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Cartórios da BA faturam R$ 3 bi enquanto ação emperra há 13 anos no STF

A demora de 13 anos do STF para julgar um processo sobre a ocupação de cartórios na Bahia por tabeliães sem concurso específico garantiu um faturamento de R$ 3,1 bilhões a cerca de cem titulares diretamente beneficiados entre 2012 e 2025.

É o que mostra um levantamento do UOL com dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e do TJ-BA (Tribunal de Justiça da Bahia).

Cartórios fora do alcance da lei arrecadaram, em média, um quarto do faturamento dos beneficiados. A Constituição de 1988 proíbe a ocupação de tabelionatos sem concurso.

Colaboraram com a demora quatro mudanças de opinião do ex-relator, o ministro Dias Toffoli, sobre qual tipo de plenário do tribunal deve julgar o caso —o físico ou o virtual.

Quando estava à frente do processo, Toffoli decidiu não analisar o pedido de liminar do Ministério Público, mesmo após o STF e o CNJ terem barrado iniciativas semelhantes de ocupação de cartórios sem concurso específico em ao menos seis estados, além do Distrito Federal.

São eles: Rio, Minas Gerais, Goiás, Paraná, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul.

Após sucessivos adiamentos, o julgamento deveria ter sido concluído na semana retrasada, no plenário virtual do STF.

O ministro Luiz Fux, no entanto, pediu que o caso seja levado ao plenário físico. Ainda faltam os votos de Fux, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Flávio Dino e André Mendonça não participam pois substituíram ministros que já haviam se manifestado.

O placar está 6 a 0 desde 2023 pela inconstitucionalidade da lei que beneficiou os cartorários —Toffoli votou nesse sentido, mas defendeu que os tabeliães fossem mantidos "em homenagem ao princípio da segurança jurídica".

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O UOL procurou Toffoli quatro vezes, por email e telefone. Ele e a presidência do STF não responderam.

A Anoreg, entidade que representa os cartórios, disse que o benefício é legítimo e foi defendido também pelos tabeliães, que querem permanecer nos cargos (leia mais abaixo). A reportagem também procurou os outros tabeliães listados com maior faturamento. Caso se manifestem, a reportagem será atualizada.

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Imagem: Arte/UOL

O levantamento analisou inicialmente 146 ex-servidores do tribunal que ingressaram no órgão —muitos eram suboficiais ou subtabeliães, segundo o Ministério Público— e recebiam apenas salários fixos, em torno de R$ 5.000.

Mas, a partir de uma lei estadual de 2011, eles se tornaram tabeliães com direito a remuneração variável, decorrente da arrecadação e dos lucros dos cartórios, que chegava a R$ 70 mil.

O levantamento excluiu da lista os que ingressaram antes da Constituição de 1988, pois o STF entende que eles têm direito ao benefício. Sobraram 97 tabeliães que foram realmente favorecidos tanto pela lei quanto pela demora no processo.

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Parte desses tabeliães se envolveu em fraudes, corrupção e até acusações de homicídio, segundo documentos do TJ-BA e de outros tribunais obtidos pela reportagem.

Desde 2011, houve 14 casos de afastamento de "donos" de cartórios, e cinco tabelionatos estão sob intervenção por suspeita de irregularidades, segundo levantamento do TJ-BA enviado ao Supremo. Entre elas estão beneficiar parentes com escrituras e registrar uma mesma área duas vezes.

Rendimentos de grupo são maiores

Em valores corrigidos pela inflação, os 97 tabeliães faturaram, em média, R$ 2,5 milhões anuais por cartório ao longo dos 13 anos em que o processo tramita no STF.

O UOL calculou o faturamento a partir do segundo semestre de 2012 —quando o Ministério Público pediu ao STF a derrubada imediata da lei que os beneficiou—, até junho passado.

O grupo de tabeliães não beneficiado pela lei e também pela demora do STF em julgar o processo faturou quatro vezes menos: uma média de R$ 632 mil por ano por cartório.

