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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

E seu pai que viajava para ver o Bolsonaro e arrumava briga na igreja?

Bolsonarista discutindo com jornalista da TV Aparecida, durante festividades no santuário                              - Redes Sociais
Bolsonarista discutindo com jornalista da TV Aparecida, durante festividades no santuário Imagem: Redes Sociais

Colunista do UOL

16/10/2022 04h01

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A adolescência é um período curioso da nossa vida.

A certa idade, já temos estrutura óssea para chutar a latinha de Coca-Cola sem tropeçar, mas ainda precisamos dos pais para comprar refrigerante e figurinha.

Não chegamos ainda à plenitude da potência física, mental e emocional. A noção do outro é ainda confusa e nebulosa.

Podemos muito, mas não podemos tanto. Oscilamos entre picos de disposição e períodos de sono profundo.

E temos raiva. Muita. Quase todas canalizadas contra as figuras de autoridade que não nos deixam ir ao show da banda favorita cujo líder parece ser a única pessoa que entende nossa frustração com um mundo careta, repressor, cheio de regras e onde nossas subjetividades e rostos tomados por espinhas são diariamente espremidos pela insignificância.

Antes da última curva em direção à vida adulta, temos raiva e tempo de sobra, intercalado por momentos de tédio e outros de grandes descobertas, para canalizar a rebeldia, gritar e fazer a revolução, embora muitas vezes essa energia se disperse em pequenos atos transgressores como beber em via pública, fumar escondido dos pais, andar por aí com a camisa de revolucionários pop, urinar nas paredes da igreja e fazer troça na homilia do padre.

Completei 40 anos no último dia 8 e posso dizer que agora estou oficialmente mais perto da velhice do que da adolescência. Isso é bom? Não sei.

De onde estou, noto que me foi suprimida uma figura tão aguardada quanto o direito à aposentadoria: onde, afinal, estão os velhinhos que eram adultos quando eu era criança e que a essa altura me ensinariam os caminhos e os atalhos de uma nova vida, sem aquele mar de colágeno e disposição física, mas rica em sabedoria e conhecimento acumulados? Em que momento vamos sentar num fim de tarde para conversar sobre o tempo, os sinais da natureza, as colheitas da maturidade? Onde está o ancião cansado de guerra que me levaria até a biblioteca e sacaria de cor os ensinamentos de Shakespeare, Voltaire e Machado de Assis para iluminar minhas profundezas?

Estariam todos dormindo, dormindo profundamente, como no poema de Manuel Bandeira?

Não. Dias depois do meu aniversário, parte deles estava acordadíssima e vestida de verde e amarelo para viajar com a turma do terceirão no feriado de 12 de outubro, Dia de Nossa Senhora Aparecida e também da Criança. Para orar? Não, para ver um ídolo de perto e trocar doces por travessuras na porta da igreja, como fazíamos aos 14 anos.

A outra parte estava em casa revoltada com a rebeldia dos amigos. Envelhecer é navegar por um mar de raiva o tempo todo.

Olho para a vizinhança dos meus pais e de longe percebo os ventos da mudança por ali. Eles vêm carregados de raiva e rebeldia e é difícil entender por quê, já que muitos deles prosperaram, moram em boas casas, bebem bons vinhos e podem ser considerados vitoriosos.

Mas naquelas casas pintadas para a guerra em bandeiras de verde e amarelo quase sempre habitam pessoas envelhecidas que parecem ter sido tiradas de um sono profundo tal qual um adolescente que ouve a guitarra de Keith Richards pela primeira vez.

Eles e os jovens que foram um dia têm algo em comum: a revolta contra alguém de 30, 35 anos, dizendo o que eles têm de fazer.

Pela ordem natural das coisas, o que eles deveriam fazer, segundo quem vive hoje o auge da forma física, é vestir o pijama, tomar sua sopa, ver a novela e esperar o sono — ou a morte.

Corta a cena para o bolsonarista bêbado e alucinado querendo arrumar briga com um cinegrafista à porta da basílica de Aparecida (SP) no último feriado. Como um adolescente brigão na saída da balada, aquele senhor de cabelos brancos estava encorajado pela presença dos amigos, e talvez do álcool no sangue, e queria a todo custo descarregar a revolta diante de um papel social que se nega a obedecer.

