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Ambulantes de São Paulo trocaram artesanatos, roupas e bugigangas pelo comércio de máscaras durante a pandemia

Por Letícia Naísa e Larissa Zaidan

Fazia tempo que as ruas de São Paulo não ouviam o "três por dez". Desde o Carnaval, a gritaria dos ambulantes pelas calçadas foi silenciada pela Covid-19, que afastou vendedores e consumidores das ruas. Com a retomada do comércio, as lonas agora estão cobertas de máscaras, faceshields (proteção para o rosto) e álcool em gel. Vendedores que antes enchiam tabuleiros com bugigangas e fones de ouvido passaram a buscar, nas próprias armas de resistência à doença, a solução para o aperto econômico.

Os ambulantes só puderam voltar às ruas em 20 de julho - e somente aqueles com autorização da Prefeitura, o chamado TPU (Termo de Permissão de Uso), que somam hoje 2.721 pela cidade. Desde sua criação, em julho de 2019, o programa "Tô Legal!", que emite as autorizações online, disponibilizou 12.901 autorizações temporárias.

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"Vendo até coronavírus, se alguém comprar", brinca Felipe de Moraes, 34, que mora em Guarulhos e trabalha na R. 25 de Março há seis anos. Vendedor de artigos de festa, Moraes viu a clientela sumir depois de abril. "Não podia aglomeração, não podia festa, aí não tinha o que fazer", conta. De volta às ruas, passou a vender proteções voltadas ao público infantil e máscaras de super-heróis. Os escudos com superpoderes são vendidos a R$ 10, preço "oficial" da 25 de Março, segundo o ambulante.

Outro produto inovador de Moraes é um "relógio" de álcool em gel, uma pulseira plástica com um bojo no lugar do relógio, onde se aperta para sair álcool.

Vendo a proteção, então tenho que me proteger. Não sou grupo de risco, estou aqui fazendo um bem para a sociedade."
Felipe de Moraes, vendedor ambulante

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Durante muito tempo, os ambulantes foram vistos como uma espécie de agentes da desordem. Nas últimas décadas, contudo, São Paulo passou a competir com outros centros comerciais pela América do Sul, como Ciudad del Este, no Paraguai. "Só no início dos anos 2000 eles passaram a ser vistos como parte de um circuito econômico.

Os ambulantes vão se transformando em um ponto de conexão do capitalismo. É o que alguns especialistas chamam de 'globalização por baixo', que se faz por comércio de formiguinha e turismo de compras", afirma Daniel Hirata, professor de sociologia da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Ao lado do filho e da nora, Cleide Garcia, 42, trabalha de segunda a sábado, das 8h até o fim do expediente das lojas no entorno. Ela começou com artesanato e migrou, no início da pandemia, para máscaras de tecido neoprene, as mais populares pela 25 de Março, com estampas de desenho animado, times de futebol e frases bíblicas.

A gente tem medo, mas fazer o quê? A gente trabalha para sobreviver, pagar as contas e o aluguel."
Cleide Garcia

A partir dos anos 1990, o trabalho assalariado passa a ser uma realidade mais distante e a "pejotização" avança no Brasil. "Os ambulantes acompanham os ciclos econômicos. Isso é reflexo da estrutura do mercado de trabalho. Em situações de crise, o número de vendedores na informalidade aumenta", diz Daniel Hirata. Trabalhando no chamado comércio de oportunidade, em lugares de grande movimento, nas saídas e chegadas de terminais de ônibus e metrôs, os ambulantes dependem da circulação de pessoas.

Muita gente que não tem onde trabalhar começa pela rua. Ela é uma porta de acesso para quem não consegue entrar no mercado de trabalho formal. "As pessoas acham que o trabalhador ambulante é alguém que não deu certo, que não conseguiu fazer nada além daquilo, que está associado ao roubo, ao contrabando, à pobreza. Eles são vistos pela elite como pedintes ou como bandidos. É um estigma racista e classista", afirma o sociólogo.

Para o "público diferenciado" que transita pela Avenida Paulista, é possível encontrar máscaras feitas à mão, de forma artesanal, com tecido de algodão. O senegalês Malick Seye, 32, está há quatro anos no Brasil. Antes da pandemia, vendia roupas na rua. Agora, produz máscaras customizadas, com tecidos estampados de seu país de origem. Com uma carteirinha de permissão a tiracolo, Seye conta que aprendeu a costurar com seu irmão. "Tenho meu próprio negócio, gosto daqui", afirma. Sobre o vírus, só sabe o que escuta nos jornais: "Não conheço ninguém que pegou, mas os jornalistas falam na televisão. Não tenho medo."

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O ambulante Luciano César da Silva, 34, que vive em situação de rua, também vende máscaras de neoprene na Avenida Paulista. Antes da pandemia, trabalhava com reciclagem. O movimento dos primeiros meses de distanciamento social foi bem ruim, ninguém andava por lá. "Agora está melhorando porque reabriu shopping", conta. Luciano conhece alguém que ficou doente. O filho de seu patrão pegou Covid-19, mas já se recuperou.

Ficar com medo a gente fica, é uma doença que ninguém sabe como é. Mas já passei por tanta coisa nessa vida que eu tenho muita fé em Deus. Peço a Deus e tomo cuidado, passo álcool em gel, lavo as mãos e troco de máscara constantemente."
Luciano César da Silva

Perto do Terminal Parque D. Pedro 2º, o ambulante equatoriano Kenay Arellano, 20, sente o peso da concorrência. Há três anos no Brasil, essa foi a primeira vez que trocou as pulseirinhas que fazia à mão por um produto diferente. O jovem bate ponto no centro da cidade e na Lapa (zona oeste). Em sua estação, a máscara que mais sai é a do Corinthians. Seu vizinho de lona na praça ao lado ficou 11 dias doente e afastado, com Covid-19. Mesmo assim, Arellano diz não ter medo de trabalhar na rua. Entre os ambulantes, a fome assusta tanto quanto o vírus.

Edição: Olívia Fraga;
Edição de Imagens: Lucas Lima;
Reportagem: Letícia Naísa;
Fotos e vídeos: Larissa Zaidan

Publicado em 24 de agosto de 2020