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Boiada fake: prisão de sertanejo revela submundo do sucesso falso

O esquema de roubo de músicas com uso de perfis falsos no Spotify, revelado pelo UOL em abril de 2024, era controlado por apenas um homem, segundo o Ministério Público.

Ronaldo Torres de Souza, 46, confessou o crime ao ser preso preventivamente em Passo Fundo (RS), em 5 de dezembro.

O sertanejo, que chegou perto do sucesso real em 2015, é a primeira pessoa presa por fraude em streaming musical no país.

Segundo o MP, ele coordenava uma rede de perfis falsos, que disponibilizavam centenas de faixas que haviam sido roubadas de outros compositores. Até os fãs eram fakes: o uso de bots simulava o play nas músicas.

A investigação aponta que Ronaldo usava documentos falsos para cadastrar os artistas, mas disponibilizava seu Pix como destino da renda das músicas.

Cerca de R$ 2,3 milhões em carros, criptomoedas e outros bens foram apreendidos.

A denúncia do MP foi aceita pela Justiça de Goiás. Ele pode receber pena de até dez anos de prisão, se for condenado pelos crimes de estelionato, falsa identidade e violação de direitos autorais.

Procurado pela reportagem após ser liberado da prisão preventiva, Ronaldo disse que "estava hospitalizado" e não retornou mais.

Seu advogado, José Paulo Schneider, disse que ele "prestou todos os esclarecimentos ao MP" e continuará colaborando com a Justiça.

Reportagem do UOL

Em abril de 2024, o UOL descobriu uma rede de 209 perfis sertanejos falsos no Spotify, 444 músicas e 28 milhões de plays.

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Imagem: Arte/UOL

Fazendeiro de plays

No dia da operação, a Justiça brasileira teve o primeiro registro da atividade de uma "fazenda de streams", sistema que cria acessos artificiais a músicas.

Na mesma data, Ronaldo deixou ligados em casa, em um condomínio de luxo no Recife, 21 laptops com robôs que rodam "plays".

O MP flagrou e filmou a "fazenda" em ação. O sistema criado por Ronaldo era capaz de simular que 2.500 pessoas estivessem ouvindo suas músicas ao mesmo tempo, sem parar.

A ação do MP também flagrou uma evolução: além das canções roubadas, ele começou a usar faixas feitas por IA (inteligência artificial) —nos dois casos, ele não compunha nada.

O golpe dá um toque sertanejo ao submundo do sucesso falso na música global. É cada vez mais difícil diferenciar um hit de uma fraude.

Segundo a consultoria canadense Beatdapp, especializada em fraudes digitais, 10% dos plays em streamings mundiais são de robôs.

Eles desviam US$ 2 bilhões de uma renda de US$ 17 bilhões por ano —a maior parte do Spotify, líder do setor.

Ronaldo Torres de Souza posa com carro que foi apreendido
Ronaldo Torres de Souza posa com carro que foi apreendido Imagem: Reprodução/Instagram

As cifras da boiada fake

A denúncia do MP aponta que os perfis fakes levaram a um prejuízo de até R$ 6,6 milhões aos autores.

Ronaldo admitiu ter inventado nomes de cantores e capas de álbuns para lucrar com as faixas. Ele disse não se lembrar de quantos perfis falsos criou.

O esquema é facilitado pelo modo como novas músicas circulam hoje em dia, no meio sertanejo.

Os compositores costumam enviar por mensagem versões prévias das faixas, chamadas "guias", para cantores avaliarem. A liberação para gravar pode custar até R$ 15 mil.

Ronaldo participava dessa distribuição. Em vez de comprá-las ele alterava o nome das guias e as publicava em perfis falsos.

O cantor e compositor Murilo Huff, viúvo de Marília Mendonça, é uma das vítimas.

O MP encontrou nos dispositivos de Ronaldo 3.900 guias. O nome da pasta "CDs Spotify" leva à suspeita de que ele publicou mais que as 444 faixas encontradas pelo UOL em abril.

Ronaldo, que se lançou em carreira solo como Alex Ronaldo
Ronaldo, que se lançou em carreira solo como Alex Ronaldo Imagem: Reprodução/Instagram

Empresa brasileira colaborou

Para publicar músicas em streaming é preciso usar agregadoras — empresas intermediárias entre músicos e os apps.

A maioria dos perfis fakes foi cadastrada em agregadoras estrangeiras, que nunca responderam aos contatos do UOL e nem ao MP.

Mas 36 dos 209 perfis foram ao ar pela WMD, uma empresa brasileira que colaborou com a investigação.

A WMD também apontou mais 32 perfis ligados ao Pix de Ronaldo, além dos 36 achados pelo UOL —outro sinal de que o exército total de fakes é ainda maior.

O MP encontrou 11 compositores que confirmaram em depoimento que 25 músicas dos perfis da WMD foram roubadas deles. Estes perfis renderam R$ 14 mil a Ronaldo.

A perícia dos notebooks e novos depoimentos pode aumentar a lista de denunciantes.

