Rede de clínicas frauda planos de saúde e cobra dívida de beneficiários
Uma prática ilegal conhecida como reembolso assistido tem sido usada por redes de clínicas para fraudar planos de saúde e gerar cobranças indevidas a beneficiários.
O modelo, que deveria facilitar pedidos de reembolso, lesa clientes e operadoras de planos de saúde enviando notas de serviços inexistentes, superfaturados ou procedimentos não realizados.
A rede de clínicas HCMC (Health Care Medical Center), por exemplo, possui 195 reclamações de fraude no Reclame Aqui no intervalo de um ano.
Clientes foram surpreendidos com cobrança de procedimentos feitos há mais de dois anos, apurou o UOL. A justificativa era de que os reembolsos não haviam sido autorizados pelos convênios médicos.
Nenhuma das reclamações deste ano foi respondida ou solucionada. Em 2023, a empresa recebeu 233 reclamações e solucionou 63,8% dos casos.
Presente em vários estados, a HCMC é uma empresa da Premium Group, especializada em procedimentos para emagrecimento e ganho de massa muscular, com faturamento anual próximo a R$ 100 milhões.
Há indícios de lavagem de dinheiro por parte da HCMC, aponta relatório da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) e da ABCF (Associação Brasileira de Combate à Falsificação), que investigaram a rede.
Um inquérito foi aberto pela Polícia Civil contra os donos da empresa, após a ABCF notificar o MP-SP (Ministério Público de São Paulo). Eles foram intimados a depor quatro vezes, mas não atenderam ao chamado.
A operadora SulAmérica, que calcula ter sido lesada em mais de R$ 27 milhões, disse à reportagem que entrou com ações contra seis CNPJs ligados ao grupo dono da HCMC.
"Prestadores de serviços não referenciados foram objeto de auditoria da SulAmérica, sendo certo que foram descobertas diversas irregularidades nos atendimentos, e, por isso, a seguradora adotou medidas jurídicas cabíveis", afirmou a SulAmérica em nota.
A Amil disse à reportagem que "existem três inquéritos policiais instaurados, a partir de denúncias da operadora, para investigação de práticas indevidas desse prestador".
O UOL obteve acesso aos inquéritos, que apontam haver "74 clínicas ligadas à pessoa de Fernando Salvador Baptista, farmacêutico que, em conjunto com o sócio, Thiago Dias Pereira, está corriqueiramente envolvido nos contratos fraudulentos retirados da operadora ou, ainda, com as clínicas de fachada ou àquelas criadas tão somente para fins de reembolso sem desembolso".
O dossiê entregue pela operadora aponta que o problema é generalizado.
"Suspeita-se que esses laboratórios oferecem CIDs diversos de diagnósticos com o intuito de gerar reembolso em todas as Operadoras de Saúde, prescrevendo uma lista imensa de exames sem qualquer indicação médica ou necessidade."
A Bradesco Seguros também afirma ter sido vítima de golpes perpetrados pelo grupo ligado à HCMC.
Procurados pelo UOL, os empresários responsáveis pela HCMC, Fernando Salvador Baptista e Thiago Pereira, optaram por não prestar esclarecimentos.
Perdas bilionárias
Esse tipo de fraude causou mais de R$ 30 bilhões em perdas às operadoras de planos de saúde apenas em 2022, aponta relatório da consultoria EY (Ernst & Young) feito a pedido do IESS (Instituto de Estudos da Saúde Suplementar).
Mais de 51 milhões de brasileiros têm acesso à assistência médica por meio de planos de saúde.
Segundo a Abramge, os pedidos de reembolso de exames feitos por beneficiários de planos de saúde chegam a R$ 11,88 bilhões em 2023.
Esse valor é praticamente o dobro do de 2019, último ano antes da pandemia de covid-19.
A entidade atribui essa disparada principalmente ao fato de clínicas estéticas tentarem atrair clientes oferecendo atendimento via planos de saúde.
Convênios médicos geralmente não cobrem esse tipo de despesa.
Como funciona o reembolso assistido
Os funcionários das clínicas argumentam que, para facilitar o aceite dos reembolsos, as próprias clínicas devem fazer os pedidos para a operadora do plano.
Em geral, a solicitação de reembolso é feita pelo próprio beneficiário.
Por isso, as clínicas solicitam dados pessoais do beneficiário, como login e senha de acesso ao portal do plano de saúde.
O UOL teve acesso aos contratos nos quais as clínicas solicitam dados pessoais.
Para isso, firma-se um acordo de "concierge" entre beneficiários do plano e a clínica. Muitos clientes acabam concordando por causa da comodidade oferecida pelo serviço.
Login e senha, por favor
Segundo relatos obtidos pelo UOL, a HCMC dizia aos ex-pacientes que não cobraria pelos serviços prestados caso o reembolso não fosse aceito pela operadora do plano —há, inclusive, uma menção sobre isso em contrato.
Mas, em 2024, centenas de clientes da clínica foram surpreendidos com a cobrança de procedimentos realizados na rede há mais de 24 meses.
