LOIRO PIVETE

Criminalizada desde o nome, estética platinada faz a cabeça dos jovens e se consolida na zona sul do Rio

Comum nas favelas do Rio desde os anos 1990, o cabelo descolorido dá as caras nos bairros chiques do Rio de Janeiro. Das lajes para os salões, mudam preço e técnica. A leitura social do dono dos fios também varia, dependendo de onde ele mora e de sua cor: os da zona sul são descolados; os do morro são pivetes. Andar de cabelo pintado nas comunidades é enfrentar o preconceito e a associação com a criminalidade.

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O calor esquenta a procura pela pintura, diz o colorista Caio Costa, do salão Fil Hair & Experience, em Ipanema. "Quanto mais a gente se aproxima do verão, mais o cabelo descolorido vem com tudo. Sou adepto e gosto ainda mais quando minha raiz vai ficando escura", conta. Os clientes, diz, são "uma galera descolada", com idades entre 24 e 35 anos. E estão dispostos a pagar caro: o tapa no visual custa de R$ 800 a R$ 1.200. A diferença para as lajes, explica Costa, é a preservação da saúde dos fios para evitar que a descoloração detone o cabelo.

Para o morador de Copacabana Matheus Yoshida, 26, a descoloração é um jeito de expressar identidade. "Tem a ver com liberdade de expressão", afirma o jovem, criado em Votuporanga, no interior de São Paulo.

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Assistente de estilo da marca de roupas Farm, Yoshida diz que o cabelo diferente conversa com seu trabalho. "No meu meio profissional, cabelos ou mesmo roupas extrovertidas estão longe de ser um problema. Pelo contrário, trazem mais personalidade e, de certa forma, para minha imagem profissional", diz o cliente do salão Fil.

Cerca de 6 km distante do salão badalado, Leonardo Carvalho, morador da Rocinha, conta que gosta desde pequeno de platinar os cabelos. Com 7 anos já era louco para pintar, mas sua mãe não deixava. "Ela tinha medo que alguém achasse que eu era pivete. Quando fiz 10 anos, meu irmão mais velho estava pintando e eu passei a mão e coloquei no meu. Ficou ridículo, laranja. Minha mãe me comeu no esporro, mas acabou deixando", conta o instrutor de altinha de 28 anos.

A chiadeira da mãe de Leonardo não foi a única vez que o cabelo o colocaria em situação hostil. "Já levei tanta dura da polícia que até perdi a conta. E acontece muito mais quando estou de cabelo pintado. Com cabelo preto, passo por playboy."

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É sua esposa, Michelle Veríssimo, 27, que cuida do visual. E o hábito é de família: ela descolore suas mechas e os cabelos das duas filhas, em um ritual com menos sofisticação que os dos salões de beleza. Por um custo menor também: R$ 30 para todo mundo.

"Trabalhei como garçom em casas da zona sul, e não deixavam pintar de jeito nenhum. Encontrei um bar que deixava, no Leblon, onde iam pessoas influentes. Percebia que um cliente ou outro me olhava de forma estranha, e eu gostava do choque. Me olhavam como favelado, mas viam que eu sabia me comportar e se surpreendiam."

Leonardo já perdeu até emprego por causa dos fios platinados. Após dois dias de teste em um restaurante do Jardim Botânico, na Zona Sul da cidade, ele garantiu a vaga, mas com a condição de escurecer o cabelo. "Disseram que era política da empresa. Eu questionei por uma funcionária ter pintado o cabelo de loiro, e responderam que era totalmente diferente", conta. Ele agradeceu e rejeitou a vaga.

"Cara***...", disse Roberto Carvalho, vigilante de 57 anos, ao ver os cabelos loiros do filho de 21, Pablo Carvalho, estudante de História. "Quis descolorir o cabelo no Carnaval com a galera, mas sempre resisti muito por causa dessa instrução do meu pai. Para usar coisas mais inventivas com o meu cabelo, foi um processo", conta o jovem. O pai, porém, se preocupa. "Meus filhos são do bem, meninos de família. O problema é da porta para fora."

A responsável pela mudança de visual de Pablo é a irmã, Pâmela Carvalho, historiadora de 27 anos, moradora de Parque União, favela do complexo da Maré. Autora de um mestrado sobre interlocutores de cultura popular e a reeducação das relações raciais, ela viu a moda surgir nos anos 90 e se transformar, enquanto crescia na favela. Ela não crava o lugar de nascimento do loiro pivete: brinca que, ironicamente, pode ter surgido em São Paulo.

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"Tem muito a ver com a estética do pagode, do Belo, do Chrigor [ex-Exaltasamba], do Rodriguinho. Os jovens de favela consumiam esse ritmo e compartilhavam o estilo. Depois ficou muito forte com a Furacão 2000, com os bondes de funk. Jogadores de futebol também influenciaram", opina ela.

Até hoje, os ídolos fazem a cabeça dos jovens. Em jogo da Liga dos Campeões do fim de novembro, Neymar entrou em campo totalmente platinado. Logo pipocaram comentários no Twitter.

"Adulto Ney já lançou o loiro pivete de fim de ano, logo menos sou eu"

"Ney já lançou o loiro pivete, acho que tá na hora"

"Se o Neymar lançou o loiro pivete pro final do ano, quem sou eu pra não mandar, né?"

