Mãe é mãe

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Texto Carina Martins
Design Denise Saito

Partiu parto

Há 15 anos, 189 países assinaram um pacto com a ONU (Organização das Nações Unidas) para mudar o mundo. O documento estabelecia metas para que cada nação melhorasse a si mesma - e, consequentemente, o planeta. A data para cumprir esses objetivos chegou agora, neste ano de 2015.

O Brasil cumpriu as metas, algumas até com antecedência - o objetivo estabelecido para a erradicação da fome, combate à Aids, valorização da mulher, sustentabilidade, etc. Mas houve uma meta que não conseguimos alcançar. Uma em que os avanços em todas as áreas não foram suficientes, onde encontramos barreiras que vão além das transpostas nesse período transformador do país: a mortalidade materna.

A assistência ao parto vive um momento de mudança em todo o mundo. O modelo altamente medicalizado em vigor atingiu o potencial de suas vantagens e agora escancara seus problemas. Há décadas, as verdades sempre transitórias da medicina caminham para a diminuição ou eliminação de procedimentos e intervenções de rotina no nascimento, e é assim que a OMS (Organização Mundial de Saúde) e o Ministério da Saúde orientam profissionais e mães.

Entre o recomendado e a prática, no entanto, há um nó multidisciplinar que envolve desde questões culturais até qualidade do serviço público e formação profissional, passando (com grande importância) pelo modelo privado dos planos de saúde. Em uma das pontas desse nó, as brasileiras estão recebendo pouca informação e autonomia sobre si mesmas; na outra, os brasileiros estão nascendo mal.

Hoje, 98% dos partos brasileiros acontecem em hospitais e 91% das mulheres recebem a cobertura pré-natal. Ou seja, o acesso à assistência existe. O que faz com que nossa mortalidade materna de 64 por 100 mil seja mais alta do que a de países como Cazaquistão e Irã está, em grande parte, no tipo e na qualidade da assistência. É isso que precisamos discutir.

Como foi meu parto

Mães com diferentes experiências contam o que descobriram sobre a assistência ao parto

Ana Franco - cesárea agendada

Ana Paula Anderson - natural domicilar

Ane Aguiar - natural no SUS

Mariana Vieira de Carvalho - natural hospitalar

A falsa polêmica

Mas, na hora de conversarmos sobre o assunto, travamos de cara em uma falsa polêmica: parto normal x cesárea.

Eis uma polêmica sem respaldo real, e a explicação disso está logo abaixo. Mas, antes de chegarmos a ela, é preciso um pacto. Um pacto que deixe claro que tratar o assunto da via de parto como um jogo de dois times tem servido para atrasar o debate e opor mulheres. Tem colocado nossos milhões de cesariadas na defensiva, com o slogan de que não são "menos mães", e colocado ativistas do parto humanizado como se fossem radicais anti-médicos.

Essa oposição, além de falsamente criada e mais falsamente ainda representada, não serve a ninguém. É preciso que fique claro: na questão da assistência ao parto, as mulheres - todas elas, em conjunto e individualmente - são credoras, não devedoras. E vamos além: homem não dá à luz, mas evidentemente nasce. Entra, portanto, na lista de credores de uma assistência melhor.

Estamos todos juntos nessa.

71% dos recém-nascidos saudáveis são aspirados mesmo assim 

A aspiração das vias aéreas é um procedimento em que sondas são inseridas na boca e narinas do bebê assim que nasce para desobstruir. Pode salvar vidas quando necessário. Mas, em bebês saudáveis, causa dor e riscos. 39,5% dos saudáveis também sofrem aspiração gástrica. 

A polêmica é falsa por se basear no discurso que trata parto normal e cesariana como dois lados de uma mesma moeda, duas opções iguais. Esse discurso propõe uma simetria que não existe. Não há no mundo nenhuma associação de medicina, saúde ou ciência que trate a cesariana sem indicação médica como uma alternativa equivalente ao parto, como duas coisas separadas apenas pela preferência pessoal. Todos os órgãos, autoridades e evidências concordam: não são.

