O DIA QUE NÃO ACABOU

Fotógrafo volta a Petrópolis (RJ) 12 meses após a tragédia que matou mais de 240 pessoas


Lucas Landau
Colaboração para o TAB, em Petrópolis (RJ)

"Sobrevivente" virou uma espécie de sobrenome dos que vivem nas favelas do bairro Alto da Serra, em Petrópolis (RJ), região mais atingida no temporal de 15 de fevereiro de 2022. Nas 3h de chuva daquela noite, caíram 250 mm de água.

Segundo os registros oficiais, 241 pessoas morreram nos deslizamentos. Quem vive busca justiça e reparação. Como fotógrafo que registrou a tragédia aqui no UOL, acompanho essa história há um ano. Os moradores repetem que o centro da cidade foi recuperado primeiro. Nos barrancos das comunidades, a diferença do ano passado para agora é o mato que cresceu em cima da lama. O verde faz parecer que houve recuperação. Não há.

Ele representa o descaso pelo qual vêm passando familiares que há um ano deixaram de ser a Cris e o Marcelo para serem "a Cris que perdeu nove parentes", e o Marcelo, que enterrou a esposa.

Perto da igreja de Santo Antônio, no Alto da Serra, encontro dois homens conversando e olhando o morro. Eles autorizam a gravação da conversa, mas pedem para serem identificados apenas com a inicial do nome.

L. (à esq.)

"Tenho 47 anos nesse morro, moro no mesmo lugar onde nasci e fui criado. Não estava em casa no dia porque Deus me livrou. Muitos amigos morreram, muitas pessoas boas foram enterradas. Quando [chove] e dá aquele estrondo, aquele relâmpago, parece que tá descendo tudo de novo. Tenho que ir para a casa dos outros pra conseguir dormir quando chove."

R. (à dir.)

"As pessoas sobrevivem desse terreno que desbarrancou [foto]. Pegam cobre, ferro, panela, alumínio, madeira, e aí vendem para ferro-velho. Em todo lugar tá acontecendo isso. Você não acha nem uma latinha pela rua."

Jucimar Costa, 53, motorista de aplicativo, sugeriu um encontro na porta da igreja Santo Antônio. No dia da calamidade, estava no Espírito Santo e veio de madrugada socorrer a família. Seus filhos correram do desmoronamento. A cunhada, que morava na casa de baixo, morreu. Ele ajudou o irmão, Marcelo, a procurar o corpo de Simone por quatro dias.

"Estamos em uma casa lá em Cordovil [na zona norte do Rio], conseguimos o aluguel social. Como muitos, saímos de Petrópolis. Um dia isso vai desmanchar. Petrópolis é uma roleta russa, tudo pode cair. Estão querendo fazer Carnaval, mas o povo tá precisando é de ajuda."

PUBLICIDADE

A clínica veterinária de Guilherme Mayorga, 34, fica perto do Morro da Oficina, no Alto da Serra, e se tornou um ponto de apoio durante a tragédia. Ele e sua equipe resgataram 635 animais, entre cachorros, gatos, roedores e aves. Dois viraram mascotes. A gatinha Vitória ficou nove dias soterrada e chegou tão debilitada que fez de tutor quem a resgatou. River, de 8 anos, foi resgatado dentro de um rio. Mayorga chegou a morar duas semanas ali para dar conta dos resgates.

"Apesar da destruição ao redor, a estrutura da clínica ficou intacta, quebrou apenas um telhado. Falei para meus colegas de trabalho: 'se estamos aqui e nada aconteceu, a gente tem um propósito'. Fomos ao Morro da Oficina na noite do dia 15, mesmo. Resgatamos uma menina de 11 anos quando chegamos, e achamos os animais no pé do morro. Eles desceram junto com a barreira."

O fiscal de ônibus Marcelo Costa, 50, perdeu a esposa, Simone Raesk, e a casa em que moravam, no alto do Morro da Oficina. Ele estava trabalhando quando a barreira desabou atrás de sua casa. Sem ajuda do governo e contando apenas com amigos, familiares e voluntários, buscou o corpo da mulher por quatro dias. Cães farejadores ajudaram a encontrá-lo. Marcelo e Simone foram casados por 30 anos.

Ele perguntou se podíamos nos encontrar no pé do Morro da Oficina para subirmos juntos. Caminhamos com dificuldade, entre o entulho e o mato, até o lugar onde ele vivia, onde ainda é possível ver as estruturas.

"Minha esposa chegou identificada ao IML, mas eu ia enterrar outra pessoa. O cara da funerária é que me fez perceber o erro. Ele falou que ia colocar um papel no vidro do caixão porque a imagem era forte. Ela estava muito machucada na boca, onde tinha 'arame'. 'Arame?', perguntei. Minha mulher não usava aparelho. Depois vieram falar que tinham trocado o corpo. Quando a trouxeram para o enterro, abriram o caixão, cortaram o plástico e eu vi para me certificar. Era ela."

