SEM FANTASIA

Como tem vivido quem respira Carnaval o ano inteiro

Elisa Soupin e Lucas Landau, colaboração para o TAB, do Rio de Janeiro

Para muitos, quatro dias de sorrisos e alegria. Para outros tantos, renda, trabalho e paixão. O Carnaval que não aconteceu em 2021 impactou as finanças de trabalhadores que, de forma direta ou indireta, vivem da festa no Rio de Janeiro, a maior do país. Afetou a cabeça, mexeu com as perspectivas, colocou a vida em stand-by.

Retratadas em cenários atipicamente vazios, em época de Rei Momo, estas são algumas das histórias de quem precisou dar um jeito na vida, enquanto segue aguardando o próximo carnaval chegar.

O SONHADOR

Uma merda do cacete. Um ano de andar na corda bamba. Sem meias palavras, é assim que Leandro Vieira, 37, carnavalesco da Mangueira e do Império Serrano, define seu 2020. O primeiro caso de covid-19 foi confirmado na cidade em 5 de março, cinco dias depois de o Carnaval de Leandro ter levado a Mangueira ao desfile das campeãs.

No começo da pandemia, ele conta ter estado cético quanto à realização dos desfiles. Logo depois, veio um aumento no número de casos, o comportamento irresponsável da população e as coisas ficaram fora de controle. "Seria uma loucura realizar qualquer tipo de aglomeração, que é o que caracteriza o Carnaval: juntar gente", diz ele, que não levava muita fé de que a festa acontecesse em julho de 2021, mas continuou produzindo.

Vieira, que mora na Vila da Penha, tem a missão de conceber toda a ideia de um desfile. Apesar de ter seguido trabalhando, passou 10 meses sem receber da Mangueira. "Vivi das minhas economias até acabarem, depois dei aulas virtuais, e agora, com a lei Aldir Blanc, recebi um convite para a produção de lives. Mas esses projetos paralelos são um conta-gotas para as contas", diz ele, que em 5 anos, coleciona três títulos, dois pela Mangueira, no grupo especial, e um pela Imperatriz Leopoldinense, no grupo de acesso.

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O único assunto que Leandro veta é a possibilidade de não haver Carnaval em 2022. Nem quer pensar.

Não, nem me pergunta isso, sério. Acho que o próximo Carnaval vai ser o melhor da história do Rio de Janeiro, de extravasar mesmo. Os artistas da avenida vão estar com ímpeto contido, pronto para explodir. Os foliões e os blocos também vão para as ruas com energia acumulada."

O EMBELEZADOR

Maximiliano Sales, 38, começou a trabalhar com Carnaval ainda menino, forrando os "queijos" (onde destaques desfilam) e o piso dos carros alegóricos. Ele é aderecista e seu ofício é tirar as ideias do papel, transformando-a em realidade para o desfile. Sua mulher, Erika Sousa, 34, trabalha com ele há 17 anos. Max, como é conhecido, já passou por Portela, Unidos da Tijuca, Mocidade Independente de Padre Miguel, Caprichosos de Pilares e há 7 anos está no Salgueiro.

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Depois do Carnaval, o ano de 2020 foi só incerteza, passou para tristeza e chegou ao desespero: sem a festa, não há renda e a vida da família de Max, que tem dois filhos, anda muito mais modesta.

O projeto começa a partir de outubro. Quem é do Carnaval programa a vida financeira com esse script. "Fiquei sem saber o que fazer, as dívidas fizeram meu cabelo cair. A família estava acostumada a comer melhor. Agora, por exemplo, não tem carne, vamos de ovo", diz ele, que, no pequeno ateliê que tem em casa, em Duque de Caxias, tem confeccionado fantasias para casas de festas infantis e empresas como forma de segurar as contas.

É como se eu tivesse perdido um ente querido. Dói. Outro final de semana, eu e minha esposa ficamos em casa e passamos a noite toda cantando samba. Parece que o corpo sente o Carnaval, mesmo que não tenha festa. O dinheiro é importante? Claro, mas é uma paixão, um amor que a gente não consegue ficar sem."

A EDUCADORA

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Rainha de bateria não é cargo, é posto. Cobiçada por celebridades e disputada pelo status, a posição não rende salário: traz visibilidade para outras ofertas, de contratos de publicidade a aulas de samba. "Em um ano normal, de setembro até o Carnaval, eu só trabalho", diz Evelyn Bastos, 27, à frente da bateria da Mangueira desde 2014.

Ela é cria da comunidade e sua vida — pessoal e financeira — é muito atrelada à festa. Mais de 60% da sua renda anual vem do Carnaval. Em 2020, a grana despencou. "É estranho estar assim. Tive que aprender a desacelerar", conta ela, que costuma ser muito procurada por marcas nessa época. As aulas de samba que ministra online ajudam a segurar o orçamento.

Formada em Educação Física e cursando história, a rainha passou 2020 envolvida em projetos sociais. "Sementes de Rainhas", com 45 meninas da comunidade, oferece aulas de samba e de vários saberes afroculturais. Está tudo parado desde março. "Muitas famílias ficaram necessitadas e a gente firmou uma parceria com a associação de moradores para amparar o maior número de pessoas possível", diz.

