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Usar dentadura é marcador social no Brasil, país que exporta dentistas

Fabricante de cera para próteses dentárias expõe seus produtos em feira da área em São Paulo - Rodrigo Bertolotto/UOL
Fabricante de cera para próteses dentárias expõe seus produtos em feira da área em São Paulo Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Do TAB, em São Paulo

07/10/2022 11h46

Fique certo que em nenhum lugar do mundo você vai ser recebido com tantos sorrisos do que em um congresso internacional de prótese odontológica — mesmo que essas risadas sejam postiças e estejam em vitrines ou prateleiras.

Essa alegria inicial se amarela quando se descobre que 39 milhões de brasileiros ainda precisam usar uma dentadura (total ou parcial), e 16 milhões não têm nenhum dente na boca, incluindo 41% das pessoas com mais de 60 anos, segundo a última pesquisa de saúde bucal divulgada em 2011 com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

"Meu laboratório faz umas 500 dentaduras por mês. E esse número só vem aumentando nos 20 anos que trabalho como protético", conta Leônidas Ferreira, 43, que tem uma fábrica de próteses em Montes Claros (MG), em sociedade com os irmãos e tendo 23 funcionários.

Ele passeia pelos estandes do 17º Pro Experience Congress, em São Paulo, atrás das modernidades do setor. E se maravilha com dispositivos que fazem dentes artificiais com impressão 3D e usinagem robótica, além de scanners com tecnologia alemã que transformam a cirurgia bucal em uma obra de engenharia precisa.

"É bom se atualizar, mas estou procurando soluções mais simples e baratas, com uns silicones e acrílicos novos. Lá na nossa terra tem muito laboratório de fundo de quintal, e a gente precisa se diferenciar", revela o empresário mineiro.

Do riso fez-se o pranto

"A intenção é que o paciente volte a sorrir, mas a primeira reação dele é chorar ao ver os dentes de volta na boca. Isso acontece direto", relata José Henrique dos Santos, presidente da Associação dos Técnicos em Prótese Dentária. Para além do riso e da autoestima, a dentadura devolve a mastigação e dicção para seu proprietário.

Enquanto o laboratório no norte de Minas Gerais prioriza as dentaduras totais (ao preço de fábrica de R$ 140), na metrópole paulista o cenário é diferente. A empresa de Marcos Celestrino, diretor científico do congresso, conta com 35 técnicos e é especializada em criar sorrisos perfeitos para seus abonados clientes paulistanos, que podem pagar até R$ 3.000 por "lente de contato" para cada dente. "Só 10% de nossa demanda é para dentadura mesmo", revela Celestrino.

Várias estatísticas mostram o abismo bucal do Brasil. Segundo o Conselho Federal de Odontologia, há má distribuição de dentistas pelo território: 58% dos profissionais estão na região Sudeste, local de 38% da população nacional. Isso sem contar a tradição de profissionais migrarem para mercados na Europa, Ásia e América do Norte.

Com base no levantamento do IBGE, sabe-se que os totalmente desdentados são 6,9% dos habitantes da região Sul e 17,6% na região Norte. Outro dado é que um em cada cinco compatriotas entre 25 e 44 anos usa dentadura, mostrando que o problema não tem a ver só com o envelhecimento.

Os irmãos Emerson e Leônidas Ferreira têm um laboratório de próteses em Montes Claros (MG) e viajaram atrás de novidades no setor - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Os irmãos Emerson e Leônidas Ferreira têm um laboratório de próteses em Montes Claros (MG)
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

No país dos banguelas

Programas de governo já tentaram melhorar o sorriso dos brasileiros. De 2004 a 2021, o programa Brasil Sorridente, ligado ao SUS (Sistema Único de Saúde), entregou mais de 290 mil próteses dentárias. Mas a verba destinada para 2023 caiu de R$ 27 milhões para R$ 10,5 milhões. Da mesma forma, um mesmo corte de 60% diminuirá no ano que vem o alcance de programas federais como o Farmácia Popular e o Médicos Pelo Brasil, além daqueles destinados ao combate do câncer e ao auxílio a gestantes, entre outros.

O curioso nessa história é que o atual presidente é filho de um dentista prático (sem formação universitária). Em cidades do interior paulista, Percy Geraldo Bolsonaro extraia dentes e fazia dentaduras, função que era comum décadas atrás entre populações mais carentes, sem acesso a consultórios odontológicos.

O contingenciamento de recursos para as pastas de saúde e educação deram a tônica no último ano do governo Bolsonaro, que bloqueou ou cortou cerca de R$ 10 bilhões, em 2022, para garantir o cumprimento do teto de gastos — embora o último bloqueio, feito antes do primeiro turno, não tenha discriminado quais pastas foram atingidas.

Críticos do governo e a oposição relacionam os cortes à distribuição de verbas do orçamento secreto, esquema que permite que parlamentares administrem verbas federais sem transparência.