As vantagens da cesariana - e aí elas são absolutas, milagrosas - acontecem nos casos em que ela é necessária. E isso se dá oficialmente apenas entre um mínimo de 10% e um máximo de 15% dos partos, segundo a OMS. Não há polêmica no excesso de cesáreas eletivas porque não há dois lados nessa história. Entender isso é o primeiro passo de um caminho bem longo de melhoria da assistência ao parto, então é preciso que aconteça o quanto antes.

A visibilidade do ativismo pelo parto natural e as recentes medidas do Ministério da Saúde e de instâncias como a cidade e o Estado de São Paulo nesse sentido podem dar a falsa impressão de que há um grande e até opressor movimento de mulheres parindo. Embora um movimento de conscientização de fato esteja em curso, nada poderia ser mais falso do que a impressão acima: o número de cesarianas continua crescendo 1,2% ao ano no Brasil. O discurso de que se trata unicamente uma questão de escolha serve a essa realidade.

Monólogos contra a vagina

Preconceitos e procedimentos ajudam a afastar a mulher do parto normal

Operação de risco

O médico brasileiro Cesar Victora é um dos epidemiologistas mais importantes do mundo. É de um dos trabalhos de sua equipe na Universidade Federal de Pelotas que vem os resultados que levaram à indicação mundial do aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade, por exemplo. No ano passado, Victora apresentou um relatório no Fórum da Parceria para Saúde Materna, de Recém-Nascido e de Crianças em Johannesburgo, África do Sul, tratando do assunto no Brasil e no mundo.

Com base em sua pesquisa, o médico aponta o excesso de cesáreas eletivas como sendo "de longe, o principal problema" para a redução dos índices nacionais de mortalidade materna. Na ocasião, ele classificou como "caso para Ministério Público" as instituições e regiões onde essa prática chega a 90% dos nascimentos. Só que esse é o índice médio de todo o sistema privado do país. Na verdade, mais de 10% dos planos de saúde brasileiros pagaram por literalmente zero partos normais no ano passado.

Se, quando indicada, a cesariana salva vidas, o contrário também é verdade. Os riscos de morte materna, por exemplo, triplicam na cirurgia. As consequências para a saúde do bebê são todas negativas e bem documentadas. Para a mãe, a decisão também é permanente, já que as cicatrizes uterinas serão para sempre relevantes em sua saúde reprodutiva - qualquer tipo de parto é mais perigoso após uma cesariana, por exemplo.

Mas quantas são informadas disso durante o pré-natal?

Nunca nenhum obstetra falou comigo sobre riscos

Ana Franco, mãe de duas crianças

Quem é quem

Saiba quem são os profissionais que assistem o parto e entenda, enfim, quem é a doula

Mãe

É quem de fato faz o parto e a quem os profissionais dão assistência. A exceção fica por conta da cesárea que, por ser uma cirurgia, precisa ser realizada por um médico obstetra.

Médico obstetra

No Brasil é o profissional mais associado à assistência do parto. É um médico especializado que pode ou não assistir um parto normal, mas só ele está habilitado a fazer uma cesárea. No sistema brasileiro, também é ele quem cuida dos exames de pré-natal e é responsável pelos partos hospitalares.

Pediatra neonatologista

São os médicos que observam e atendem os bebês assim que nascem.

Anestesista

É o médico encarregado da analgesia nos partos normais ou anestesia nos partos cirúrgicos. A analgesia nos partos normais não é obrigatória, mas toda mulher tem o direito a ela.

Enfermeiras Obstetras

São profissionais formadas em enfermagem com especialização em obstetrícia, habilitadas a assistir partos normais, mas não cesarianas ou intervenções médicas. Esse tipo de profissional faz todo o atendimento nas casas de parto e acompanham partos hospitalares. Estão habilitadas a conduzir o pré-natal e a indicar médicos quando necessário.

Obstetriz

São profissionais de saúde com graduação em obstetrícia. Suas atribuições são semelhantes às de enfermeiras obstetras. Muitas vezes chamadas de parteiras (não confundir com "parteiras tradicionais"), são as responsáveis principais pela maior parte dos partos de baixo risco em vários países do mundo, como na Inglaterra. No Brasil, só recentemente voltaram a ser formadas e seu espaço na assistência ao parto começa a ser reconstruído.