O corpo de Evelyn sentiu a distância da Sapucaí. Ela, que ama exercício físico, conta que a dificuldade é a alimentação. Como passa mais tempo em casa, perdeu massa muscular e peso — 11 quilos no total. Evelyn está insegura quanto ao novo corpo, seu instrumento de trabalho. "Sei que tenho um corpo padrão, mas, dentro da realidade do Carnaval, um pernão e um bundão são mais valorizados. Não sei como vai ser quando eu retornar às quadras." Depois de meses, vestiu uma roupa de rainha para as fotos desta reportagem, feitas na porta da quadra da Mangueira, que está fechada para reformas.

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O INSONE

"Imagina passar 34 anos fazendo a mesma coisa e de repente não ter aquilo. É muito difícil", diz Moacyr da Silva Pinto, o Mestre Ciça, que, aos 64 anos, já comandou as baterias da Estácio de Sá, Unidos da Tijuca, Grande Rio, União da Ilha e tinha acabado de ganhar o carnaval de 2020 à frente da Viradouro quando a covid-19 chegou ao Brasil. "Veio aquela expectativa de festejar e, uma semana depois, veio a pandemia. Bateu em mim uma coisa de não querer aceitar", conta.

Mestre Ciça relutou, mas não deu para negar a realidade. Não tem vergonha em admitir que chora, em certos dias, pensando que não vai ter carnaval em 2021. Passa a madrugada acordado, olhando pela janela. "Sou apaixonado por samba, pelo que faço, sinto saudade das pessoas", diz ele. O dinheiro, claro, virou questão. Tinha propostas para viajar pelo exterior. Continuou recebendo metade do salário e segue vivendo.

Além da saudade da festa que ama, mestre Ciça também sofreu com a dor da perda. Muitos amigos e vizinhos faleceram de covid-19, além de seu irmão mais velho, que também se foi. Ele não vê a hora de tomar a vacina. "Acho que em 2022, se todo mundo estiver vacinado, veremos o maior Carnaval da história, com quadras lotadas. E eu quero estar vivo."

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A EQUILIBRISTA

Longe do sambódromo, uma festa paralela toma as ruas do Rio de Janeiro no pré, durante e no pós-Carnaval. A atriz Iasmin Patacho, 24, é figurinha carimbada nos blocos e pode ser vista à distância, em cima de suas pernas de pau, entre a multidão colorida e purpurinada. Começou há três anos e aprendeu muito rápido. No ano seguinte, já estava dando aula. O Carnaval é o momento em que mais ganha dinheiro: é chamada para muitos eventos e festas como pernalta. Costuma fazer em média R$ 400 por hora de trabalho.

Com a pandemia, as aulas foram suspensas — a dinâmica online não funcionou para a perna de pau. O dinheiro guardado foi acabando. Sobreviveu com o auxílio emergencial e por ainda morar com a mãe, na Tijuca. Aos poucos, os eventos voltam a acontecer. "Fiz um em um drive in e outro em uma festa. Não queria ter ido para a festa, mas precisava", explica ela, que vem usando o tempo sem perspectivas para aprimorar a técnica.

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"Me sinto acordando como se fosse para o bloco. É como se esse período existisse dentro de mim, e meu corpo fosse programado para passar uma semana em outra vibração. É muito esquisito. Estou vibrando a festa em mim, mas o carnaval não vem"

A CONTRATADA

Nos blocos alternativos do Rio de Janeiro, a ambulante Alice Lopes, 34, é Alice Maravilha. Foi batizada assim por um folião e o nome pegou. Ela trabalha vendendo drinques e seu "maracushow" é sucesso de público. "Tem maracujá, cachaça e uns segredos", brinca. Depois do Carnaval de 2020, a vida da autônoma deu uma guinada inesperada com a covid-19.

"Foi horrível, porque a gente que é ambulante ganha hoje e gasta amanhã, é difícil economizar. O Carnaval é como se fosse o 13º, é a época em que a gente mais fatura, e é quando dá para comprar alguma coisa que no resto do ano não tem como. Parei de trabalhar, senti muito medo", conta. A mãe de Alice, Lucia Lopes, de 65 anos, trabalhou por 40 anos como ambulante e, em 2020, morreu com suspeita de covid-19. "Nunca foi confirmado, mas ela teve os sintomas, ficou internada e não aguentou."

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Com o fim do auxílio emergencial que a mantinha, e sem folia à vista, foram os amigos que fez no Carnaval que a ajudaram a arranjar emprego em um bar no centro — ela mora numa comunidade no Morro da Providência. O salário não representa o ganho que teria com o Carnaval, mas é um respiro.

"Passei muito tempo sem comer direito nem fazer o que gosto. Agora quero poder voltar aos poucos."

Publicado em 16 de fevereiro de 2021.

Reportagem: Elisa Soupin

Edição de texto: Olívia Fraga

Fotos: Lucas Landau

Edição de imagem: Lucas Lima

Design: Carol Malavolta

Direção de arte: René Cardillo