A outra face de Hang: dono da Havan larga bolsonarismo e mira novo inimigo
É fim de expediente, e funcionários descem a escada que dá para o mezanino se dirigindo à saída do prédio. Quase todos vestem uma camiseta verde com os dizeres em amarelo: "O Brasil que queremos só depende de nós". Estamos na sede da Havan, em Brusque (SC), e nenhum diretor tem sala própria ali. Suas mesas de fórmica estão junto a uma longa janela ao fundo do prédio.
Em uma delas, repousa uma cadeira estofada, estilo gamer, com encosto azul e amarelo e a palavra "Brasil". Minutos depois, seu dono chega pilotando um patinete elétrico. É Luciano Hang, 60, que estaciona em frente ao visitante.
"Olá, tudo bem? Muito prazer", apresenta-se à reportagem do TAB. "Gostou do ambiente? É tudo clean, organizado", orgulha-se. Quem passa por um grande processo de reorganização na vida, no entanto, é o próprio empresário.
"Não quero mais saber de política", diz agora o símbolo do bolsonarismo, que tantas vezes posou em ternos verde-amarelos ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro. Crítico contumaz do comunismo e da "doutrinação" em escolas, ganhou de opositores a alcunha de "Véio da Havan".
Mas tudo isso, segundo ele, é passado. Passando por um gradual processo de mudança de imagem, Hang já desejou boa sorte ao novo governo Lula e fez votos de "paz, harmonia, felicidade e muitos empregos para todos os brasileiros".
Nessa nova fase, Hang já se aproximou de sindicalistas e elogiou as políticas de crescimento da China. "Fui lá em 1993 e era um país pobre. Hoje é rico. Deixaram as pessoas trabalhar", diz o criador de uma rede que experimentou um de seus maiores crescimentos nos governos Lula e Dilma. A Havan, que tinha 5 lojas em 2002, terminou o ano de 2014 com 86.
Mas engana-se quem imagina que o pano de fundo desse "rebranding" tem a ver com a política.
Hang oficializou seu novo inimigo desde o fim do governo Bolsonaro, e ele nada tem a ver com a esquerda: as e-commerces asiáticas. As empresas chegaram com força ao mercado brasileiro e são classificadas por ele, com sua conhecida despolidez, de "contrabandistas digitais".
Luciano Hang liderou no ano passado um grupo de empresários que entregou à cúpula do governo, senadores e PGR um pedido formal de taxação de plataformas estrangeiras, denunciando uma "concorrência desleal" em importações.
A proposta entrou na pauta do governo Lula e pode ser contemplada na reforma tributária em discussão no Congresso.
Futuro da rede está em jogo
Hang quer aumentar sua atuação na Havan para tentar aplacar a concorrência. Ele conta que planeja visitar todas as suas 174 lojas nos próximos três meses e contribuir diretamente com seu time de executivos — entre eles, os filhos Lucas e Matheus Hang. "Minha família e minhas empresas precisam de mim."
Do antigo papel de animador político diz querer manter apenas seu talento para motivar empregados. "Se você pregar e motivar, os funcionários fazem de graça para você."
E o movimento não fica só no gogó. Anúncios elogiando Hang, gerenciados pela plataforma Google Ads, apareceram em plataformas digitais recentemente. Hang afirma que não tem relação com eles e que está sendo vítima de golpes.
Décima pessoa mais rica do Brasil (US$ 4,8 bilhões), o empresário construiu em pouco mais de três décadas um império econômico que pode estar sob ameaça. Sua rede de varejo está presente em cidades pequenas e médias de praticamente todos os estados brasileiros — as exceções são Amapá e Roraima.
É também de Brusque que ele controla postos de gasolina, hidrelétricas, empresas de publicidade e gestoras de imóveis.
As origens do império de Hang
Filho de operários, Hang é visto por muitos como exemplo de "self-made man". Alguém que saiu de baixo e fez fortuna trabalhando duro. Começou aos 17 anos na fábrica de tecidos Renaux, onde seus pais trabalhavam. Três anos depois, foi promovido da expedição para a área de vendas.