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O grupo beneficiado pela lei e pela demora teve lucro médio de 23% no período. Os demais, 20%.

Caso o processo no STF seja julgado conforme os votos que prevalecem nesse e em outros casos semelhantes, os 97 tabeliães teriam de deixar seus cargos e um concurso de provas e títulos seria aberto para preenchimento das vagas.

A reportagem apurou que os que entraram antes de 1988 devem permanecer nos cargos seguindo o voto da nova relatora do processo, Cármen Lúcia.

Toffoli travou o processo quatro vezes

O único ministro que votou pela manutenção dos tabeliães foi Toffoli. Ele era relator da ação e se negou a analisar a liminar do processo.

Enquanto esteve à frente do caso, entre 2012 e 2019, o processo jamais foi julgado.

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Depois que Toffoli deixou a relatoria, o julgamento começou no plenário virtual em 2020. Desde então, por quatro vezes, o ministro interrompeu a tramitação, pedindo que o caso fosse analisado nos plenários físico e virtual.

A lei que beneficiou os cartórios foi questionada no STF pela PGR (Procuradoria-Geral da República) porque a Constituição proíbe a ocupação de tabelionatos sem concurso de provas e títulos.

Nas décadas seguintes, o Tribunal de Justiça da Bahia realizou concursos apenas de provas e ocupou os cartórios com servidores que recebiam salário fixo, sem ter direito à arrecadação (entre eles suboficiais ou subtabeliães).

Em 2011, a Bahia aprovou uma lei que permitiu a esses servidores trocar a remuneração fixa (de cerca de R$ 5.000) pelo direito de ficar com toda a arrecadação variável dos cartórios, descontadas as despesas.

O ex-titular de cartório Davidson Araújo, um dos maiores beneficiados pela lei, disse ao UOL que o rendimento mensal subiu para faixas entre R$ 50 mil e R$ 70 mil.

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A Constituição estabelece que a remuneração deve ser ligada à administração privada do cartório, mas prevê que seja necessário concurso específico para selecionar os tabeliães.

O STF e o CNJ decidiram, pelo menos sete vezes, que leis semelhantes à baiana contrariavam a Constituição.

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Imagem: Arte/UOL

Maiores lucros passaram de R$ 50 milhões

Segundo dados do CNJ, o cartório com maior lucro foi o 2º Registro de Títulos de Salvador, de Maria Luiza Abbenhausen, com R$ 52,9 milhões em 13 anos. O cartório não prestou esclarecimentos.

Em segundo lugar, com valor próximo, ficou o cartório de Davidson. Ele foi afastado este ano e se diz injustiçado, alegando que não participou do suposto esquema de venda de sentenças judiciais revelado pela Polícia Federal na Operação Faroeste.

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A investigação revelou "esquema criminoso voltado à venda de decisões judiciais por juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia", segundo a PF. No caso de Davidson, o TJ da Bahia tirou o cartório dele este ano acusando-o de cancelar matrículas de imóveis indevidamente.

Davidson nega e afirma que só "cumpriu ordens por escrito". O ex-tabelião afirma que não foi indiciado nem denunciado na Operação Faroeste, mas, mesmo assim, foi punido pelo Tribunal de Justiça da Bahia. Procurado, o tribunal não se manifestou até a publicação da reportagem.

Em termos percentuais, o cartório que mais faturou foi o 1º Tabelionato de Notas de Itabuna, de Alice Maria Sá Lima, com 87% de remuneração líquida —R$ 7,7 milhões ao longo de 13 anos, descontadas despesas de custeio e repasses.

Anoreg defende lei questionada

Procurada pelo UOL, a Anoreg defendeu a legalidade da lei da Bahia. A entidade é a maior instituição representativa de cartórios do país.

A reportagem também procurou Rogério Bacellar, presidente da Anoreg, mas ele não quis dar entrevistas ou informar sobre o conteúdo das audiências com ministros do Supremo. O STF também não respondeu os questionamentos.

