Match na nova indústria

Como a cultura das startups pode apresentar o Brasil à quarta revolução industrial

Pintou um clima em plena crise econômica e política. Os interessados admitiram sonhos em comum. O desdém de outros tempos virou um encanto inicial, que esquentou e "deu match”. O relacionamento dá pinta que deve ser sério, já que a busca por resultados é intensa. Depois de muitos olhares atravessados, indústrias do país e startups dão os primeiros passos para um futuro juntos. A principal meta é clara: desenvolver soluções tecnológicas inovadoras para a manufatura que acelerem a caminhada do parque industrial brasileiro rumo à quarta revolução do setor. 

Para esse “match” sair, foram as startups a parte que mais suou a camisa, que cortejou com afinco o futuro parceiro, mesmo após os anos de gelo reservados pelos gigantes da indústria àquelas empresas pequenas e recém-criadas. “Dois anos atrás, quando começamos, era muito difícil. A gente até evitava se apresentar como startup. Todo dia eu pensava em fechar a empresa”, relembra Diego Mariano, 29, fundador da BirminD, criada em Sorocaba (99 km a oeste de São Paulo) e hoje com clientes multinacionais.

Mas a crise econômica, os avanços tecnológicos e a forte concorrência internacional mudaram a indústria - ou ao menos o que os donos do setor viam como alternativa para sobreviverem. A necessidade bateu à porta, e foi preciso correr atrás de modernização. Iniciativas públicas e privadas que aproximaram aos dois lados são comparadas ao Tinder, um dos mais concorridos aplicativos de paquera. “O cenário se inverteu. Antes, oferecíamos soluções de graça e não tínhamos aceitação. Hoje as empresas nos procuram”, afirma Bruno Belanda, 30, fundador da Intelup, startup de Piracicaba (160 km a noroeste de São Paulo). “Em pouco tempo, surgiu um ecossistema vibrante de incubação e aceleração de startups”, completa Antonio Rossini, 34, fundador da Nexxto, de São Paulo.

Tinder da indústria

A analogia com o app de encontros não é gratuita. O conceito do Tinder realmente norteou o sistema que ajudou na aproximação dessas áreas. Um dos cupidos é o Programa Nacional Conexão Startup Indústria da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), vinculada ao governo federal. “É como o Tinder. As indústrias grandes querem namorar as startups. Então o programa faz uma espécie de ‘match’ para que a gente consiga conversar”, explica Luis Fernando de Souza, 35, outro sócio da Intelup.

“Falar em startups era um tabu. As soluções buscadas pelas empresas vinham de fora do país porque achavam que os jovens daqui não entendiam de agilidade e de futuro do país. Colocamos os dois lados na mesa e viram que a conexão era viável e necessária”, afirma Guto Ferreira, presidente da ABDI.

Outro cupido é o Ranking 100 Open Startups. “Funciona como um ‘match making’ por perfil. Executivos de grandes empresas e startups se conectam. Os executivos avaliam as startups constantemente. Em um momento do ano, a gente pega a pontuação e divulga o ranking”, explica Bruno Rondani, criador do projeto, que também realiza um encontro entre executivos e startups para incentivar parcerias.

Empresas como a Ambev passaram a criar eventos próprios para se aproximar das startups. “Elas têm mais flexibilidade do que os grandes fornecedores para discutir as soluções que a gente precisa. É uma simbiose porque, ao mesmo tempo em que elas nos ajudam, a gente ajuda elas a crescer e a se desenvolver”, comenta Eduardo Soares, diretor técnico da empresa de bebidas.

Bem na foto

Quando se fala em startups, é comum pensar em aplicativos e internet. Mas o campo de ação é bem maior. Na edição de 2017 do ranking, as startups voltadas para a indústria dominaram a cena, fazendo, inclusive, a líder da lista – a GoEpik, de Curitiba, que entrou em operação no começo do ano e, em poucos meses, já tem na sua carteira clientes como Renault e Natura.

“O fato de ter sido encubada no Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) aproximou a GoEpik da indústria. Antes de abrir a startup, falamos com mais de 30 empresas e vimos que nossa proposta fazia sentido para elas. Nosso foco é acelerar o processo de indústria 4.0”, afirma o fundador Wellington Moscon.

