Devoção à folia

Zô Guimarães, Mateus Araújo e Tiago Dias

Aos pés do Cristo Redentor, grupo refaz jornada dos três reis magos nas ladeiras da favela Santa Marta, no Rio, com fantasias e batuque

Presente em vários estados brasileiros, a Folia de Reis celebra os três reis magos que, segundo o cristianismo, saíram para visitar Jesus recém-nascido.

Conta a Bíblia que o trio foi guiado por constelações até chegar à manjedoura. Carregavam consigo mirra, incenso e ouro.

Da escritura, a peregrinação virou folia em terras portuguesas e chegou por aqui como herança da colonização, atravessando gerações como festa popular de fé e resistência.

Uma das mais tradicionais acontece numa das favelas mais conhecidas do Brasil, encravada em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, bairro de classe média-alta alheia à tradição.

Guiada por antigos costumes, a peregrinação por aqui acontece entre becos, vielas e ladeiras do Morro Santa Marta. Na jornada, presentes são distribuídos: fantasias, cantoria e batuque.

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O grupo teve origem na década de 1950, no bairro da Ilha do Governador, mas logo subiu o morro nas mãos dos mestres Dodô e Diniz - que morreu em 2010, aos 86 anos. Hoje, sua família mantém viva a tradição de 70 anos.

A jornada começa no dia 25 de dezembro e segue até 20 de janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro do Rio.

Debaixo do sol, jovens e senhores saem em cortejo durante todos os finais de semana, das 10h às 22h, passando por casas de moradores que se dispõem a receber a festa.

Cada anfitrião recebe o cortejo durante sete anos seguidos. Na casa, além de manter um presépio armado, as famílias servem comida e bebida em abundância para o cortejo. São mais de 50 pratos.

Nesta festa, em particular, um item é indispensável: a cerveja.

Do lado de fora da casa, palhaços mascarados brincam, dançam e declamam versos. Para as crianças da favela, a passagem deles é um dos momentos mais esperados.

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Ali, os palhaços representam os soldados de Herodes, que tinham a missão de matar Jesus Cristo. No entanto, eles se encantam com a festa e devoção em torno do Redentor e desistem de cumprir a ordem. Nunca mais voltam.

Este é Robson Gabriel, 20, um dos mais jovens palhaços.

Dona Rita é a única pastorinha da Folia de Reis em Santa Marta a carregar a bandeira dos Reis Magos, cargo de responsabilidade na jornada. Com a passagem do tempo, muitas mulheres da velha guarda morreram e não havia outras para desempenhar a função.

Dona Maura era uma das pastorinhas mais importantes no cortejo. Matriarca da família, hoje, ela não participa da folia por conta da doença de Alzheimer.

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A jornada de 2020/2021 foi particularmente dolorosa para a comunidade. O Mestre Riquinho, que aprendeu o reisado aos 10 anos com o pai, Mestre Diniz, morreu de covid-19.

No dia 25 de dezembro, Ronaldo, irmão de Riquinho, foi oficializado o novo Mestre e não segurou a emoção.

Quando morre um Mestre numa folia é como se ele carregasse consigo todo o conhecimento adquirido na oralidade. Não raro, muitas folias acabam. "Pensamos que a folia ia acabar. Ele era muito devoto, mas o que está escrito por Deus está escrito. Era nosso dever continuar", diz Junior, Mestre Palhaço e sobrinho de Riquinho.

Há 12 anos a fotógrafa Zô Guimarães documenta a Folia de Reis, testemunhando mudanças importantes no comportamento em torno da festa.

Aos poucos, o número de casas que participaram da jornada caiu vertiginosamente. Muitos integrantes da Folia de Reis se converteram à igreja evangélica e se afastaram do folguedo.

Este é Biel, um dos jovens palhaços, no cortejo de 2017. O rapaz deixou de festejar após a família se tornar evangélica.

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"O mais interessante dessas pessoas que viraram evangélicas e pararam de participar da festa é que, quando a Folia sai na favela, elas acompanham de longe. Eles querem participar, mas a igreja não permite", diz Zô Guimarães.

A morte dos Mestres e a crise econômica completam o trio de ameaça à festa — embora ela continue colorindo não apenas Santa Marta, mas outras comunidades vizinhas, como Cidade de Deus, Rocinha e Tavares Bastos.

"No meio de tantas adversidades que poderiam colocá-los pra baixo, parece que eles ressurgem mais forte. Acho que essa força é amor e devoção, não só religiosa. A devoção à folia é tão grande que eles não deixam a peteca cair", observa Guimarães.

Publicado em 9 de janeiro de 2022.

Fotos e reportagem: Zô Guimarães

Texto: Tiago Dias e Mateus Araújo

Edição: Luiza Sahd

Edição de Imagem: Lucas Lima