CIDADE FANTASMA

Quase dez anos depois da tripla tragédia, Fukushima deve decidir o que fazer com as toneladas de terra e água contaminadas pela radiação

Texto: Juliana Sayuri
Fotos: Rodrigo Sicuro


Colaboração para o TAB de
Okuma/Futaba, Fukushima (Japão)

Às 14:46 de 11 de março de 2011, um terremoto de magnitude 9,1 estremeceu a província de Fukushima, no Japão. Quase dez anos depois, o calendário num colégio de Okuma, uma das cidades atingidas, ainda marca março de 2011: os dias passaram, mas o tempo parou.

Lembrado como o "Grande Terremoto de Tohoku", com epicentro na costa de Sanriku, o abalo foi seguido por fortes tremores e provocou ondas de 10 metros de altura.

O tsunami alagou a Usina Nuclear de Fukushima Daiichi e desengatilhou explosões de hidrogênio, lançando substâncias radioativas no ar, na água e na terra. Três dos seis reatores derreteram. Foi o pior desastre nuclear desde Chernobyl, na Ucrânia, em 1986.

O desastre deixou mais de 18 mil mortos e desaparecidos no Japão. O país decretou um raio de 20 km em torno da usina nuclear como "zona proibida", evacuando cidades inteiras. As mais afetadas foram Futaba, Namie e Okuma. Hoje, esse raio é de 10 km.

Em 2017, algumas áreas foram liberadas para o retorno dos antigos residentes. Dos 88 mil moradores da região, apenas 10 mil decidiram voltar. Ainda hoje há "zonas vermelhas" cruzando Futaba e Okuma, delimitadas por cercas de losangos de metal, onde só é possível ficar por poucas horas. Inabitáveis, essas áreas continuam desertas dez anos depois. Fantasmas.

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Eram 14:41 de 16 de outubro de 2020 quando a reportagem de TAB entrou na zona vermelha de Fukushima pela primeira vez. Na data, a imprensa internacional estava em polvorosa, pois o governo japonês havia sinalizado a intenção de liberar um milhão de toneladas de água contaminada no mar.

O QUE É PRECISO FAZER

Antes
: solicitar acesso especial às autoridades.

Durante: ficar de olho nos medidores de radiação ou no medidor individual que se recomenda pendurar no pescoço, ou no equipamento que é acoplado a carros, como se fosse um GPS.

Depois: passar por uma área onde é medido o nível de radiação da terra incrustrada na sola dos sapatos.

Em Okuma, onde fica a usina, o marcador de repente salta de 0,22 µR/h (a quantidade de radiação absorvida por hora) para 269, 410, 575 e 609, ao passar pela estrada paralela às antigas instalações. É um índice alto.

Ao lado da antiga usina funcionava o asilo Sunlight Okuma & Futaba Hospital. Cerca de 100 idosos foram evacuados com segurança na manhã de 12 de março de 2011, mas 90 foram deixados para trás após a explosão do primeiro reator nuclear, pois não havia condições de transportá-los: eles só foram resgatados na madrugada de 16 de março.

Ao todo, 46 pacientes do hospital morreram na tentativa de evacuação e quatro pacientes foram encontrados mortos ali, um mês após o acidente.

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Máquinas de fax, macas, cadeiras de rodas, crocs, bengalas. Tudo ficou para trás. É como se os velhinhos tivessem saído para dar uma volta na área verde do asilo e perdido a hora para voltar. Carros ficaram abandonados no estacionamento, alguns com a chave na ignição. Um deles foi pichado com a palavra "terror".

Na escola primária perto do asilo, alunos e professores também foram evacuados às pressas. Ficaram para trás bicicletas, bonés, livros, lápis e mochilas. O que mais impressiona, porém, não é a imagem dos escombros. É o reflexo do tempo imobilizado por quase uma década: o relógio está parado às 15:38, onze minutos após o primeiro tsunami atingir a área.

Em 17 de outubro, a reportagem do TAB voltou a Fukushima e rodou a área a bordo de um Honda Fit a 90 km/h, dirigido por Shuzo Sasaki, diretor da Real Fukushima, iniciativa de revitalização do governo local.

