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Ambrosina, a ama negra que 'ousou' amamentar o próprio filho e foi presa

Ambrosina, retratada pela artista Renata Felinto na "Enciclopédia Negra" (Companhia das Letras) - Renata Felinto
Ambrosina, retratada pela artista Renata Felinto na 'Enciclopédia Negra' (Companhia das Letras) Imagem: Renata Felinto

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

31/07/2022 04h01

Ambrosina foi uma mulher negra, mãe e escravizada. Uma ama de leite acusada de assassinar Benedito, o filho dos patrões, por preferir amamentar o próprio filho, também batizado de Benedito.

Uma mulher negra incumbida de cuidar e amamentar os filhos dos patrões, bem podia ser 2022, quando babás, empregadas domésticas e cuidadoras de creches particulares se veem impelidas a negligenciar seus próprios filhos para enfrentar jornadas longas de atenção às proles da elite.

Mas a história de Ambrosina é mais antiga: foi no século 19 e fragmentos de sua biografia só sobreviveram porque ficaram registrados num processo judicial — documentação descoberta no Cartório de Terras e Anexos de Taubaté (SP) pela historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo e da Universidade de Reading, no Reino Unido. Hoje, o processo está no Arquivo Histórico Felix Guisard, de Taubaté.

Ambrosina pode ter escapado da invisibilidade histórica, mas seguiu sem sobrenome, sem data de nascimento, sem data de morte. O que se sabe sobre ela é o que o processo eternizou: era negra e nascida no Brasil, vivia em Mogi Mirim (SP), foi escravizada e seu primeiro senhor era um aristocrata que tinha nome, sobrenome e título, "doutor" Alexandre Coelho.

Amas no mercado

"Ambrosina era uma escravizada solteira, mucama e analfabeta. Seu suplício se iniciou quando o juiz municipal de Mogi Mirim, Benedito Fidadelfo de Castro (1856-1929), fez uma viagem e hospedou-se durante uma temporada em Taubaté, logo após o nascimento de seu segundo filho, de nome Benedito. Foi dele a ideia de contratar a ama de leite", pontua o verbete dedicado a ela na "Enciclopédia Negra" (Companhia das Letras), de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz.

Maria Helena explica o busílis. Quando nasceu a segunda criança do casal Castro, a esposa não conseguiu se recuperar bem do pós-parto. Os indícios eram de que ela teve "uma depressão debilitante", pois "ficava trancada no quarto, incapacitada". Isso tudo entre 1886 e 1887, pouco antes da Lei Áurea (1888), que aboliu a escravatura.

O juiz de Mogi Mirim decidiu que era melhor passar uma temporada em Taubaté, onde viviam, na mesma casa, seu irmão, pároco da cidade, e sua mãe. Ali, pensou, estariam amparados. Partiram o casal, um filho mais velho e o bebê recém-nascido. "Como a mãe não estava amamentando, contrataram uma ama de leite", diz a historiadora.

Não era uma situação sui generis. "Em geral, as mulheres brancas não amamentavam, mesmo com a ascensão dos discursos médicos sobre a importância da amamentação. Elas compravam ou alugavam uma ama de leite. Havia um mercado constituído de amas de leite, escravizadas e, depois, mulheres libertas e mulheres livres", explica.

As amas eram separadas de seus filhos, que acabavam entregues a orfanatos ou deixados com alguém. Eram mulheres negras escravizadas, que muitas vezes moravam na casa de seus patrões. "Até mais que alimentar, que dar de mamar aos filhos de seus amos, elas eram responsáveis pelos cuidados dessas crianças", acrescenta o historiador Francisco Phelipe Cunha Paz, pesquisador da Unicamp. "Eram submetidas a uma jornada intensa de cuidado dos filhos, o que acabava por obrigá-las a descuidar dos seus próprios."

Dois Beneditos

No caso de Ambrosina, foi diferente. Ela foi autorizada a levar junto seu filho para a casa dos senhores em Taubaté. Só que passou a ser acusada reiteradamente de preterir o Benedito branco em privilégio de seu Benedito negro.

'Mãe Preta' (1912), de Lucilio de Albuquerque - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
'Mãe preta' (1912), de Lucilio de Albuquerque
Imagem: Wikimedia Commons

No processo judicial, há trechos que destacam que ela agia de "má vontade sobre o menino, mostrando-se sempre contrariada, quando se lhe mandava amamentar a criança". Aos poucos, os senhores brancos também passaram a dizer que ela era "feiticeira".

O leite de Ambrosina era insuficiente para dois. Entre choros de cá e lá, os patrões insistiam: ela cuidava mais do seu Benedito do que do deles. Foi quando a ama utilizou uma fralda com a intenção de amenizar o choro do bebê branco. Ele morreu, sufocado. A ama foi presa por homicídio.

Ao longo das interpelações judiciais, insistia inocência: "tanto estimava o menino", dizia, que "seu próprio filho só mamava" tarde da noite, quando o branco já estava saciado e dormindo. Depois, conforme conta Maria Helena, Ambrosina foi absolvida por falta de provas.

Que horas ela volta?

Não se sabe o destino de seu filho Benedito, tampouco quem cuidou dele durante o período da prisão da mãe. E não se sabe o destino de Ambrosina, o que se tornou após a Lei Áurea, quando e onde morreu. Sua história se resume aos autos do processo.

Karoline Maia, cineasta - Cat Tenório/Divulgação - Cat Tenório/Divulgação
Karoline Maia, diretora de 'Aqui não entra luz'
Imagem: Cat Tenório/Divulgação

O que se sabe é que Ambrosina não foi a última mulher negra a se ver nessa situação. "Essas relações de mando e de separação existem, em muitos traços, entre mães e babás de hoje, uniformizadas na intimidade das casas", compara Maria Helena, lembrando do filme "Que horas ela volta" (2015), da cineasta Anna Muylaert, que conta a história de Val, que deixa a filha em Pernambuco para trabalhar como empregada doméstica de uma família de classe média alta em São Paulo.

"São relações extremamente opressivas. Há toda uma instituição de assimetria de mando, de intimidade e opressão, materializada no quarto da empregada, na gestão das folgas, da separação da família?", acrescenta.

"Quartos de criada" marcaram a maioria dos projetos arquitetônicos da elite brasileira a partir do fim do século 19, um tipo de repaginação das antigas senzalas com o fim da escravatura, identificou o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador na Unicamp e na Universidade de Estrasburgo, na França. "Há uma lógica de falsa integração [com o convívio familiar dos senhores], mas o que está sendo solicitado ali é que ela [a trabalhadora doméstica] acabe vivendo ali", analisa.

"Comportamentos racistas, escravocratas e excludentes estão nas pequenas coisas", comenta a cineasta Karoline Maia, filha de empregada doméstica e autora do filme, ainda inédito, "Aqui não entra luz", sobre os "quartinhos de empregada" que reproduzem no século 21 a vida de Ambrosinas contemporâneas. "Há violências que parecem quase invisíveis, mas quem as observa consegue identificar."