"Falamos com compositores que estavam deixando de mandar músicas para cantores. Duplas novas deixavam de ter acesso às obras", afirmou o promotor Fabrício Lamas, do CyberGaeco.

Puxada pelo sertanejo, que tem mais de um terço das músicas mais ouvidas no país, a indústria musical movimentou R$ 2,8 bilhões no país em 2023.

Computadores usados em "fazenda de plays" de Ronaldo
Computadores usados em "fazenda de plays" de Ronaldo Imagem: Ministério Público de Goiás/Reprodução

Robôs em toda parte

Marcos Bernardes, o Marcão, do canal especializado Blognejo, diz que a prisão pode assustar um mercado em que plays inflados por robôs já são comuns.

"Esse caso veio à tona pois veio de um roubo e a polícia foi atrás", ele afirma. "Mas até as grandes duplas fazem [usam 'fazendas de plays'] nas próprias músicas para aumentar a impressão de sucesso."

"Digitando", de Gustavo Moura e Rafael, e "Péssima Hora", de Jefferson Moraes, ficaram entre as mais tocadas do país, entre abril e maio de 2024, até serem derrubadas pelo Spotify pelo uso de robôs.

O dinheiro dos serviços de streaming é distribuído como fatias de um bolo: o Spotify passa parte de seu lucro aos criadores de músicas, na proporção dos plays que elas tiveram.

Por isso, as fraudes diminuem a renda dos artistas que têm ouvintes verdadeiros.

"A prática de provocar artificialmente a execução de músicas no streaming é nociva para todos", diz Marcelo Castello Branco, presidente da UBC (União Brasileira de Compositores).

"A execução falsa precisa ser criminalizada, pois ela distorce remunerações e métricas e institui um parâmetro falso que não se sustenta", defende o executivo.

Ronaldo (à direita), na época da dupla Alex e Ronaldo
Ronaldo (à direita), na época da dupla Alex e Ronaldo Imagem: Divulgação

De força de Neymar à prisão

Em 30 anos de carreira, Ronaldo bateu na trave do sucesso nacional duas vezes. Ele nasceu em Ouro Preto do Oeste, cidade com 35 mil habitantes em Rondônia.

Aos 17 anos, foi para São Paulo, começou a cantar em bares e entrou no grupo Bonde do Sertanejo, que participou dos programas do Faustão e do Raul Gil entre 2004 e 2007.

Mas o Bonde não estourou, e Ronaldo, na sequência, formou a dupla Alex & Ronaldo.

Após oito anos de tentativas, eles emplacaram o sertanejo festivo "Sexta-Feira sua Linda" em 2015, repostado por Neymar e Alexandre Pires no Instagram.

O paranaense Osvaldo Haroldo Brehm, dono de uma transportadora, ficou animado ao vê-los no programa "Encontro com Fátima Bernardes", na TV Globo, e resolveu investir na dupla em 2016, mas "o negócio nunca pegou", disse ao UOL.

"Paguei para tocar em rádio e entrar em programas de TV. Mas nunca mexi com internet."

Osvaldo não sabe se Ronaldo já usava robôs, mas viu que o sucesso real não refletia a exposição na mídia. "Marcava show em casa de 1.200 pessoas e iam cem. Perdi muito dinheiro."

Segundo Osvaldo, a dupla terminou quando Ronaldo se recusou a divulgar a música "Olhar de Loba", pois aparecia pouco no clipe. "Os dois brigaram e eu saí no prejuízo."

Ronaldo continua em carreira solo desde 2017. O nome artístico atual se confunde com o da dupla: Alex Ronaldo. Mas o negócio dos fakes prosperou.

Só uma das faixas roubadas, "Você Anda", no perfil falso Junior Kobal, tem 1 milhão de plays, mais que todo o último álbum real de Ronaldo.

Kobal caiu, mas outros continuam

O perfil Junior Kobal é um dos 101 já excluídos dos 209 enviados pelo MP ao Spotify no início de dezembro.

Valéria Costa, autora real de "Você Anda", ficou aliviada: "Os caras cometem esses crimes na internet com certeza da impunidade, mas tá aí a prova de que não é impossível pegar".

Capa do disco 'Miragem', usada pelo artista fake Junior Kobal
Capa do disco 'Miragem', usada pelo artista fake Junior Kobal Imagem: Reprodução/Spotify

"Eu nunca tinha visto uma operação como essa, contra esse novo tipo de pirataria nas plataformas", diz o advogado especializado em música Daniel Campello, da Orb Digital. "Mas o problema no Brasil é sistêmico."

Para Daniel, as editoras [empresas que cuidam dos direitos autorais] devem agir mais para evitar o comércio precário no WhatsApp e os golpes.

O UOL procurou o Spotify, mas não teve resposta. A empresa disse em abril que "detentores de direitos podem denunciar conteúdo infrator por meio de nosso formulário".

Questionado sobre como evitar "conteúdo infrator", o Spotify se limitou a dizer: "Dependemos de nossos provedores de conteúdo para verificar os direitos autorais do conteúdo que nos entregam".

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