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A medida é plenamente legal e legítima, sobretudo porque todos os profissionais beneficiados foram aprovados, por mérito, em concurso público específico para o exercício da atividade notarial e registral.
Nota da Anoreg

Em maio deste ano, a entidade pediu para o julgamento ser adiado. Três dias antes da data prevista para retorno do julgamento, o deputado federal Zé Neto (PT-BA) publicou duas fotos de um encontro intermediado por ele com os ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia com representantes da Anoreg. O parlamentar relatou um encontro da entidade com Fux.

Dias depois, Fux pediu para mudar de plenário e isso adiou o julgamento.

Zé Neto disse ao UOL que informou aos ministros Gilmar e Cármen que os tabeliães teriam passado por um concurso nacional em 2004, com candidatos de outros estados, e não em uma seleção interna.

O deputado também disse que é "injustiça" tirar os cartórios dos tabeliães porque foram eles que lutaram pela privatização das serventias. "Só foram eles que botaram a cara", afirmou.

Tabeliães tiveram problemas com a Justiça

Além de Davidson, outros tabeliães entre os dez que mais faturaram já enfrentaram problemas criminais, embora ao menos dois tenham conseguido reverter as situações.

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Éden Márcio Lima, de Feira de Santana, teve prisão decretada em 2021 e foi denunciado por supostamente ter assassinado a própria esposa num triângulo amoroso.

Um juiz de primeira instância o absolveu, mas o TJ-BA invalidou a sentença, apontou indícios de autoria e determinou que outra vara analisasse o processo.

Éden foi afastado do cartório pela Justiça em outubro passado em razão da ação criminal. No processo, a defesa dele afirma que a morte da ex-mulher não foi assassinato e que testemunhas mudaram seus relatos em favor do tabelião.

Em dezembro passado, o Superior Tribunal de Justiça rejeitou recursos da defesa contra a decisão do TJ-BA de mandar reanalisar o caso. O processo está em andamento. O UOL procurou os advogados de Éden, mas não obteve retorno.

A tabeliã Conceição Gaspar, que também figura entre as que mais faturaram no período, foi investigada pelo Departamento de Combate ao Crime Organizado da Bahia após denúncia de que receberia gratificações para agilizar processos.

Em 2022, o TJ abriu processo disciplinar por irregularidade em "escritura de compra e venda envolvendo pessoa jurídica brasileira equiparada à estrangeira, sem prévia autorização do Incra". Os dois casos foram arquivados, mostram documentos enviados pelo advogado dela, Denny Albuquerque.

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Joelita Gonçalves, de Barreiras, perdeu o cartório em 2023 após investigação da Corregedoria do TJ.

Ela foi acusada de abrir matrículas duplicadas, atuar em loteamentos irregulares e em casos envolvendo parentes como partes interessadas. O advogado dela, Fabrício Bastos, não se manifestou até a publicação desta reportagem.

Leia a integra da nota da Anoreg:

"A Associação dos Notários e Registradores do Brasil manifesta seu apoio à apreciação e julgamento da Lei Estadual da Bahia - Lei nº 12.352/2011- que garantiu aos notários e registradores legalmente investidos a opção de mudança de regime do público para o privado.

A medida é plenamente legal e legítima, sobretudo porque todos os profissionais beneficiados foram aprovados, por mérito, em concurso público específico para o exercício da atividade notarial e registral.

Desde a Lei Estadual nº 1.909, de 1963, o ingresso na atividade notarial e de registro no Estado da Bahia se dá exclusivamente por concurso público, tanto para notário quanto para registrador. Essa tradição jurídica assegura que a função seja desempenhada por profissionais qualificados, selecionados de forma transparente e de acordo com os princípios constitucionais.

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A Anoreg reforça que a norma baiana respeita a legalidade, a meritocracia e a continuidade de um serviço público delegado que é essencial para a segurança jurídica da sociedade, e confia que o julgamento confirmará sua constitucionalidade e legitimidade."