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Temos cada vez mais remédios que salvam - da morte, do sofrimento psíquico, de uma existência emperrada. Isso é muito bom. Mas há contraindicações
Por Carina Martins
Como você se sente ao saber que alguns de seus sofrimentos cotidianos podem, oficialmente, ser doença? Aliviado porque há remédio? Oprimido pelo diagnóstico? Os exemplos da animação acima são situações altamente familiares para qualquer pessoa normal. Mas são, também, novos diagnósticos psiquiátricos, definidos a partir do mais recente e mais controverso guia da área, o DSM-5, lançado em 2013. A polêmica do documento é exatamente a amplitude do guarda-chuva da doença mental, que agora parece abrigar potencialmente a todos nós. Crianças descontroladas, submissão à geladeira, abstinência de cafeína - está tudo lá. E, para tudo isso, há uma droga à venda.
Alguns grandes psiquiatras acham que o espaço do normal está sendo perigosamente extinto. O mais representativo deles, atualmente, é Allen Frances, o médico à frente da edição anterior do DSM, de 1994. Frances tornou-se um crítico ativo e duro não apenas do novo guia, como também do que ele mesmo assinou. No novo livro "Saving Normal" ("Salvando o Normal", em tradução livre), ele afirma que diagnósticos flexíveis estão causando uma overdose de remédios na população, diz que "causou provavelmente mais danos do que benefícios" e responsabiliza o próprio trabalho por "três novas falsas epidemias de transtornos mentais em crianças - autismo, transtorno bipolar e déficit de atenção".
E essas afirmações são sobre a edição anterior, considerada conservadora. Agora, com uma edição ousada e que prometia novos paradigmas na psiquiatria, a preocupação é que a elasticidade tenha ido ainda mais longe.
Em algumas cidades pequenas, como as mineiras Bonfim, com cerca de 7.000 habitantes, e Piedade dos Gerais, cerca de 5.000, o consumo em 2012 chegou a ser de DEZ PÍLULAS POR HABITANTE. O uso primário do medicamento é para combater CRISES EPILÉTICAS
O DSM (sigla em inglês para Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) é o principal documento de diagnósticos psiquiátricos da medicina contemporânea. É nele que se concentram os critérios e as categorias que separam a vida normal da doença mental. Foram cinco edições desde seu lançamento, em 1952, até a mais recente, o DSM-5, de 2013.
O processo de atualização das edições não é rápido nem superficial. Para o DSM-5, por exemplo, o trabalho levou quase uma década e envolveu longa série de avaliações de pesquisa, 13 conferências científicas e cerca de 160 cientistas de áreas diversas.
Esse processo ocorre para que o Manual seja atualizado com os avanços de estudos e pesquisas. Isso pode incluir e excluir diagnósticos, alterar e definir critérios. A corrente de pensamento vigente durante sua publicação, obviamente, também é um fator determinante na linha editorial final.
1952
Com forte influência dos profissionais envolvidos em avaliações e tratamento de militares durante e após a Segunda Guerra e das Forças Armadas propriamente ditas, a primeira edição do Manual marcou a unificação dos então diferentes sistemas diagnósticos. O documento contemplava 106 transtornos, incluindo a homossexualidade, que só sairia do guia décadas mais tarde. A linha dominante vinha da psicanálise e usava os termos "reação" e "neurose" em vez de "transtorno".
1968
Apesar de ter sido publicado no final de uma década de intensos questionamentos à própria psiquiatria, a segunda edição do DSM teve poucas novidades. Mantendo a influência psicanalítica, muitos sintomas eram vistos como manifestações de conflitos internos mais amplos. O termo "reação" deixou de ser usado, mas "neurose" permaneceu. Foram listados 182 transtornos. Seis anos depois, em sua sétima impressão, o DSM retirou a homossexualidade de seus diagnósticos.
1980
Um estudo publicado em 1974 questionando a eficácia do DSM-2 deu o tom da terceira edição. O psiquiatra Robert Spitzer, autor do estudo, tornou-se o responsável pelo novo guia. O documento buscou uma linguagem mais coloquial e se afastou das hipóteses de investigação das causas, adotando um texto mais descritivo. Mais do que disso, trocou as visões psicanalíticas e fisiológicas, adotando uma linha mais regulatória. O DSM-3 passou a ser adotado fora dos hospitais e consultórios por seguradoras e tribunais, por exemplo. O número de transtornos chegou a 292.