Esta foi a primeira visita realizada pela iniciativa à província em 2020. A área deserta é cruzada por estradas quase que tomadas pelo mato, com vias que não aparecem no GPS ou no Google Maps. Levam de nenhum lugar a lugar nenhum.

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A poucos passos da orla ficava uma gigante incubadora de peixes, ao sul da usina. Dois funcionários se afogaram quando o tsunami arrebentou na costa. Segundo Sasaki, corpos de sete engenheiros foram encontrados perto dali, quinze dias depois do desastre.

O tsunami deixou marcas nas instalações, inchadas e despedaçadas como se feitas de isopor. Perto das tubulações que restaram, o medidor de radiação salta para a casa dos 200 µSv/h. A água foi toda contaminada.

"Tepco will last for 1000 years." A frase rabiscada se refere à operadora da usina nuclear, a Tokyo Electric Power Company.

Desde fins de 2019 se discute o destino das mais de 250 milhões de galões de água contaminada (mais de 1,1 milhão de toneladas), mantidas em tanques de aço no que restou da usina nuclear. Estima-se que, no verão de 2022, não haverá mais onde mais armazená-la. A melhor alternativa seria liberar cerca de um milhão de toneladas agora no oceano, onde a água contaminada se diluiria.

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A ideia foi criticada por pescadores, ambientalistas e ativistas. Coreia do Sul repudiou a diretriz diplomaticamente; Coreia do Norte a classificou como "um ato criminoso" que levaria a "uma calamidade nuclear".

O risco foi refutado pela Tepco. "Mesmo que sejam bebidos 2 litros por dia dessa água, a exposição anual é de cerca de 0,001 a 0,11 milisieverts, o que não é um nível que afete a saúde", declarou o porta-voz Ryounosuke Takanori.

Por ora, dada a reação, o assunto foi engavetado.

Ao longo da estrada há milhares de sacos-contêineres pretos numerados, contendo solo tóxico. Estima-se que existam 16 milhões de sacos em 105 mil pontos da província.

Trata-se de uma instalação temporária: o governo quer terminar de transportar toda a terra até 2022, deixá-la por lá até 2045 e depois retirá-la — não se sabe o destino dela depois.

Até 30 de setembro de 2020, 54% de toda a terra contaminada havia sido armazenada.

Sob a chuva fina de outono, escavadeiras lentamente moviam contêineres de cá para lá. Caminhões e mais caminhões cruzaram o caminho, trazendo mais sacos pretos. A atmosfera é fúnebre.

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O silêncio domina Okuma. Além dos trabalhadores da terra e dos fiscais do governo, não há viv'alma nas vias. "Konbinis", as típicas lojas japonesas de conveniência, foram abandonadas: algumas foram alvo de saques, como em filmes de zumbis.

Aranhas construíram teias imensas por todos os cantos. Além delas, o único animal encontrado foi um louva-a-deus dentro do antigo asilo, que Sasaki gentilmente pegou com as mãos e liberou no asfalto tomado pelo mato.

Um antigo bairro residencial se insinua entre jardins e garagens abertas a poucos quilômetros dali — uma Mercedes-Benz ficou para trás. Dos mais elegantes endereços aos mais simples, porém, o tempo pesou para todos: portões enferrujaram, o lodo impregnou, a cor desbotou.

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Esta parte de Okuma ainda é proibida. Muitas áreas já liberadas para retorno dos antigos residentes, entretanto, continuam desertas.

"Até hoje o que mais me impressiona são os vestígios das demolições por onde passamos, os destroços", diz Sasaki.

Trabalhando para reconstruir a província, o diretor conta que, na verdade, gostaria de preservar lugares como a antiga incubadora, o asilo e o colégio como marcos de memória, não derrubá-los.

"Sei que é necessário deixar o passado para trás para tentar construir um futuro, mas é triste."

Publicado em 9 de novembro de 2020.

Texto: Juliana Sayuri
Fotos: Rodrigo Sicuro
Edição: Olívia Fraga
Direção de arte: René Cardillo