Recentemente, uma fraude dental atingiu a cidade maranhense de Pedreiras — lá foram registrados 14 dentes extraídos por habitante entre janeiro de 2021 e abril de 2022, o que significa uma média de 55 mil extrações por mês, embora a prefeitura local registre apenas 200 dessas cirurgias mensalmente no período e não saiba dizer onde foram parar essas remessas federais.

A dentição dos brasileiros também vivia na boca do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Depois de afirmar que o Plano Real possibilitou à população pobre comprar frango e iogurte, o mandatário tucano disse em 1997 que a dentadura era mais um símbolo do aumento do consumo após a estabilidade econômica. Sem apresentar dados, afirmou em entrevista no Palácio do Planalto: "Basta olhar". Depois de gargalhadas de sua própria equipe, ele emendou: "Isso não é para rir, é um avanço imenso". Por seu lado, a associação dos protéticos protestou à época, argumentando que os preços tabelados e a moeda nacional valorizada atrapalhavam o setor.

Vendedora mostra modelos de dentaduras feitas com resinas e silicones em estante de fabricante - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Vendedora mostra modelos de dentaduras feitas com resinas e silicones em estante de fabricante
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Morde e assopra

Joaquim Silvério deu com a língua nos dentes e Tiradentes foi enforcado em 1792, dando conclusão à Inconfidência Mineira. O herói nacional, que virou até feriado, tinha esse nome porque trabalhava como dentista, usava boticão para arrancar sisos cariados e fazia dentaduras com ossos de animais e marfim.

Pouco tempo antes, em 1784, George Washington comprou dentes extraídos de negros escravizados para completar seu sorriso. O primeiro presidente dos EUA apoiou a escravidão e tinha em suas propriedades trabalhadores nessa condição. O "pai da pátria norte-americana" ficou conhecido por discursos curtos — um dos motivos seria o desconforto com sua arcada postiça.

Outro antigo costume macabro era recolher a dentição de soldados mortos em grandes batalhas para comercializá-los. Ficaram famosos os "dentes de Waterloo", extraídos das mais de 50 mil vítimas que ficaram por terra na derrota final do imperador francês Napoleão Bonaparte, em 1815.

Há exemplos de dentaduras rudimentares em civilizações antigas, como a egípcia e a maia. Mas as multidões desdentadas se espalharam pelo globo com o consumo exagerado de açúcar e tabaco depois das Grandes Navegações.

Como as dentaduras feitas com material de origem animal se desgastavam rapidamente, na virada do século 18 para o 19 surge a moderna odontologia com a criação de dentes de porcelana na França e Inglaterra. Nessa época, técnicas da ourivesaria também foram incorporadas para melhorar esse ramo da medicina.

Hoje, há até réplicas em 4D com zircônia, uma gema feita em laboratório, que deixa os implantes dentários parecendo joias, com efeitos translúcidos e tons em degradê. E olhe que nem estamos falando dos "grillz", feitos de ouro e pedras preciosas, que os rappers norte-americanos gostam de ostentar.

Especialista ensina a maquiar dentes e gengivas postiças em diversos tons de amarelo e rosa  - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Especialista ensina a maquiar dentes e gengivas postiças em diversos tons de amarelo e rosa
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Várias bocadas

É fácil ver nas proximidades das estações de trem ou metrô placas de "compro ticket", "certidão de antecedentes criminais", "advogado trabalhista" e de grandes clínicas dentárias, que tiram cáries e rugas dos candidatos a um emprego — por terem conhecimento da anatomia facial, os dentistas também podem aplicar botox.

Entre esses imensos consultórios, há alguns que são suspeitos de lavar dinheiro de facções criminosas, guardando insumos e fazendo girar o lucro do narcotráfico em equipamentos e tratamentos dentários.

Contudo, a história mais escabrosa que mistura crime e odontologia aconteceu no Rio. Em 2021, uma fabriqueta clandestina na zona norte da cidade foi flagrada pela polícia com próteses dentárias que haviam sido retiradas de cadáveres. Na investigação, descobriu-se que coveiros de cemitérios da Baixada Fluminense eram os fornecedores. As peças eram lavadas e recebiam tratamento químico antes de voltar ao mercado.

Seja na Transilvânia, em Waterloo ou nas catacumbas pelo mundo, os dentes sempre estiveram associados a aspectos mórbidos e animalescos. Mas assim como mordem, mastigam e despedaçam, eles servem também para sorrir e mostrar algo sublime do ser humano — nem que seja com o auxílio de pontes de titânio, coroas com lítio e brocas de tungstênio.

Parecem insetos, mas são estruturas metálicas para próteses dentárias parciais em exposição durante congresso do setor em São Paulo - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Parecem insetos, mas são estruturas metálicas para próteses dentárias, em exposição em congresso de SP
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL