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Choro, confissão e mea-culpa: como se recupera um agressor de mulheres

Equipe do MAN Rio Preto e voluntários do MAN Tabapuã, que fazem trabalho destinado à ressignificação da masculinidade de homens envolvidos em violência doméstica no interior de São Paulo - Reprodução/Facebook
Equipe do MAN Rio Preto e voluntários do MAN Tabapuã, que fazem trabalho destinado à ressignificação da masculinidade de homens envolvidos em violência doméstica no interior de São Paulo
Imagem: Reprodução/Facebook

Rodrigo Ferrari

Colaboração para o TAB, de Tabapuã (SP)

05/08/2022 04h01

Nas noites de quinta-feira, cerca de 20 homens com histórico de violência doméstica costumam se reunir em Tabapuã, no interior de São Paulo. Eles estão ali para chorar, compartilhar sentimentos e discutir os efeitos do machismo nas suas vidas, conforme propõe o projeto MAN (Masculinidades Ampliando a Natureza), que tenta, segundo seus idealizadores, "quebrar paradigmas em uma sociedade desigual e patriarcal".

A iniciativa surgiu em São José do Rio Preto (SP), em 2019, e está na terceira edição na comarca de Tabapuã, que engloba Novais e Catiguá — juntas, as três cidades têm cerca de 27 mil habitantes. O projeto integra o Flor de Lis, um programa maior encabeçado por Poder Judiciário e Ministério Público, em parceria com as três prefeituras, e que conta com ações em diversas áreas para combater a violência de gênero, diz a gestora do Departamento de Assistência Social de Tabapuã, Alessandra Alves Simões Adegas.

O MAN funciona em moldes que lembram os Alcoólicos Anônimos, com reuniões em que os participantes têm a oportunidade de desabafar e ouvir os demais. Entretanto, o primeiro passo não vem da vontade própria do participante, mas da livre e espontânea pressão do Judiciário: ali, frequentar as reuniões é obrigatório para eles, na condição de agressores de mulheres. A ideia de fazê-los participar dos grupos partiu da juíza Patrícia da Conceição Santos e da promotora Bruna Buck.

Na quinta-feira 21 de julho, o assunto do dia era paternidade. "Eu sei que, para mim, no fim das contas, até que foi bom ter apanhado do meu pai, porque me eduquei. Mas não quero isso jamais para minha filha", disse um dos homens, na casa de 50 anos, aproveitando uma das deixas.

O clima das conversas é até animado. "Quando a gente chega no MAN, está todo mundo revoltado. Antes de o primeiro encontro começar, o pessoal do lado de fora dizia que não iria abrir a boca. Mas, lá dentro, você chora, fala tudo. Não tem jeito", diz Rodrigo*, 38, um dos frequentadores do grupo atual, incluído no projeto devido a uma denúncia de agressão cometida contra uma ex-namorada.

"A maioria não tem vontade de participar no princípio. Devido à cultura machista, muitas vezes eles nem se veem como agressores. Mas novos encontros vão ocorrendo, e eles acabam admitindo os próprios erros", conta o psicólogo Edgar Correia da Silva.

Integrantes das equipes técnicas da Assistência Social de Tabapuã (SP), que atuam no programa Flor de Lis - Rodrigo Ferrari/UOL - Rodrigo Ferrari/UOL
Integrantes das equipes técnicas da Assistência Social de Tabapuã (SP), que atuam no programa Flor de Lis
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

'Não me sinto bem perto de homens'

Os níveis dessa tomada de consciência, no entanto, variam bastante. Augusto*, 42, está há cerca de quatro meses com uma medida protetiva que o impede de se aproximar da esposa. Jura de pés juntos que nunca houve agressões, alega apenas discussões normais na casa, e imagina que um vizinho o denunciou à polícia ao ouvir uma discussão não tão normal assim. "Os dois estavam errados. Ninguém queria baixar a guarda", argumenta o acusado.

Entretanto, a história pode não ser bem essa. Augusto é acusado de manter a esposa em situação de cárcere privado durante 13 anos.

A casa onde a família morava conta com um sistema de câmeras de vigilância, instalado para que ele pudesse vigiar Cátia*, a esposa, durante o dia todo. Ela seria proibida de se arrumar, de realizar qualquer tipo de trabalho que não fosse o doméstico e de sair de casa, nem para ir ao médico ou ao dentista.

