MESTRE DO PINBALL

Marie Declercq, do TAB

Uma tarde com Spina, o técnico eletrônico que mantém viva a cultura do fliperama no Brasil

Um homem de 58 anos reina sobre um mundo de circuitos, luzes coloridas, telas, sons e placares. Antonio Carlos Spina é o mestre das máquinas de pinball e um dos últimos técnicos especializados em consertá-las. De cabeça, ele reconhece ano, modelo e origem de cada mesa de fliperama, e trata cada uma como se fosse joia rara. Ele as mantém vivas nos clubes de pinball como o Oldschool, em São Paulo, e nas casas de ávidos colecionadores.

Versões arcaicas do que conhecemos por fliperama já existiam no Brasil na década de 1930, em Poços de Caldas (MG), mas a chegada da japonesa Taito, em 1968, marcou época. A fábrica produziu clássicos como Vórtex, Cavaleiro Negro e Oba-Oba (uma cópia do fliperama da Playboy, adaptada para homenagear o apresentador de TV Osvaldo Sargentelli). Seus modelos fizeram a cabeça das crianças e jovens dos anos 1970 e 1980, que torravam dinheiro em fichas, tentando bater o recorde dos jogos.

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A Taito fechou em 1985, deixando um legado nostálgico eternizado por quem viveu o ápice dos fliperamas no Brasil. Em diversos clubes de pinball brasileiros, ex-funcionários da empresa, colecionadores ou simpatizantes se reúnem para jogar, beber uma cerveja e, claro, conversar sobre pinball.

Como o país proibia a importação de máquinas, a Taito resolveu o problema de uma forma bem brasileira: copiando o design de pinballs de sucesso no exterior, trocando o tema para não dar muito na cara. Deu certo. No auge, os fliperamas produzidos dominaram quase todo o mercado.

No Oldschool, que mantém videogames retrôs e todo tipo de parafernália vintage, Spina nos guia pelo seu universo. Nascido e criado em Santo Amaro, aos 15 anos atravessou a rua de casa e bateu na porta da fábrica da Taito, no bairro do Socorro, para pedir emprego. Começou como office boy e terminou como técnico eletrônico, trabalhando no laboratório da fábrica de onde saíam as clássicas mesas de fliperama.

Órfão da Taito, Spina não perdeu a fascinação pelo jogo. Durante a reportagem, o técnico respondia com um entusiasmo genuíno sobre cada detalhe e inovação das mesas de pinball enquanto era mais vago para falar de si mesmo. A cada pergunta sobre sua vida, Spina levantava da cadeira, dizendo: "Vocês já viram essa máquina do 'Game of Thrones'?"

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Depois do fechamento da Taito, Spina foi coletando o que conseguia de antigas máquinas pelo país. Nos anos 1990, conta que foi até Minas Gerais para buscar quatro mesas que estavam abandonadas em um bar. "O carreto para trazer tudo para São Paulo foi mais caro do que as máquinas", lembra. Na decadência do fliperama, chegou a trabalhar em uma loja de suplementos, mas consertar os complexos circuitos das mesas de pinball nunca saiu de sua cabeça.

Hoje, quem gosta de pinball pode entrar nos vários clubes temáticos que existem pelo país ou, caso tenha mais grana, pode investir em uma máquina em casa. Grande parte das manutenções feitas por Spina são particulares. No dia da entrevista, Spina tinha acabado de voltar de um atendimento. "Vocês já viram minha ferramenta sofisticada?". O técnico mostra uma lixa de unha, sua aliada para limpar alguns pontos da parte interna da mesa nas manutenções.

Ser proprietário de um fliperama não é barato, porque as máquinas exigem manutenção frequente. "É como comprar um carro", adverte o técnico. Mas há compradores dispostos a levar uma mesa para casa, incluindo celebridades. Na cartela de clientes de Spina estão o locutor Zé Américo e o humorista Danilo Gentili.

Para se ter uma ideia, um lançador de bolinha pode custar mais de R$ 300. Sem contar as eventualidades, como ter de trocar o vidro da mesa ou alguma peça específica. Tudo é produzido em baixa escala por fissurados pelo jogo.

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Enquanto Spina abre uma máquina, frequentadores do Oldschool se aproximam com um livro impresso, de capa dura, que conta a trajetória da Taito no Brasil, com fotos das máquinas e depoimentos de funcionários. Spina, claro, está no livro.

O fliperama brasileiro é uma cena fartamente documentada pelos seus simpatizantes. A necessidade de agirem como historiadores resolve uma questão levantada pelo próprio Spina: os jovens não se interessam muito pelo jogo. "A molecadinha não tem paciência. O pinball atrai mais quem viveu a época de ouro dele, gente de 40 anos pra cima." Mas sua parte foi feita. Suas duas filhas, de 28 e 25 anos, são vidradas em fliperama. "Foi por causa delas que abrimos um campeonato feminino", conta, orgulhoso. Quando pedimos mais detalhes, o técnico mais uma vez foi vago em responder sobre si mesmo e nos apontou outra máquina, com a mesma animação de horas atrás. "Já viram essa aqui?"

Publicado em 13 de novembro de 2020.

Edição: Olívia Fraga

Reportagem: Marie Declercq

Edição de imagem e fotos: Lucas Lima