OPERÁRIOS DA MORTE

No Rio, um exército silencioso lida com traumas pessoais e vidas perdidas para uma doença para a qual já existe vacina

Elisa Soupin (texto) e Lucas Landau (fotos e vídeos)
Colaboração para o TAB, do Rio

O estado do Rio de Janeiro acumula mais de 50 mil mortes por covid-19 desde o início da pandemia. Só fica atrás de São Paulo, que tem população quase 3 vezes maior.

Para cada vida que se vai, outras tantas se organizam para a hora da partida. Uma orquestra quase muda é encarregada de remover o corpo do hospital, levá-lo ao cemitério, preparar o lugar onde a pessoa e toda sua história particular serão enterradas, produzir o caixão que guardará a matéria física, apoiar a família, ornamentar o momento de despedida.

Todos esses trabalhadores estão cansados. São quase 15 meses de fluxo intenso de sepultamentos, traslados e enterros. O trabalho aumentou, sem que isso represente mais renda. Conheça quatro histórias de vida diretamente impactadas pelas milhares de mortes acumuladas no estado.

FLORES AOS MORTOS

Isaac Conceição, 22, é um cara calado e ágil com as mãos. Não para de trabalhar enquanto conversa. Diz ter-se apaixonado pelo ofício de florista, acompanhando um tio que trabalhava com arranjos e coroas.

Ele começou a trabalhar na floricultura Flamour no início de 2020. A loja fica ao lado do cemitério municipal de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Autodidata, gosta de traduzir sua criatividade em coroas de flores. Nos últimos meses, viu a demanda disparar.

Deixo sempre prontas as coroas, e uso flores de várias cores, porque nunca sei para quem vão"

O jovem calcula que, antes da covid-19, eram feitas de 10 a 15 coroas por dia; agora, são mais de 40. Os números parecem não assustar seus colegas de trabalho, que permanecem de rosto à mostra durante a entrevista.

Isaac tem tirado um pouco mais de dinheiro nesses tempos, pois ganha porcentagem em cima de cada item vendido.

No dia em que o TAB esteve no local, havia prateleiras vazias: tinha acabado tudo. Outros comerciantes do setor não sentem o mesmo ganho financeiro, ao contrário. "Pensa só: não tem festa, não tem casamento, aniversário de 15 anos, bodas de ouro, nada. Aumentou a venda de coroa, mas não compensa pelo resto, entende?", explicou o gerente de uma grande cadeia de floriculturas que não quis se identificar.

Por volta das 14h, Isaac é acionado para levar flores para mais uma vítima da pandemia. Sobe o cemitério rumo à área reservada aos enterros de covid-19 e entrega o trabalho que simboliza o carinho dos vivos por alguém que se foi.

ÚLTIMA MORADA

Patrícia Agostinho, 41, herdou uma fábrica de caixões de seu pai. Trabalham ali sua mãe e seus dois irmãos. Simpática, mas extremamente discreta, ela reage meio desconfiada às coisas, e tem motivo para isso: nos anos 1990, seu pai foi sequestrado e morto por ser dono da fábrica. O negócio, que existe há 45 anos, é responsável por boa parte do abastecimento de caixões do estado do Rio de Janeiro.

Antes de ser mãe, até 2006, eu costumava ir a cemitérios aos fins de semana e olhar capela por capela para ver quantos dos caixões eram produzidos por nós. Era sempre a imensa maioria. Parece doido, mas era assim que eu fazia pesquisa de mercado."

O tempo todo, carros de diferentes funerárias chegam à porta do local para transportar caixões. Há modelos simples — só madeira e alça — e mais elaborados, com detalhes talhados na madeira, desenhos, alças douradas ou de ferro. Não é possível chegar lá e escolher um modelo. Todos são revendidos por funerárias. Na fábrica, ninguém fala de preço. O valor unitário de cada peça é mantido em segredo.

Mesmo no outono, o interior da fábrica é quente, o barulho é alto e todos os colaboradores, sem exceção, usam máscara. Em 2020, Patrícia contratou 18 funcionários para dar conta da demanda, consequência direta da pandemia, segundo ela. É de se esperar que a família esteja em um momento de grande prosperidade financeira, mas Patrícia afirma que não.

A matéria-prima aumentou muito. A madeira aumentou, o MDF aumentou, o ferro aumentou, o papelão está super difícil de achar e o quadro de funcionários também cresceu. Houve um aumento de custo considerável."