1994
Diante do gigantismo da edição anterior, Allen Frances, psiquiatra responsável pela quarta versão do Manual, adotou como linha patamares científicos mais rígidos para a aceitação de novos diagnósticos - incluindo testes de campo relacionando os diagnósticos à prática clínica. O resultado foi um Manual bem mais conservador que seu predecessor. Além da adoção do termo "sofrimento clinicamente significativo" entre os critérios para quase metade dos transtornos, o Manual praticamente não aceitou novos transtornos: listava apenas cinco a mais do que a terceira edição.
2013
Há pouco mais de um ano, a quinta edição do foi publicada. Sem aumentar significativamente o número de transtornos - agora são 306 - o novo documento se vale do recurso de transformar transtornos antigos em subtipos de outros. O DSM-5 foi cercado de controvérsia desde sua formação, especialmente por seus diagnósticos de espectro amplo, que, segundo os críticos, patologizam comportamentos normais.
1952
Com forte influência dos profissionais envolvidos em avaliações e tratamento de militares durante e após a Segunda Guerra e das Forças Armadas propriamente ditas, a primeira edição do Manual marcou a unificação dos então diferentes sistemas diagnósticos. O documento contemplava 106 transtornos, incluindo a homossexualidade, que só sairia do guia décadas mais tarde. A linha dominante vinha da psicanálise e usava os termos "reação" e "neurose" em vez de "transtorno".
1968
Apesar de ter sido publicado no final de uma década de intensos questionamentos à própria psiquiatria, a segunda edição do DSM teve poucas novidades. Mantendo a influência psicanalítica, muitos sintomas eram vistos como manifestações de conflitos internos mais amplos. O termo "reação" deixou de ser usado, mas "neurose" permaneceu. Foram listados 182 transtornos. Seis anos depois, em sua sétima impressão, o DSM retirou a homossexualidade de seus diagnósticos.
1980
Um estudo publicado em 1974 questionando a eficácia do DSM-2 deu o tom da terceira edição. O psiquiatra Robert Spitzer, autor do estudo, tornou-se o responsável pelo novo guia. O documento buscou uma linguagem mais coloquial e se afastou das hipóteses de investigação das causas, adotando um texto mais descritivo. Mais do que disso, trocou as visões psicanalíticas e fisiológicas, adotando uma linha mais regulatória. O DSM-3 passou a ser adotado fora dos hospitais e consultórios por seguradoras e tribunais, por exemplo. O número de transtornos chegou a 292.
1994
Diante do gigantismo da edição anterior, Allen Frances, psiquiatra responsável pela quarta versão do Manual, adotou como linha patamares científicos mais rígidos para a aceitação de novos diagnósticos - incluindo testes de campo relacionando os diagnósticos à prática clínica. O resultado foi um Manual bem mais conservador que seu predecessor. Além da adoção do termo "sofrimento clinicamente significativo" entre os critérios para quase metade dos transtornos, o Manual praticamente não aceitou novos transtornos: listava apenas cinco a mais do que a terceira edição.
2013
Há pouco mais de um ano, a quinta edição do foi publicada. Sem aumentar significativamente o número de transtornos - agora são 306 - o novo documento se vale do recurso de transformar transtornos antigos em subtipos de outros. O DSM-5 foi cercado de controvérsia desde sua formação, especialmente por seus diagnósticos de espectro amplo, que, segundo os críticos, patologizam comportamentos normais.
A prática clínica e as aprovações oficiais transformam os usos mais comuns dos medicamentos. A tendência costuma ser a mesma: as drogas começam sua vida como ferramentas para controlar doenças mais graves, mas, conforme seu uso se dissemina e é considerado seguro, elas acabam se diversificando e tornam-se remédios para transtornos mais brandos do que os originais.