Doula

Muita confusão se faz a respeito do papel da doula. Na verdade, essa profissional nada mais é do que uma acompanhante especializada. Ela não age no processo do parto em si. O que elas fazem é promover apoio físico e emocional para a parturiente, fazendo massagens, ajudando na respiração e no conforto da dor, por exemplo.

Parteiras tradicionais

São as parteiras de formação prática, mulheres que aprenderam com mulheres mais velhas a assistir um parto e que, em muitos casos, pertencem em nosso imaginário aos partos de nossas bisavós. As parteiras tradicionais ainda são ativas em nascimentos domiciliares de muitas zonas rurais do Brasil. Hoje, elas são reconhecidas pelo Ministério da Saúde dentro da sua atuação e recebem apoio para qualificação.

Campeões de nada

Somos hoje, com folga, o país campeão mundial em cesarianas. Na verdade, de todos os seres vivos em todas as localidades do planeta Terra, o brasileiro é o único que nasce, em sua maioria (52%), por meio de uma cirurgia. E não há outra maneira de chegarmos ao topo desse ranking que não seja fazendo muitas delas sem necessidade. Os motivos que levam a isso são vários, e o menor deles é o desejo da mãe: no início da gravidez, 15,4% das mães do SUS (Sistema Único de Saúde) e 36,1% das mães do sistema privado dizem preferir ter seus filhos por cesariana. No fim, respectivamente 44,8% e 89,9% acabam nascendo dessa maneira.

Na verdade, 34,1% das mulheres brasileiras dão à luz sem nem chegarem ao trabalho de parto - evitar o chamado TP é fundamental em cesarianas programadas, ou elas perdem seu caráter de agenda. Assim, quem opta por programar o nascimento faz isso necessariamente antes da hora. Como é impossível datar a idade gestacional com exatidão - na melhor das hipóteses, há uma margem de erro de cerca de uma semana -, às vezes a cirurgia acaba sendo feita quando a criança ainda é tecnicamente prematura.

35% dos brasileiros nascem entre 37 e 38 semanas de gestação

As duas semanas seguintes ao "corte" de prematuridade concentram os nascimentos brasileiros, graças a cesáreas agendadas para evitar o trabalho de parto. Embora não sejam oficialmente prematuros, esses bebês correm mais riscos. Algumas associações médicas já não os consideram "a termo".

Para piorar, talvez a prematuridade acabe mais tarde do que se imagina. Os estudos mais recentes indicam que a idade de corte de uma gravidez a termo talvez seja mais alta do que se pensava: para o American College of Obstetricians e Gynecologysts, entre 37 e 39 semanas há uma categoria chamada "termo precoce", e só são considerados de fato a termo os bebês que nascem a partir de 39 semanas.

Esse resultado é fruto de um misto de questões culturais, formação desatualizada, falta de recursos e, especificamente na questão da cesariana, da complicada matemática dos planos de saúde. Com os convênios, naturalizaram-se distorções como maternidades que só atendem com hora marcada e obstetras que agendam a data de nascimento de bebês já na primeira consulta. A conveniência é a principal motivadora de cesarianas eletivas.

A perigosa Manobra de Kristeller é feita em 36% dos partos brasileiros. O Ministério da Saúde condena. Mas médicos e enfermeiras ainda empurram barrigas para bebês saírem

Doutor inconveniente

"A primeira coisa que um médico não pode fazer é tomar uma decisão porque é melhor para ele. A segunda, que na verdade empata com a primeira, é fazer algo porque ganha pouco. Casos assim têm que botar na cadeia". Quem diz isso não é um xiita que odeia a ciência. É o obstetra João Steibel, representante da classe médica como presidente da Comissão de Parto da Febrasgo (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia).

Lembre-se dele se encontrar um profissional que, contra ou alheio ao seu desejo, disser que depois das 37 semanas já é hora de pensar em tirar o bebê.

Para Steibel, um profissional médico tem todo o direito de só aceitar fazer cesarianas. Desde que deixe isso claro logo no começo e oriente a paciente sobre os riscos, recebendo assim apenas os casos em que há real necessidade ou o desejo informado da mãe. "Se um médico tenta empurrar a paciente para uma cesárea porque é melhor para ele, tem que denunciar, tem que combatê-los", afirma.

