Só assim podemos pensar em reintegração", diz ela.

Segundo a equipe, a maioria das pessoas que procuram a Casa dos Artistas são mulheres negras, com ensino fundamental incompleto e de baixa renda. Claudiane Silva, 42, é uma dessas mulheres. Depois de relatar ouvir vozes, ela foi encaminhada ao Caps para "um tratamento especializado". Os sentimentos persecutórios vieram aos 29 anos, após dar à luz sua quinta filha.

Hoje, ela recebe medicamentos no centro e é acompanhada por uma equipe interdisciplinar. Na Casa, almoça, pinta e borda, o que às vezes pode render algum dinheiro. No fim do dia, vai embora para a família. "Mais calma e forte para encarar o que for preciso", afirma.

Claudiane foi às ruas junto aos dois filhos mais novos, uma garota de 13 e um garoto de 15 anos. Animou-se com a passeata. "Fiquei feliz por ver tantas pessoas aderindo à causa", comentou, "mesmo aqueles que disseram que estavam com vergonha de ir às ruas".

Bloco Conspirados, de Ouro Preto - Vanessa Oliveira/UOL - Vanessa Oliveira/UOL
'Fiquei feliz por ver tantas pessoas aderindo à causa', disse uma das participantes do bloco
Imagem: Vanessa Oliveira/UOL

'No mundo lá fora'

Ainda há um estigma contra pessoas com transtorno e sofrimento mental — e com a ideia de loucura. "É uma dificuldade em lidar com a diferença", comenta Clarice Paulon, psicanalista e professora da USP (Universidade de São Paulo).

Atos como os de 18 de maio buscam dar visibilidade ao movimento antimanicomial, que defende de direitos de pessoas com sofrimento mental e se posiciona contra a ideia de que elas devam ser isoladas em manicômios.

"O delírio é parte da subjetividade dessas pessoas. Um dos muitos pressupostos da luta é compreender que esse é um modo de estar no mundo, para que a loucura deixe de ser desorganizadora e passe a ser estruturante dessas vidas", acrescenta a terapeuta ocupacional do Caps 2, Suzana Gontijo.

Ouvir o que os usuários têm a dizer é o principal recurso para ajudá-los a fortalecer vínculos sociais e afetivos "no mundo lá fora", destaca ela.

O tratamento em liberdade quer dizer que os usuários passam o dia na unidade e depois voltam para suas casas. "É uma realidade recente e não deve ser tratado como dado, garantido", pondera a oficineira Simone.

Elaine Araújo, 27, por exemplo, é usuária da "permanência-dia", modalidade que garante acompanhamento de segunda a sexta.

Diagnosticada com transtorno afetivo bipolar, no centro ela participa de oficinas terapêuticas para reabilitar atividades do cotidiano, tais como coser, saber usar o transporte público ou gerenciar as finanças. "Isso é importante porque práticas simples podem se tornar complexas quando uma pessoa se encontra dissociada de seu espaço", conta a terapeuta Suzana.

Elaine está determinada a estudar educação física na Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto). "Vou ser uma professora muito boa, porque vou tratar todo mundo, com transtorno ou não, sempre com muito respeito", afirma.

Claudiane, por sua vez, gostaria de arranjar um novo emprego, seu sonho. "Desde que seja leve, não quero mais sofrer carregando peso", acrescenta, em tom de brincadeira. Para ela, o importante é viver um dia de cada vez. "A gente nunca sabe até quando vai estar viva, né?"