“A categoria indústria foi a mais popular, com 17 startups entre as cem do Ranking, mostrando que as grandes corporações estão interessadas em soluções. Foi uma surpresa”, diz Rondani. “Essa é uma das áreas mais promissoras para empresas de tecnologia que estão começando”, afirma José Rizzo, presidente da ABII (Associação Brasileira de Internet Industrial).

Temos a cultura de pesquisa e desenvolvimento. Nossa solução é uma entidade viva

Antonio Rossini, CEO da Nexxto

E que soluções são essas? Grande parte se destina às linhas de produção, para evitar falhas e desperdícios, tornando as indústrias mais inteligentes e competitivas. Há, por exemplo, softwares com sistemas de sensores que monitoram o estado das máquinas, o que ajuda a fazer manutenções preventivas, evitar interrupções e a controlar a qualidade do que é produzido. Tudo pode ser acompanhado via tablets e smartphones, inclusive à distância.

A crise brasileira deu um empurrão para a indústria adotar esse tipo de solução. “As [soluções das] startups resolvem as perdas. A indústria não tem muitos recursos para investir. Então, para conseguir sobreviver em uma fase de crise, ela reestrutura o sistema produtivo e busca mais eficiência”, analisa o economista Nelson Marconi, professor da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo).

Crescer e aparecer

Apesar de contar com um parque grande, a indústria tem perdido espaço na economia brasileira. A participação do setor de transformação no PIB (Produto Interno Bruto) oscilou entre os anos 90 e a década passada e vem caindo desde 2008.

Os setores da indústria do país têm níveis diferentes de desenvolvimento tecnológico, mas, no geral, é uma área considerada defasada. Rizzo lembra, por exemplo, que o Brasil tem um baixo índice de robotização.

No Índice Global de Competitividade do Setor Industrial, elaborado pela consultoria Deloitte, o Brasil despencou do oitavo para o 29º lugar entre 2013 e 2016. “Isso não é compatível com o nosso tamanho. Afinal, estamos entre as dez maiores economias do mundo”, lamenta Gianna Sagazio, diretora de Inovação da CNI (Confederação Nacional da Indústria).

“No cenário que está se construindo, o Brasil se tornará cada vez mais um provedor de matérias primas pouco elaboradas e um consumidor de produtos importados de alta tecnologia. Cada vez dependemos mais de países como a China para definir nosso ritmo de crescimento”, alerta Marco Antonio Martins da Rocha, coordenador do Núcleo de Economia Industrial e de Tecnologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Produção racional

O avanço da quarta revolução industrial aumenta a necessidade de modernização no Brasil. O termo Indústria 4.0 surgiu na Alemanha em 2011 para batizar o projeto alemão de inovações tecnológicas. Não demorou muito para que os Estados Unidos elaborassem o conceito de manufatura avançada, uma espécie de sinônimo.

Essa nova fase da indústria envolve tecnologias como internet das coisas, inteligência artificial, big data, realidade aumentada, impressão 3D e nanotecnologia. A aplicação desse arsenal no processo produtivo promove o sensoriamento e a digitalização, a geração de informações e estatísticas em grande escala e a interação entre as máquinas. Isso deve resultar em uma indústria extremamente racional, capaz de fabricar produtos individualizados, com grande eficiência energética, menos desperdício e poluição.

O próprio consumidor deve ser envolvido no processo. Segundo Flávio Bruno, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e autor do livro "A Quarta Revolução Industrial do Setor Têxtil e de Confecção", a indústria poderá vir a abrir mão do sistema de estoques. “Com informações em tempo real, a produção poderá acontecer só depois da venda, invertendo a lógica de se produzir antes do consumo.”

A internet das coisas é uma das tecnologias habilitadoras da indústria 4.0 pelo potencial que oferece em conectar máquinas, sistemas, aplicativos à rede de computadores, permitindo que as coisas interajam entre si na produção

Anapatrícia Morales, diretora da Agência de Inovação da Universidade Federal do ABC

Mesmo nos países que saíram à frente, este cenário todo ainda não é realidade. “Na Alemanha, a Indústria 4.0 só representa 10% do setor. O desafio é mundial”, diz Marcelo Prim, gerente-executivo de Inovação e Tecnologia do Senai.

No Brasil, empresas como Embraer e Ambev começaram a adotar tecnologias 4.0 e fizeram parcerias com startups. “Tem muita gente capacitada e qualificada para alavancar oportunidades de indústria 4.0 no país”, declara Antonio Carmesini, diretor de engenharia de manufatura da Embraer.