O primeiro lance como empresário foi a Tecelagem Santa Cruz, aos 21 anos, uma sociedade com dois primos. Em 1986, ele montou a Havan em uma sala de 45 m² com outro gerente de vendas da Renaux, Vanderlei de Limas — o "Ha", de Havan, vem de Hang, e, o "Van", de Vanderlei.
Vendiam apenas tecidos na época, mas já chamavam atenção pelos preços baixos e por abrirem aos finais de semana e feriados. A primeira loja com fachada inspirada na Casa Branca norte-americana, com 7.000 m², foi aberta em 1994, um ano antes da primeira réplica da Estátua da Liberdade ser erguida em Curitiba.
Apesar do gosto duvidoso para decorações de fachada, Hang era visto como empresário discreto quando encontrou sua turma política na corrida presidencial de 2018. Pouco antes do primeiro turno, postou um vídeo insinuando que uma vitória do PT poderia levar a demissões em suas lojas.
O ódio ao PT veio antes de Bolsonaro eleito
A rivalidade nasceu por volta de 2013, durante o segundo mandato do ex-prefeito de Brusque (2013-2016) Paulo Eccel, do Patido dos Trabalhadores. Um aumento do IPTU, a construção de ciclovias na cidade, consideradas prejudiciais aos seus negócios, e a instalação de radares serviram como ignição.
Ainda antes da vitória de Bolsonaro nas urnas, em 2018, a antiga rivalidade virou radicalismo. A contragosto da esposa, a empresária Andrea Hang, adotou seu famigerado "dress code" verde e amarelo e transformou-se no "Véio da Havan". Esquerdistas passaram a ser ofendidos publicamente de "burros e vagabundos" e foi processado pelo ex-presidente Lula por tê-lo chamado de "cachaceiro".
Hang se opôs às medidas de restrição à circulação e ao fechamento do comércio na pandemia. Defendeu medicamentos sem eficácia contra a covid-19. Nas últimas eleições, foi pego participando de um grupo de empresários em um app de mensagens defendendo golpe de Estado em caso de vitória de Lula.
Todas as suas redes sociais foram suspensas no Brasil pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, e Hang foi colocado sob suspeita de ter patrocinado blogueiros bolsonaristas e as manifestações que culminaram na invasão ao Congresso Nacional em 8 de janeiro. Ele nega.
Seguidores que utilizam o artifício da VPN (Redes Privadas Virtuais, na sigla em inglês) já perceberam que Hang continua bem ativo nas redes (veja o vídeo que acompanha esta reportagem). A diferença está no tom: a política e o discurso de ódio deram lugar a falas motivacionais e de autoajuda, transmitidas por um "Lucianinho Paz e Amor" só para fãs raiz.
Hang e Lula juntos contra os juros
Hang, que se negou a comentar política e processos na Justiça que incluem sonegação de impostos, conta ao UOL que o ano de 2023 não será de investimentos para a Havan. Mas não por causa do novo governo. "Não vou torcer contra. A gente quer que o Brasil dê certo. Mas há uma crise mundial, com inflação alta, e uma guerra na Ucrânia gerando instabilidade e incertezas."
O empresário reclama com veemência da escalada da taxa básica de juros, que mais que dobrou nos últimos quatro anos de governo Bolsonaro, e concorda com as ofensivas de Lula à política de juros do Banco Central, que na avaliação do presidente travam o crescimento nacional.
"A verdade é que, no patamar em que os juros estão agora [com taxa Selic a 13,75% e juro real em torno de 8%], ninguém vai querer investir no Brasil. Mas são necessárias uma série de condições para a queda", esquiva-se.
R$ 300 mil em uma noite de sono
Hang é tratado por muitos com deferência quase religiosa em Brusque e dentro da empresa, mesmo acumulando processos e condenações em sua trajetória. É comum funcionários das lojas, emocionados, tremerem ao falar com ele. Uma assessora, que prefere não se identificar, diz ter dificuldade em mostrar nas redes sociais o quanto ele é humano.