Patrícia encara o ordenado do luto com a naturalidade que seu ofício pede. "Tem gente que pode achar esse trabalho mórbido, mas penso que é o último lugar em que alguém que amamos vai estar. Lembro com detalhes do caixão em que meu pai foi enterrado, e acredito que a urna pode trazer algum tipo de acolhimento para a família que vai deixar quem ama ali."

TERRA REVOLVIDA

Ubirajara Santos, 58, começa o dia abrindo covas rasas no cemitério de Inhaúma, na zona norte da capital. Há 20 anos, ele trabalha como coveiro. Mora em Campo Grande, na zona oeste, e demora pelo menos 1h40 para chegar até lá, usando transporte público. A necrópole emprega 30 coveiros, contando ele, e mais da metade chega bem cedo.

Os túmulos recém-cavados batem mais ou menos na cintura de Santos, e são destinados a pessoas que não têm jazigo. Cerca de 3 anos após um enterro, o corpo já está decomposto e restam ali ossos e pedaços de tecido do caixão ou da roupa com que alguém foi enterrado. Ubirajara cava e faz a retirada dessa matéria. O lugar, então, é preparado para outro enterro. O corpo que estava ali, agora exumado, é entregue à família.

A empresa Rio Pax, segundo ele, está mais rigorosa com as exigências de uso do EPI (Equipamento de Proteção Individual), que inclui, além da máscara, capacete, macacão branco, luvas, botas e óculos transparentes. Apesar da afirmativa, no dia em que a reportagem de TAB esteve no cemitério, apenas Ubirajara, previamente designado para conversar com a equipe, trajava todo o equipamento recomendado. Seus colegas vestiam uniformes normais e máscara.

O corpo cansado, mas não sinto nada, não. Estou há 20 anos trabalhando com isso, já me acostumei. Para falar a verdade, virou rotina. A gente tem que respeitar o sentimento das pessoas, claro, mas não chega a abalar, seja covid, não seja covid. Aumentou uns 30%, 40%, o número de enterros."

A CASA DO LUTO

Casado e pai de três filhos, João Batista Júnior é um tipo bom de papo e acolhedor, personalidade importante em sua função como agente funerário. Faz isso há 6 anos e hoje, aos 41, é gerente de uma grande agência, com atuação em toda a capital e na Baixada Fluminense. É função de João Batista providenciar a remoção de corpos do hospital, o preparo para o enterro e amparo integral à família.

O agente conforta, segura a mão dos familiares. Com a pandemia, como pegar na pessoa, como não pegar? Coloco a mão, não coloco? Como remover? Quais são os procedimentos? É ainda mais difícil ter de confortar alguém enquanto você está preocupado em se contaminar e levar uma doença assim para dentro de casa."

Quando um paciente morre de covid-19, o agente funerário entra em contato com o cemitério e evita-se passar o corpo pelo necrotério; o reconhecimento é feito no hospital, com o corpo lacrado em um saco com vedação, e o caixão em que ele sai para remoção é o definitivo, levado diretamente ao enterro.

O aumento significativo no volume de trabalho — ele estima que cerca de um terço dos casos que atende sejam de covid-19 — não significou mais dinheiro, nem alívio nas contas no final do mês, justamente pelas limitações impostas pela doença.

O sepultamento é muito rápido. Não se vende ornamentação para o velório, nem preparação do corpo; não há banda de música, violinista. Se a família quer o Luan Santana no enterro, a gente vai atrás de conseguir. Mas entre os mortos pela covid-19, esses custos não existem."

Junior calcula ter dado assistência a mais de duas mil famílias ao longo do último ano, mas, acostumado a acalentar o luto alheio, quando conversou com TAB, sentia a dor em primeira pessoa: no dia anterior, havia enterrado um primo muito próximo, que, aos 43 anos, não resistiu à doença.

Vi famílias que choravam, gritavam, socavam a parede. Agora sei como dói não poder se despedir, não poder ver alguém que você ama, não dar um beijo. Quando foi comigo, queria abrir o caixão. Senti na pele, troquei de lado. Esqueci tudo que falei para tantas pessoas."

Todos falam de médicos, enfermeiros - e têm de falar mesmo - mas imagina se todos os agentes funerários tivessem ficado em casa, com medo? Como ficariam os hospitais? Os necrotérios? Estamos numa guerra, todos nós."

Elisa Soupin dedica esta reportagem à sua mãe, Evanda Bezerra de Souza Pinto, uma das mais de 460 mil vítimas da covid-19 no Brasil.

Publicado em 1º de junho de 2021.

Edição de texto: Olívia Fraga

Edição de fotos: Lucas Lima

Direção de Arte: René Cardillo e Gisele Pungan

Design: Juliana Caro

Edição de vídeo: Carla Borges