No bolsonarismo gente como ele encontrou um sentido para a vida e é capaz agora de matar ou morrer para não perder a sensação de novamente pertencer a uma turma.

Uma chave meio óbvia para entender a revolta do sessentão é associar sua conversão a revolucionário bolsonarista às frustrações ao longo da vida. Isso explica só em parte o fenômeno. Entre os soldados do movimento não faltam homens ricos que poderiam estar a essa hora alegres e satisfeitos por morar em Ipanema depois de ter passado fome por alguns anos na cidade maravilhosa.

Naquelas rodas punk em verde e amarelo habita um medo ancestral com a emergência de novos corpos, linguagens e sintaxes que surgem a cada nova geração, mas o que os une ali é sobretudo uma reivindicação baseada em um déficit de reconhecimento.

É como se dissessem: "Vim, vi e venci e ninguém me reconhece agora como grande cidadão".

Ninguém, com exceção de grupos políticos que fazem da revolta alheia o seu elixir da longa vida. Bolsonaro é mestre nisso e muito antes já havia percebido uma multidão disposta a trocar os livros pelas correntes de WhatsApp e indisposta a seguir a sugestão de Nelson Rodrigues: "Jovens, envelheçam".

Como infantes transgressores, esses eleitores rebelados tendem a desprezar a palavra do bispo enquanto cantam hinos de louvor ao ídolo que representa o que eles querem ser um dia: um homem que fez da crise de meia-idade uma limonada. Que na juventude fugiu do quartel, chocou com atos e palavras os vigilantes do bom gosto, se reinventou na velhice, subiu na vida (era deputado de baixo clero, hoje manda no país) e agora desafia o superego e as figuras de autoridades. Saem os pais, entram as leis e instituições do Estado. Faz tudo isso enquanto anda de moto e jet-ski no fim de semana e nos eventos sociais desfila com a esposa-troféu 27 anos mais nova.

Por muito tempo o mercado entendeu que estimular a rebeldia adolescente era uma fonte de lucro para os negócios. A juventude era (ainda é) uma banda numa propaganda de refrigerantes e noções como estilo e atitude sempre foram pretexto para vender calça jeans (rasgada), tênis, tatuagem, cigarro — itens de ostentação que prometiam suprir os medos e limites de uma vida alicerçada em bases físicas e emocionais frágeis e inseguras.

Um dos efeitos do envelhecimento da população é a extensão de uma outra fase da vida alicerçada em bases físicas e emocionais frágeis e tomadas de insegurança. Nada que não pode ser compensado por novos itens de consumo: carros conversíveis, camionetes, motos, revólveres, camiseta com a imagem do líder revolucionário, cirurgia de correção estética, suplemento alimentar, remédio contra disfunção erétil (somos todos imbrocháveis, afinal) e bebida, muita, para preencher as horas vazias de uma vida cheia de gás mas já não tão produtiva nem desafiadora como antes.

Talvez tenha sido sempre assim, mas desconfio que essa é a primeira geração de velhos jovens treinados e orientados a rejeitar as marcas da maturidade e, consequentemente, do envelhecimento. O engajamento político virou assim o barato que faltava para agitar o esqueleto dos jovens revolucionários que dormiam em algum lugar daqueles corpos.

Quando adolescentes saem às ruas em busca de altas aventuras e confusões, os pais costumam minimizar a transgressão dizendo que tudo se resume a tédio. O mesmo vale para o jovem envelhecido que dormiu antiquado e acordou revolucionário, querendo do nada invadir prédio público e jogar coquetel molotov em ministros do Supremo e políticos engravatados?

Em cada bandeira pendurada na varanda parece haver não um pedido de ordem e disciplina — que o atual presidente nunca representou, aliás — mas um pedido de socorro embutido na necessidade de ver, ser visto e reconhecido como protagonista da História, e não uma figura cafona, ultrapassada e fora do jogo.

A fuga dos nossos pais no feriado para sair com os amigos e encontrar um ídolo que deu a eles uma causa e uma estética lembra o drama da jovem que deixou os pais para trás e fugiu com um motoqueiro na música "She's Leaving Home", dos Beatles. Em casa ela tinha de tudo, menos diversão. O que eles buscam? Algo lá no fundo que está prestes a ser negado pelos próximos anos.