"Eles pediram para assinarmos um 'caminhão de papel' e eu dei meu login e senha para eles. Não explicaram como é o processo de pedido de reembolso, mas disseram que era para que eu não tivesse o trabalho de enviar as notas para o plano", diz o vigilante Thiago Sousa, que levou a filha, Ilana, consigo, a uma unidade na Barra da Tijuca, no Rio.
Ele conta que teve seus exames, realizados no início de 2023, superfaturados pela empresa.
"Para um hemograma, que custaria R$ 100, a empresa solicitava o ressarcimento para o plano no valor máximo que eles poderiam: R$ 500, R$ 600", diz.
"Em um exame de sangue, eles embutem várias coisas de modo que um exame de sangue seja quase R$ 5.000."
A SulAmérica, antiga operadora do plano de saúde de Sousa, negou o reembolso pelos procedimentos. A clínica afirmou na época que não cobraria Sousa pelo serviço, mesmo com a recusa do plano.
Mas, recentemente, um escritório de advocacia entrou em contato cobrando cerca de R$ 9.000 —ele recebe cerca de R$ 2.000 ao mês.
Thiago Sousa e a filha tiveram seus nomes incluídos na lista de inadimplência do Serasa. Ela, inclusive, teve um empréstimo estudantil negado por isso.
Ao tentar procurar a clínica para negociar os valores cobrados, Sousa viu que a rede encerrou suas operações no Rio. "Em nenhum momento me neguei a pagar pelo serviço, mas quero pagar um valor justo."
Thauani Franze, que atua como analista de experiência do consumidor, procurou uma unidade da HCMC em 2022 após ver um anúncio nas redes sociais destacando a comodidade do serviço.
A empresa usa a imagem de influenciadores fitness, como o deputado Felipe Franco e o fisiculturista Renato Cariani, para atrair pacientes.
"No momento em que você assina os contratos, eles pedem para você anotar no canto da folha login e senha do plano. Não me deram alternativa. Falei que poderia fazer a solicitação pelo app do meu celular, mas eles não deixaram", afirma ela. "Eles me garantiram que tudo seria coberto pelo convênio", completa.
Na época, a solicitação de reembolso de Thauani foi negada. Hoje, ela tem recebido cobranças de R$ 7.800 por meio do escritório de advocacia Mesquita & Mesquita, em nome da HCMC.
O superintendente da Abramge, Cássio Ide Alves, alerta para indícios fraudulentos na atuação dessas empresas.
"Muitas dessas clínicas já fecharam. Porém, elas têm essas dívidas em mãos e muitas vezes vendem para escritórios de advocacia para cobrar o cliente, o que é um verdadeiro absurdo", afirma.
O analista de dados Jorge Esposti conseguiu solicitar o reembolso sem precisar repassar seu cadastro do plano de saúde para a HCMC.
Ele disse que entendia que a prática era errada e violava as regras da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Entretanto, também viu seu pedido para reembolso ser negado pela operadora.
"O convênio não aceitou, acho que por suspeitarem que fosse algo fraudulento. Eles solicitaram comprovante de Pix do pagamento dos exames. Como não tinha, não consegui fornecer", diz Esposti.
"No meu plano de saúde, disseram que as notas fiscais que foram emitidas pela HCMC não eram válidas. Falaram que a empresa não tinha um registro CNAE para aquelas notas fiscais."
Esposti entrou em contato com a clínica informando a recusa por parte de seu plano de saúde. Ouviu que "não seria cobrado por nada".
Um ano e meio depois, recebeu uma cobrança de quase R$ 8.000 pelo escritório de advocacia Deall Capital.
Ele abriu reclamações no Procon (Programa de Proteção e Defesa do Consumidor) e no portal Reclame Aqui.
Indícios de lavagem de dinheiro
Na investigação sobre a atuação da HCMC, a Abramge e a ABCF simularam em outubro de 2023 um atendimento com uma clínica da rede instalada na Avenida Paulista, em São Paulo.
A clínica informou que oferecia um novo método de "crédito reembolsável" para os pacientes.
O objetivo seria, segundo a Abramge, driblar o aumento das restrições dos planos de saúde para a liberação do reembolso.
Como as operadoras começaram a barrar os pedidos de reembolso, a clínica orientava o cliente a abrir uma conta em um banco digital, na qual repassaria um valor que seria transferido pelo cliente para outra conta ligada à clínica.
A ideia seria gerar um comprovante de pagamento pelo serviço e facilitar o aceite no pedido de reembolso posteriormente.
Ao realizar esse procedimento, a investigação notou que o cliente seria envolvido em uma transação com indício da lavagem de dinheiro.
"Imputam-se à empresa supostas fraudes e condutas ilícitas com o intuito de mascarar a utilização da cobertura de reembolsos", apontou a ABCF no relatório.
"O beneficiário, se cai numa dessas, precisa pedir à operadora o extrato de utilização para o plano dele. Se houver um descontrole no pedido de reembolsos por parte da clínica, o beneficiário pode perder o emprego por fraude, além de perder o plano", afirma Ide Alves.
O assunto foi parar em 2023 no STJ (Superior Tribunal de Justiça), que decidiu que é infração ceder os direitos de reembolso das despesas médico-hospitalares para clínica particular não conveniada à operadora do plano de saúde.
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