A sede em Brusque lembra as das empresas de tecnologia de São Paulo. O refeitório decorado com pufes coloridos tem biblioteca e videogames. Funcionários recebem 14º salário pelo PPR (Programa de Participação nos Resultados) ao fim do ano. Segundo a empresa, que tem 22 mil funcionários, o programa já pagou R$ 335 milhões desde 2007.
A simpatia e a atenção que dedica aos interlocutores no trato pessoal contrasta com a frieza de Hang ao mudar repentinamente seus investimentos. Interlocutores calculam que essa postura pode ser uma tônica na nova fase do empresário e da Havan.
Na esteira da revisão orçamentária da Havan no pós-eleições, Hang decidiu, por exemplo, interromper todos os patrocínios a times de futebol. O Brusque Futebol Clube viu o patrocínio que recebia da empresa cair de pouco mais de R$ 300 mil mensais para zero, em 2022.
"Considerando o aumento do patrimônio que teve em 2021 [cerca de US$ 2,1 bilhões], Hang ganha o que paga em patrocínio ao Brusque em menos de uma noite de sono. Em algum momento ele voltará atrás", calcula o contador Ivo Barni, ex-secretário da Fazenda da cidade, que conheceu o empresário na época em que ele fazia faculdade.
Crescimento no meio da pandemia
A decisão de se concentrar nos negócios e a cautela com novos investimentos coincidem com o momento delicado do setor de varejo no Brasil. A recente crise das Americanas somou-se ao cenário de juros altos e inflação, que jogou desconfiança sobre o mercado.
"Em muitos aspectos, a Havan ainda é uma empresa 'sui generis' no mercado brasileiro", afirma Ricardo Pastore, coordenador do núcleo de varejo da ESPM, para quem a empresa é uma das poucas que mistura diversos segmentos.
A rede de Hang tinha portfólio de 350 mil itens em 2022, vendendo desde pratos, taças e talheres a celulares, tapetes, geladeiras e pneus. Há, ainda, roupas, brinquedos, perfumes, alimentos, acessórios de praia, churrasqueiras e ferramentas de jardim. Cerca de 95% desses itens são de fornecedores nacionais, diz a empresa.
A empresa divulgou que, até o terceiro trimestre do ano passado, acumulava receita de cerca de R$ 8 bilhões — crescimento de 17% em relação ao mesmo período de 2021, no meio da pandemia. E que a meta para 2023 é chegar aos R$ 15 bilhões em vendas.
Concessão ao sindicalismo
Por ser uma rede grande e com serviços agregados, como restaurantes, bancos, postos de gasolina e cinema, as lojas da Havan podem ser construídas em terrenos mais baratos. Além disso, funcionam no modelo autosserviço: sem vendedores, apenas caixas, com custos menores que lojas de rua ou de shoppings.
Ainda assim, a Havan tem desvantagens para competir no cenário atual. Seu comércio eletrônico é ainda incipiente e o formato das lojas dificulta a entrada em grandes centros, onde o preço dos terrenos é mais alto, como é o caso de São Paulo.
O avanço de plataformas estrangeiras como Shein, Shopee, Wish e Aliexpress fez com que Hang recorresse a algo que antes parecia impensável: convidou pela primeira vez um sindicalista — o presidente da UGT (União Geral dos Trabalhadores), Ricardo Patah — para visitar a Havan em Brusque.
No passado, além de demonizar sindicatos, Hang já chegou a defender o fim da Justiça de Trabalho após ser processado pelo MPT-SC (Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina), acusado de coagir funcionários a votar em Bolsonaro.
A conversa girou sobre formas de combater a concorrência das rivais internacionais, que vem causando dor de cabeça ao ex-símbolo da direita radical. O momento é propício à revisão de antigas rivalidades políticas. Os próximos anos serão decisivos para o futuro da rede.
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