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Painel vandalizado decorou navio antes de ser levado ao Palácio do Planalto

Funcionários tiram medidas de obra de Di Cavalcanti danificada por golpistas - Carl de Souza/AFP
Funcionários tiram medidas de obra de Di Cavalcanti danificada por golpistas Imagem: Carl de Souza/AFP

Colaboração para o TAB, de Valinhos (SP)

10/01/2023 04h00

No fim dos anos 1950, o pintor Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo foi convidado pelo amigo Oscar Niemeyer a decorar alguns prédios comerciais projetados pelo arquiteto carioca em São Paulo.

Era o começo de uma parceria que não demoraria a chegar ao interior dos palácios de Brasília, para onde seria transferida a capital federal.

O Palácio do Alvorada recebeu as tapeçarias "As múmias" e os "Músicos". No Congresso Nacional, a pedido de Juscelino Kubitschek, foi instalado o painel "Candangos", um óleo sobre tela que representava os trabalhadores que vieram do interior para erguer a nova cidade.

Em seguida, Di Cavalcanti foi convidado para fazer a "Via Sacra", uma série de quadros retratando os passos do martírio de Jesus Cristo na Catedral de Brasília.

Na primeira semana de 2023, quando se encerrou a passagem de Jair Bolsonaro (PL) pela Presidência da República, a socióloga Rosângela Lula da Silva, esposa do presidente Luiz Inácio Lula de Silva (PT), mostrou à imprensa uma série de estragos deixados pelos antigos inquilinos. Entre eles, o estado da tapeçaria "Os Músicos", obra encomendada por Niemeyer que já marcava a forte influência dos muralistas mexicanos na produção do artista brasileiro. A obra foi retirada do local original e, segundo a primeira-dama, teria desbotado ao ser exposta indevidamente ao sol.

Não foi a única obra de arte vitimada pela ignorância.

No domingo (8), dia em que uma turba de seguidores fanáticos do ex-presidente invadiu as sedes dos Três Poderes, um painel de Di Cavalcanti foi vandalizado juntamente com diversas peças do acervo do governo. "As Mulatas", painel de 1,20 x 3,43 m e assinatura no canto inferior direito, não estava entre as primeiras encomendas ao artista. A obra ficava no salão nobre do terceiro andar do Palácio do Planalto e recebeu ao menos seis golpes de faca dos extremistas convencidos de que o país corre risco de se tornar um regime comunista sob o governo de Lula.

Os golpes acontecem quase 47 anos após a morte de Di Cavalcanti, que chegou a ser preso nos anos 1930, às vésperas do Estado Novo, por causa de suas posições políticas. Ele era filiado ao Partido Comunista Brasileiro.

"Acho que quem fez isso é uma pessoa que desconhece a arte. Em literatura isso se chama 'turba ululante'. Ela sai do controle e destrói o que vê pela frente, como uma boiada", diz a filha do artista, Elisabeth Di Cavalcanti, 76. "Acredito que Di Cavalcanti não tenha sido propositalmente destruído. Quem fez isso não tinha noção. Se tivesse, saberia que ele foi o pintor que mais expressou a brasilidade. Mas a pessoa era truculenta. E essa truculenta é otimizada pelo ódio que explodiu. Infelizmente o painel do meu pai estava no caminho."

Elisabeth conta que quase nunca assiste à TV ("detesto"), mas no domingo (8) o marido chamou a atenção para a arruaça que ocorria em Brasília. Foi quando ela soube que o painel de seu pai havia sido atingido. "Fiquei muito tomada", diz.

Painel em navio

O quadro é de 1962 e, segundo uma reportagem do jornal "O Cruzeiro", publicado em outubro daquele ano, não foi encomendado inicialmente para decorar o interior do palácio, mas sim de um dos navios da Companhia Nacional de Navegação Costeira.

A encomenda foi feita pelo almirante João Seco, diretor da empresa na época. Outros artistas também produziram para os navios da companhia naquele ano, como Djanira, Volpi, Iberê Camargo e Ziraldo, cartunista escalado para decorar os salões infantis das embarcações com seus personagens da turma do Pererê.

O painel de Di Cavalcanti, marcado por "mulheres sensuais, encanto místico as cores fortes", segundo a descrição da revista carioca, ficaria na sala de refeições de um dos navios da empresa.

Segundo o pesquisador, jornalista e escritor Marcelo Bortoloti, autor de uma biografia de Di Cavalcanti a ser publicada pela Companhia das Letras ainda em 2023, "As mulatas", que recebeu este nome posteriormente, chegou ao acervo dos prédios oficiais em Brasília após a estatal Lloyd brasileira, hoje extinta, incorporar a Cia. Nacional em meados dos anos 1960. Foi nesse período que as obras foram distribuídas para órgãos do governo - nem ele nem Elisabeth Di Cavalcanti soube dizer em que ano exatamente o painel chegou ao palácio.

Di Cavalcanti, segundo Bortoloti, vivia na década de 1960 um estágio de maturidade artística após uma série de viagens e influências, sobretudo de artistas franceses e mexicanos. Suas obras começaram a ser valorizadas desde que ele assinou, em 1962, um contrato com a Petite Galerie, uma importante galeria de arte do Rio de Janeiro. "Depois desse contrato as obras dele começam a ser valorizadas e têm uma explosão, principalmente nos anos 1970."

Bortoloti lembra que Di Cavalcanti teve várias fases como pintor e que desde 1920 elegeu a mulher mestiça como ícone da brasilidade. Era uma resposta a teorias de correntes eugenistas contrárias à miscigenação. Até hoje, os quadros com essa temática costumam ser os mais valorizados na obra de Di Cavalcanti.

"A temática das mulheres mestiças, ou mesmo os pescadores que ele costumava retratar, é parecida com os primeiros quadros nos anos 1920, mas o jeito de pintar havia mudado."

Obras do porte de "As Mulatas" eram feitas, geralmente, por encomenda e, de acordo com o biógrafo, hoje valem muito - o painel esfaqueado pelos bolsonaristas é avaliado em R$ 8 milhões e poderia ser vendido, em leilão, por um valor até cinco vezes superior, segundo a Secretaria de Comunicação do governo federal.

Ele afirma que o processo de restauro será delicado, já que áreas sensíveis foram alvejadas, como os dedos de uma das mulheres retratadas.

"É lamentável ver esse tipo de ataque a uma obra de arte, principalmente depois de tudo o que a cultura sofreu no governo Bolsonaro. É o desfecho dessa coisa de ódio à obra de arte e seus artistas", diz o autor.

A filha do pintor afirma que as técnicas de restauração atuais chegaram a um nível de excelência que torna possível acreditar na reversão dos estragos. Sobre as tapeçarias, ela diz ter informações de que a obra "As Múmias" já estaria em um recinto perto de uma janela com incidência solar desde 2011, primeiro ano do governo Dilma Rousseff.

Quanto ao quadro "Os Músicos", Elizabeth lembra que as cores da obra não eram tão fortes, mas suaves, e que tudo isso deveria ser analisado por especialistas antes de qualquer conclusão.