1955
Fadiga crônica e psicose associada à depressão
1960
TDAH*
1975
Crises epilépticas e ataques de pânico
1990
Ansiedade
1993
Surtos esquizofrênicos
2010
Crianças com TDAH*
1985
Depressão
2000
Síndrome da Tensão Pré-Menstrual
1990
Depressão e Síndrome do Pânico
2000
Transtorno de Ansiedade Social
* Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade
é o crescimento do consumo de remédios para déficit de atenção no Brasil em menos de 10 anos
deve ser o faturamento da indústria farmacêutica mundial em 2014. Equivale ao PIB da Coreia do Sul
dos idosos em asilos nos EUA tomam antipsicóticos para tratar transtornos entre moderado e grave
Professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Arthur Kümmer enxerga o fenômeno de maneira menos alarmista. "Na verdade, vivemos um momento em que a população médica e leiga começa a se conscientizar da existência de diversos transtornos do comportamento, mas ainda sem um entendimento integral de seu significado por parte de ambos - sim, inclusive por parte de muitos médicos", afirma.
A conversa é um pouco mais complexa do que apenas perguntar se o mundo moderno está fazendo com que a gente perca a cabeça ou se simplesmente somos capazes de diagnósticos melhores. Quando nascimento, morte e gradualmente quase tudo entre os dois eventos passa a ser assunto dominado por uma única área do conhecimento - a medicina -, essa é uma transformação social importante. Chama-se medicalização e, como o feio e eficaz nome indica, significa o processo de encarar sob uma ótica médica coisas que, antes, eram cotidianas: problemas com os filhos, com o trabalho, com a vida social. Mas há um paradoxo aí: ainda hoje, se são problemas, não são doenças. O diagnóstico sempre exigirá que exista um sofrimento maior, destoante, incapacitante - embora nunca mensurável. A psiquiatria paga um preço alto por ser uma área de medicina onde os exames laboratoriais não têm a resposta. Não existe ultrassom para enxergar a ansiedade, e isso gera preconceitos e dúvidas. Mas essa característica só mostra quão complexos somos: o funcionamento de um coração é Idade da Pedra perto dos mecanismos da mente humana.
"Patologizar o comportamento não é uma coisa própria da psiquiatria. Na verdade, a maioria das doenças também são extremos de uma curva 'comportamental'", diz Kümmer. "Por exemplo, hipertensão e hipotensão são variações patológicas do 'comportamento tensional' de uma pessoa. Diabetes mellitus e hipoglicemia, hiper e hipotireoidismo etc. são doenças do 'comportamento metabólico'. Em todas essas situações temos uma dificuldade em estabelecer um ponto de corte para definir a partir de onde está o quadro patológico", completa. Basta lembrar como esses pontos variam ao longo do tempo - o colesterol que há 30 anos era considerado normal hoje é de risco.
Para complicar, no entanto, Allen Frances usa o mesmo exemplo da curva para defender sua bandeira: se a altura média de um homem é 1,75 m, a partir de qual momento vamos considerá-lo doente? 2,15 m? 1,45 m? Ou a estatura de alguém, ainda que incomum e fonte de sofrimento, jamais pode ser doença?
A nova edição do DSM retirou a exceção e considera o luto um gatilho para depressão, e não uma fase normal.
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Transtorno por Uso de Cannabis é um dos itens da seção Transtornos Relacionados a Substâncias e Transtornos Aditivos. Pode ser classificado como Leve, Moderado ou Grave. A seção prevê ainda intoxicação e abstinência por Cannabis.
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Agora agrupando quatro diagnósticos sob Transtorno do Espectro Autista, o autismo é um dos diagnósticos que mais sofrem evoluções.
3 de 5
Segundo um estudo do professor Ronald Kessler, da Universidade de Harvard, quase metade das pessoas se encaixará em algum momento nos critérios do DSM-4. Com o novo Manual, o número deve ser ainda maior. Mas já se perguntou quantas pessoas terão alguma doença física ao longo da vida?
Segundo um estudo do professor Ronald Kessler, da Universidade de Harvard, quase metade das pessoas se encaixará em algum momento nos critérios do DSM-4. Com o novo Manual, o número deve ser ainda maior. Mas já se perguntou quantas pessoas terão alguma doença física ao longo da vida?
4 de 5
O Transtorno Desafiador Opositivo faz parte do DSM-5 e tem uma prevalência estimada em 6% da população.