Costa foi morar no Espírito Santo com o pai e chegou a ser internado com diagnóstico de depressão. Voltou a Petrópolis e pediu para voltar ao trabalho. "Minha dor é quando entro em casa. A gente não tinha filhos, então eu estava sempre com ela. Hoje não encontro ninguém, só silêncio."

Leandro Rocha, 49, perdeu o filho Gabriel, de 17 anos, durante um episódio que teve ampla repercussão. O estudante estava em um ônibus que foi arrastado e ficou debaixo d'água. Gabriel não sabia nadar e foi levado pela correnteza: segurou numa escada dentro do coletivo para ajudar outros passageiros a sair. Seu corpo foi encontrado sete dias após o temporal, a 200 metros de onde o ônibus estava.

PUBLICIDADE

Enquanto conversava com Leandro em sua casa alugada, no alto de uma ladeira do bairro Quitandinha, raios e trovões anunciavam a chuva.

"Por viver numa área rodeada de montanhas, a gente sabe que tem deslizamento. Mas temos de ser resilientes. Se é aqui que a gente vive, é aqui que nós temos de saber lidar com a natureza. Tem como trabalhar na prevenção. Por isso que colei esses adesivos no carro. Nunca vou deixar cair no esquecimento o que aconteceu com o Gabriel. Toda vez que chove, o sentimento que me dá é de sair, como se fosse voltar às buscas e tivesse de ajudar. Me sinto mal de ficar parado."

O eletricista Juliano Nascimento, 30, é morador da Vila Felipe, outra comunidade onde houve deslizamentos no Alto da Serra. Desceu correndo de casa com seus parentes e, passando por cima da lama, escapou sem ferimentos. Durante a descida, sem saber para onde ir, escorou-se em um muro e rezou para sair vivo.

A casa da família Nascimento ficou na "fatia" da Vila Felipe que não caiu, mas Nascimento perdeu a tia, uma prima, o marido da prima e muitos amigos de infância.

"Todo petropolitano que viveu a tragédia tem a mesma percepção. Parece que o dia não acabou. Naquele mesmo ano, em 20 de março, teve outra chuva fortíssima, voltou a cair barreira na Vila Felipe e a morrer gente na cidade."

Juliano Nascimento atualmente mora mais para cima, com auxílio de um aluguel social. "Nada foi mexido no lugar. Mais ou menos uma semana atrás [fim de janeiro], o prefeito anunciou que daria início às obras e aí começaram a colocar esses tapumes. A gente sabe que é uma cidade histórica visitada, o centro já foi recuperado, o Museu Imperial tá funcionando. Nos bairros, a demora é bem maior."

PUBLICIDADE

Representados pela balconista Cristiane Gross, 49, que perdeu nove parentes no Morro da Oficina, o grupo SOS Frei Leão se encontra com frequência no pé da comunidade. Frei Leão é o nome do acesso ao topo do morro por onde desceu a barreira do Morro da Oficina.

Oito familiares me receberam para conversar sobre o último ano. Agarrados à fé — em muitos momentos, foi o que lhes restou —, cerca de 80 parentes de vítimas lutam por justiça. Há promessas não cumpridas desde 2011, quando 918 pessoas morreram na região serrana do Rio por causa das chuvas.

O grupo pede a limpeza dos locais atingidos, garantia da manutenção dos aluguéis sociais, obras de contenção nas áreas de risco, assistência de saúde mental às famílias que sofreram as piores perdas.

O estampador Alexandro Condé, 43, afirma que a prefeitura apresentou há pouco tempo um esboço de projeto, "porque vai fazer um ano da tragédia e eles sabem que vai vir equipe de reportagem".

Ao TAB, a Prefeitura afirma que realizou "129 obras de grande e médio porte" na cidade ao longo desses 12 meses, e que agora, em 2023, é que vai priorizar as obras de grande porte em Alto da Serra e Vila Felipe.

"Na época montamos um centro de apoio no morro e atendemos Defesa Civil, bombeiros, Exército, Bope. Os cães farejadores de Brumadinho tomavam banho no box dela [aponta para Márcia, pastora e moradora da região]. O que recebemos, na semana da tragédia, foi um desfile cívico, a remoção de 93 corpos e um palanque para produzir imagens para as eleições. Foi isso. Eu não culpo ninguém pela catástrofe. Culpo pelo descaso e pelo abandono."

Fale com o TAB

tabuol@uol.com.br

Publicado em 15 de fevereiro de 2023.

Fotos e Reportagem Lucas Landau | Edição Olívia Fraga | Montagem Lucas Lima