Retirada da casa, fez tratamentos que melhoraram sua saúde e sua autoestima e, hoje, está trabalhando. Mas os traumas persistem. Na manhã de segunda (1), ela encontrou com o TAB, acompanhada por uma assistente social, que precisou se ausentar por uns instantes antes do início da conversa. "Não me sinto bem perto de homens", disse Cátia, baixinho, com os olhos voltados para o chão. Suas mãos estavam trêmulas.

A assistente social retornou e percebeu o nervosismo de Cátia. "Você não precisa falar, se não quiser", disse. Aliviada, ela decidiu ir embora. "Não consigo", disse, ao sair. Os cinco minutos que estivemos juntos, quase o tempo todo em silêncio, deram uma ideia mais clara do que ela passou nos últimos anos.

Longe dali, Augusto acalenta o desejo de voltar a morar com Cátia e os seis filhos. "Pelo que escuto dizerem por aí, ela não vê a hora de voltar comigo." Ele mal imagina como a esposa fica cada vez que tem de lembrar da época em que eles viviam juntos.

Isabel* foi esganada pelo ex-companheiro; enquadrado na Lei Maria da Penha, ele espera julgamento - Rodrigo Ferrari/UOL - Rodrigo Ferrari/UOL
Isabel* foi esganada pelo ex-companheiro; enquadrado na Lei Maria da Penha, ele espera julgamento
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

'Um ciclo sem fim de violência'

"Meu pai brigou assim com minha mãe" é uma frase que Laís Aparecida dos Santos ouve bastante de crianças. Coordenadora do CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) de Tabapuã, ela organiza palestras e outras ações para prevenção de violência doméstica na cidade. Crianças e mães passam por atendimento psicológico e, se a violência doméstica for confirmada, as mulheres vão para o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social).

"Elas chegam fragilizadas. Muitas não têm a real noção de que estavam vivendo situações de violência", diz a coordenadora Bruna Suelen Leppre. Eles, por sua vez, vão para o MAN. Além das reuniões, os participantes fazem atendimentos individuais com psicólogos para refletir sobre atitudes e ideias machistas que culminaram em atos violentos contra esposas, namoradas, mães, irmãs, filhas, entre outras vítimas.

A assistente social Carem Fernanda Carreto, coordenadora do MAN, considera que é possível reabilitar um agressor de mulheres. "Penso que podemos acreditar, sim. Na maioria das vezes, notamos que o problema é cultural", diz. "Esses homens estão inseridos em um ciclo sem fim de violência, que naturaliza as agressões. Eles foram criados nesse sistema, da mesma forma que os pais, os avós. O que procuramos, aqui, é tentar fazer com que repensem esses valores machistas."

Nem todos os homens envolvidos em agressões são encaminhados ao MAN. O ex-companheiro de Isabel*, 32, por exemplo, já tinha passagens pela polícia e foi preso em flagrante por esganar a mulher e derrubá-la no chão com um empurrão, há cerca de quatro meses. Enquadrado na Lei Maria da Penha e levado ao Centro de Detenção Provisória de Icém (SP), ele espera julgamento.

"Minha sogra mora em frente à minha casa, ficou com muita raiva e me xingou de todos os nomes", relata Isabel. "Ela disse para eu sair do imóvel. Mas conheço meus direitos e não vou sair."

A prisão também foi o destino do ex-companheiro de Suzana*, 38. Há três anos, ela quase foi morta por estrangulamento, socos e chutes, ao tentar defender o bebê de 8 meses. "Meu filho chorava muito, estavam nascendo os dentes. Meu companheiro ficou bravo e quis pôr um pano na boca do menino. Reagi e ele quase me matou", conta. Ele também mandava a filha de 9 anos agredir a própria mãe. "Ele pensava que, fazendo assim, não teria como ser punido", conta. Foi.

Atualmente, o projeto MAN não consegue abranger agressores condenados à prisão, já que as penas são cumpridas em presídios localizados fora da comarca. Profissionais que atuam no programa Flor de Lis apostam na prevenção para evitar que casos continuem a ocorrer. "É por esse motivo que realizamos campanhas e atividades sistemáticas nas escolas", diz a gestora Alessandra Alves Simões Adegas, do Departamento de Assistência Social de Tabapuã. "Para conscientizar crianças e adolescentes para uma cultura de paz e de respeito ao próximo."

*Nomes trocados para preservar a identidade dos entrevistados