O Transtorno Desafiador Opositivo faz parte do DSM-5 e tem uma prevalência estimada em 6% da população.
5 de 5
dos brasileiros sofrem com transtorno de ansiedade
dos paulistanos já apresentaram algum transtorno mental
milhões de brasileiros têm transtornos mentais entre moderado e grave
"A medicalização é um sintoma de uma sociedade que vive muito em função do prazer pelo prazer, não tolera e não suporta o sofrimento, não sabe lidar", diz Loiva Maria de Boni, mestre em psicologia social pela UFRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e membro do Coletivo Ampliado do CFP (Conselho Federal de Psicologia), sobre o ambiente que favorece essa medicalização. O assunto é tema de uma campanha do CFP.
Você sabe como é: a mulher reclama que está estressada para o ginecologista, o homem pede ao amigo cardiologista alguma coisa para relaxar, um paciente chega a um ambulatório reclamando de insônia e dores de cabeça. Voltam para casa com duas receitas de Rivotril e uma possível dependência. Isto, mais do que qualquer debate sobre a evolução da psiquiatria, é medicalizar o cotidiano.
"O que acontece é que hoje a maioria dos profissionais não tem tempo para estudar os pacientes", diz Anthony Wong, médico responsável pelo Centro de Atenção e Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas. Ele fala sobre o clonazepam, mais conhecido como Rivotril, invariavelmente na lista dos controlados mais vendidos do Brasil - apesar de, como todo benzodiazepínico, causar dependência física. As pessoas já chegam pedindo. "Caiu no gosto popular. O médico tem obrigação de explicar isso [o risco de dependência], então os pacientes deveriam estar sabendo. Agora, 'deveriam' não significa que estão realmente sendo informados", afirma Wong. "Hoje é muito mais fácil receitar uma pílula do que escutar a pessoa", completa. O Brasil é o maior consumidor mundial do remédio. Recentemente, a Secretaria de Saúde de Minas Gerais descobriu municípios no Estado onde o consumo chegava a dez pílulas por habitante em um ano.
O diagnóstico de crianças com transtorno bipolar cresceu 40 vezes após o lançamento do DSM-4. O de autismo, 20 vezes. E o de TDAH triplicou. É inevitável associar o crescimento ao método de diagnóstico, já que a humanidade não pode ter mudado tanto em uma geração. Muitas dessas crianças sofriam sem diagnóstico antes. Alguns especialistas acreditam que hoje muitas outras são medicadas para atender a uma expectativa ou tem doenças graves mascaradas pelo diagnóstico padronizado. "A ciência da psiquiatria trazia novos e empolgantes conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro, mas nada disso se traduziu nem em uma migalha a respeito de como devemos diagnosticar e tratar pacientes", afirma Allen Frances.
"Tem surgido uma demanda para uso de medicamentos meramente para melhorar o desempenho. É importante separar o joio do trigo. Não podemos privar de tratamento um grande universo de pessoas que têm uma condição patológica, como o TDAH, pelo fato de seu tratamento também beneficiar as pessoas que não têm déficit, mas que procuram uma estratégia farmacológica para melhorar seu desempenho. Quanto a isso, há uma necessidade de se realizar uma ampla discussão com a sociedade sobre a (in)adequação desse uso do medicamento", afirma Kümmer.
A verdade é que ainda estamos evoluindo. E é exatamente essa participação como sociedade e o reforço da autonomia que podem ajudar a manter a medicina contida em seu já imenso propósito: salvar e melhorar vidas.
É colaboradora do UOL. Repórter multimídia, vive graças a um comprimido diário. Ainda bem que ele existe.
tabuol@uol.com.brFontes consultadas para dados:
Pesquisa Mundial sobre Saúde Mental (OMS), IMS Health, Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, CMR Pharmaceutical R&D Factbook, Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (Cebrid), Anvisa - Ministério da Saúde, "Saving Normal", Allen Frances, DSM-5
Esta reportagem também contou com apoio de:
Carina Martins, reportagem; Luana Borges e Camila Licheri, produção; Pulo do Gato Animação, animação. Agradecimentos: Vanucia Cidrine e Julia Cidrine.
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