Pâmela explica que o apelido dado ao visual (loiro pivete) tem a ver com a preocupação do pai. "O cunho preconceituoso já vem do nome, associando o platinado ao jovem em situação de conflito com a lei", diz.

Ainda que a moda tenha descido o morro, a historiadora conta que usar cabelo descolorido tem pesos diferentes sobre pessoas de cores e origens geográficas distintas. Ideal mesmo, diz, seria a elite que usa a estética ajudar a quebrar o estigma quando os fios loiros estão na cabeça da população negra e favelada.

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"Existe toda uma preocupação quando os jovens negros e de favela usam esse cabelo. Vários já descolorem com uma tinta escura, porque se houver racismo ou problemas em ambiente de trabalho, pintam de volta. A questão não é uma pessoa branca ou da Zona Sul usar. É saber que a estética vai ser vista e tratada de forma diferente se estiver em corpos negros. Esse é o calo. As pessoas usam como se fosse igual para todos, mas não é", diz ela.

Não é mesmo. Para moradores de áreas de milícia, cabelo tem data certa para ser pintado: festas de fim de ano e Carnaval. No resto do tempo, cabelo tem que ser escuro. Em janeiro de 2020, um vídeo flagrou homens jogando spray preto no cabelo de jovens platinados numa comunidade da Zona Oeste do Rio. "Acabou o Ano Novo! É cabelinho ou bala", ameaçava um deles.

Conhecido pela clientela cool, o Salão Azul fica em Botafogo, único bairro brasileiro listado entre os mais descolados do mundo da revista TimeOut. Por lá, o estilo platinado também ganhou adeptos, diz o cabeleireiro Rafael Fernandez. "Há uns 4 anos, quase ninguém fazia esse descolorido global, mas a estética da favela permeia o Rio de Janeiro. Entre os novinhos do salão, muitos procuram e são mais exigentes com o descolorido. Querem bem claro. Esse público, um pouco mais hipster, toma coragem extra para fazer antes do Carnaval", conta. O procedimento sai por R$ 350.

Para o cabeleireiro, seus clientes querem o mesmo que moradores de comunidade: um visual cool. A diferença básica, diz, é a forma como essas pessoas são percebidas: umas têm estilo, outras têm estigma.

Foi justamente o Carnaval que explicitou o preconceito. Em 2020, a Mangueira entrou na avenida com o samba-enredo "A verdade vos fará livre", sobre um Jesus nascido no Rio de Janeiro, nos dias de hoje. Um dos carros alegóricos trazia a escultura de um menino negro tatuado e de cabelo descolorido, mas crucificado e cravejado de balas.

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À época, o deputado Daniel Silveira (PSL) comentou em sua conta no Twitter: "É o Carnaval lacrador da Estação Primeira de Mangueira, onde não basta homenagear bandido. Tem que colocá-lo no lugar de Jesus Cristo". Nada na imagem indicava que se tratava de um criminoso. Ele era uma denúncia à violência policial contra inocentes. Procurado por TAB para comentar o assunto, o deputado não se manifestou.

Dias antes do Carnaval de 2020, o MAR (Museu de Arte do Rio) viveu uma tarde atípica. Criado na Rocinha, o artista Maxwell Alexandre levou para lá um hábito da comunidade: descolorir os cabelos antes de cair na folia. Chamada de "Descoloração Global Pré Carnaval", a cena tinha até piscina de plástico para afastar o calor de verão.

"Essa era uma oportunidade de lotar o museu de preto e favelado e levar comportamento de periferia para um lugar sagrado de afirmação de narrativas, de contemplação estética, de manutenção da história", diz Alexandre, que, à época, expunha no MAR a obra "Pardo é Papel", que retrata pessoas negras com cabelo descolorido.

Maxwell Alexandre, como outros entrevistados, enfrentou a preocupação da mãe. Ela não queria que o filho pintasse o cabelo para não ser visto como bandido. "Sempre quis pintar, mas minha mãe falava que era coisa de vagabundo, que era perigoso e nunca me deixou fazer. Em 2013, eu estava vivendo um momento de êxtase de autoestima. Estava ficando com a garota a quem eu amava, um evento inédito na minha vida. Então, como era maior de idade, já não estava sob as rédeas da minha mãe, descolori pela primeira vez", conta ele.

"Minha mãe odiou, e eu tentei compensar essa estética mal vista exalando confiança por onde eu posava, sem procurar aprovação ou desaprovação. Sempre tive estilo e marra também. Isso ajudou a ir adiante, sem me importar tanto com os olhares", diz o artista plástico.

"Preto loiro para mim é sinônimo de poder, uma vez que existe o estigma em relação ao cabelo descolorido em pessoas de pele preta. Escolher ser loiro, quando se é preto, é enfrentar esses estereótipos. Ou seja: é uma afirmação de liberdade contra o juízo do corpo preto. A gente tem que ser o que a gente quer ser. Afirmar isso esteticamente é um exercício de liberdade e poder."

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Publicado em 8 de dezembro de 2020.

Edição: Olívia Fraga e Helton Simões Gomes

Reportagem: Elisa Soupin

Edição de Imagem: Lucas Lima

Fotos: Lucas Landau

Direção de Arte: René Cardillo