96 mil mulheres com plano de saúde escolheram o SUS entre 2008 e 2012 

Para evitar cesáreas desnecessárias, algumas mães com convênio privado têm procurado o sistema público. Nos últimos anos, com uma maior visibilidade das casas de parto e maternidades de referência, estima-se que esse número tenha crescido.

Como muitos outros, Steibel vê um novo modelo de atendimento para os planos de saúde no futuro, onde o médico responsável pelo pré-natal não é necessariamente o encarregado do parto, que ficaria para o plantonista. Pré-natalista que também é o obstetra exclusivo e disponível, além de não fazer sentido em gestações de risco habitual, é claramente um problema econômico em larga escala.

Mitos e verdades

Descubra se você realmente sabe de onde vêm os bebês

O buraco é mais embaixo

O índice de mulheres que preferem a cesariana é muito menor que o número submetido a ela. Mas, ainda assim, é o triplo da média mundial. Isso sugere que a relação da brasileira com o parto tem facetas complexas, que vão além da dureza econômica dos planos de saúde. Uma pista para o distanciamento entre a brasileira e seu parto pode estar no abismo entre o que o Ministério da Saúde preconiza como conduta de parto normal e o que de fato acontece. Em resposta a uma solicitação do TAB, o Ministério enviou uma nota em que defende a "abolição da violência obstétrica", termo sob o qual inclui os seguintes procedimentos: episiotomia (corte feito entre vagina e ânus), ocitocina de rotina (conhecido como "sorinho"), jejum e amniotomia (rompimento da bolsa).

Mas essas práticas, consideradas violentas e merecedoras de abolição pelo próprio MS, são a norma em nossos partos normais. A ocitocina sintética está em 36% dos partos, o jejum em 75%, a ruptura de bolsa em 39%. Todos causam sofrimento, podem causar complicações e a necessidade de novas intervenções, num efeito dominó.

Mais de 90% das brasileiras dão à luz deitadas. Mas é pior assim.

Há quase 20 anos, a posição da OMS é clara: a rotina de colocar a mulher deitada de costas para parir é uma das práticas "claramente prejudiciais ou ineficazes" que "deve ser eliminada". O ideal é ter liberdade de posição. 

A episiotomia, em especial, costuma ser tão assustadora quanto ineficaz. Ela é feita, ainda hoje, em 53% das mulheres brasileiras. Assim, o discurso de parturientes que escolhem a cesárea porque "é melhor cortar em cima do que cortar embaixo" é compreensivelmente comum. Como consequência de tanto sofrimento tão disseminado, a ideia é de que o parto não só é ruim como "é assim mesmo". Na verdade, "assim mesmo" é a maneira como só 5% das brasileiras dão à luz: com assistência, mas sem intervenções. Nesses casos, o parto é chamado de natural e, geralmente, só é conseguido por meio de um atendimento humanizado.

Ao contrário do que muita gente imagina, o parto humanizado não depende de onde é feito, nem da categoria profissional que o assiste. E, sim, da condução. "O parto deveria sempre ter sido humanizado. Mas, depois que entrou no hospital, começou a se distanciar disso. Ele é feito no hospital só por segurança. Não é porque está mais perto dos instrumentos que precisa usar", afirma Steibel. E a afirmação dele nada mais é do que um eco das evidências científicas, das recomendações das associações de todo o mundo e da mais simples lógica: se houvesse necessidade de intervenção rotineira para nascer, a humanidade teria acabado muito antes de forjar o primeiro bisturi.

A dica, como acontece muito, está na etimologia. Diferentemente de outras especialidades, obstetrícia não designa nenhuma parte do corpo ou doença. Vem do latim obstare, ou seja, estar ao lado.

Carina Martins

Colaboradora do UOL TAB. Aposta que o parto ainda voltará a ser ensinado de mãe para filha

tabuol@uol.com.br

Esta reportagem também contou com apoio de:

Carina Martins, reportagem; Paola Saliby, ilustração. Agradecimentos: Carolina Barranco, Claudia Sugai, Natalia Estima, Thais Chilvarquer.

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