Peixes rápidos

A adoção de tamanha diversidade tecnológica exige agilidade, mas também pesquisa e desenvolvimento, o que não é o forte da indústria nacional. Um levantamento feito no ano passado pela ABDI mostrou que 88% de 24 indústrias visitadas não tinham uma área exclusiva dedicada à pesquisa, desenvolvimento e inovação.

Esse quadro reforça a importância das startups para um retomada. “As grandes corporações passaram a entender as startups como laboratórios”, comenta Wilson Nobre, professor e pesquisador do Fórum de Inovação da FGV. “Dependemos de parcerias e cooperação”, completa Carmesini, da Embraer.

Indústria que não inovar corre o risco de ser engolida. “Antes, na indústria, falava-se que o peixe maior [a grande empresa] comia o menor. Hoje, na era das startups, é diferente. Fala-se que o peixe mais rápido [a empresa inovadora] come o mais lento”, afirma Ferreira, da ABDI.

Imposto sobre anjos

A chance de uma startup não dar certo é considerável. “A indústria busca o risco zero. As startups são 100% risco”, prossegue Ferreira. Para aumentar os perigos, o processo até a venda de uma solução pode demorar. “O desafio é fazer a startup sobreviver quando não está fechando negócios”, diz Rosana Jamal, sócia da aceleradora Baita.

Um mecanismo de apoio é o investimento anjo, em que um agente externo decide apostar na empresa e aplicar recursos nela. O problema é que, em julho, o governo federal resolveu taxar, com alíquotas variáveis, esse tipo de investimento.

“Não faz sentido tributar isso como se fosse um fundo de renda fixa. É um grande desestímulo”, reclama Cassio Spina, presidente da Anjos do Brasil, entidade de fomento a investimentos. Um dos argumentos contra a taxação é o benefício rápido que o investimento proporciona à economia em função da compra de equipamentos e da contratação de funcionários e serviços pela startup.

Com a taxação, Spina teme a estagnação do investimento anjo no país. Em 2016, os investimentos em startups (não só industriais) somaram R$ 851 milhões, uma alta de 9% em relação ao ano anterior, inferior ao crescimento de 11% verificado em 2015. Além disso, o número de investidores já apresentou uma redução – de 3% – no ano passado, segundo a Anjos do Brasil.

Inovar ou morrer

Ter uma indústria forte é apontado como requisito para uma economia desenvolvida. Analistas veem com bons olhos o namoro das grandes empresas com startups, mas dizem que isso não é suficiente. A CNI lançou recentemente o estudo “Pequenas e Médias Empresas Inovadoras e Startups”, em que propõe uma política nacional de inovação industrial. O estudo mostra que falta articulação entre programas públicos de incentivo à pesquisa.

“Países ricos tratam a inovação como estratégia de desenvolvimento porque gera competitividade, produtividade e prosperidade. Estamos na contramão e retrocedendo. Não temos uma estratégia nacional de inovação e tecnologia”, argumenta Gianna Sagazio, diretora da CNI. “Sem inovação, a gente [o Brasil] pode fechar a lojinha”, reforça Wilson Nobre, da FGV.

Para a professora Anapatrícia Morales, do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas e diretora da Agência de Inovação da Universidade Federal do ABC, a quarta revolução industrial é uma chance para o país. “O Brasil está diante de uma janela de oportunidade que poderá qualificá-lo para se inserir em cadeias globais de valor. Isso exige um desenho estratégico de desenvolvimento e de implementação da Indústria 4.0”, afirma.

O Brasil é fornecedor de commodities e competitivo em agricultura, onde há muita inovação. Mas em indústria, estamos perdendo a corrida e há uma necessidade premente de encarar a inovação de maneira séria

Wilson Nobre, professor da FGV

Só em julho passado, o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços criou um grupo para propor uma estratégia nacional de Indústria 4.0.

“Se olhamos casos de sucesso, como Canadá e Estados Unidos, vemos que a participação do Estado é fundamental. Ele entra para mitigar riscos característicos da inovação tecnológica e é fundamental para montar e coordenar sistemas nacionais”, diz Marco Antonio Rocha, da Unicamp.

Para Nelson Marconi, da FGV, o setor industrial brasileiro ainda tem jeito. “A indústria não está partindo do zero. Ela está atrasada, mas, 20 anos atrás, tinha um dos principais parques do mundo. A recuperação não é impossível.” Haja match e revolução para o Brasil desencalhar sua indústria.

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