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Copa do Qatar: podemos 'sobreviver' sem álcool e por que a resposta é não?
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Uma Copa do Mundo realizada num país distante e estranho do Oriente Médio permite a nós, espectadores, realizar um exercício que se aprende na primeira aula de antropologia: olhar o outro como se fosse nós mesmos e a nós como se fosse o outro.
Não preciso repetir aqui o que já foi falado muito antes de a bola rolar no Qatar, país que nos dá a possibilidade de observar em perspectiva questões como direitos femininos, liberdades civis, condições de trabalho adequadas, poderes políticos etc.
Do lado de cá do Atlântico, as conquistas sociais ganham razão para serem celebradas e, mais do que nunca, preservadas com toda a atenção. A começar pela separação entre Estado e religião, que por aqui flerta com um risco real, toda vez que se coloca um único Deus acima de tudo — inclusive da diversidade e a liberdade religiosas.
Mas olhar modos distintos de vida nos dá também a chance de nos observar num espelho invertido.
A dois dias do início do Mundial, ficamos sabendo da proibição do consumo de bebida alcoólica nos arredores dos estádios.
A medida restritiva foi recebida nas redes como uma profecia realizada: enfim, os humilhados serão exaltados.
Os humilhados, no caso, eram os torcedores comuns do lado de cá que, diante dos valores proibitivos de passagem, hospedagem e ingressos para o grande evento, só têm a opção de ver a Copa pela TV.
"Os ricaços agora vão ver a Copa a seco. E quem vai ostentar o copo térmico cheio de cerveja somos nós. Parece que o jogo virou", diziam, mais ou menos com essas palavras, os internautas alegrados com a desgraça alheia.
O entendimento da restrição como uma "desgraça" de fato que levou o presidente da Fifa, Gianni Infantino, a dizer aos desolados: "vocês vão sobreviver".
Era como a mãe dizendo que na volta — no aeroporto ou na próxima Copa — a gente compra aquela garrafa com passaporte gratuito para a diversão.
No Qatar, o colunista do UOL Rodrigo Mattos contou que a busca (e o pagamento) por uma simples cerveja no país remete à ginástica dos adolescentes que fomos um dia, tentando driblar os olhares repressores dos adultos. "É como se o Qatar fosse o pai restritivo que quer nos manter sóbrios", escreveu.
No evento de abertura, era possível ouvir uma espécie de grito de desespero vindo da torcida do Equador: "Queremos cerveja, queremos cerveja".
Desconheço uma oportunidade melhor para o que convencionamos a chamar de Ocidente observar sua relação com o álcool. Não durante a Copa, mas durante a vida.
Digo isso com lugar de fala.
Dias antes de a Copa começar, fiz um exercício de memória e cheguei à conclusão de que, não importa o que aconteça, jamais conseguirei atingir um estado de euforia orgânico (sóbrio) como o que vivi na Copa do Mundo de 1994.
A não ser que comece a beber às 7h e chegue calibrado até o jogo das 16h, como fiz (muito) em 2014. O tempo de calibragem é o tempo necessário para tirar do corpo e da mente todas as camadas de responsabilidade, pressão e temperatura da vida adulta.
Na Copa dos EUA, eu era uma criança de 11 anos que estava descobrindo o mundo e não tinha lá grandes preocupações, a não ser a prova no dia seguinte ou as brigas corriqueiras com os pais para dormir depois das 22h. Tudo naquele tempo vinha com o impacto e a adrenalina das estreias, o sabor único daquilo que se vê e se vive pela primeira vez.
É como se, depois de um tempo, a gente precisasse de algum subterfúgio para relaxar, absorver as experiências sensoriais e nos divertir como se fôssemos crianças novamente — em outras palavras, como se não houvesse contas a pagar, um mundo a consertar, pressões para ser o que esperam da gente o tempo todo e ainda administrar os cacos dos fracassos que acumulamos com a idade.
Se fosse lançar um olhar estrangeiro — no caso, o dos anfitriões — sobre os meninos (e essa é uma Copa em que a masculinidade está mais do que nunca no centro da ação e do poder, e não só em campo) preocupados por terem os brinquedos retidos à entrada dos estádios, uma pergunta inevitável para entender os visitantes é se somos mesmo capazes de nos divertir "a seco".
A resposta é complexa. Principalmente quando esperamos a semana toda (ou os quatro anos entre um Mundial e outro) para começar a nos esquecer da vida ordinária que levamos e engolimos a seco durante os intervalos.
Obviamente isso não tem só a ver com diversão. Tem a ver com dependência.
Dias atrás, uma amiga fez nas redes um relato pesadíssimo sobre como precisou romper com o amor de sua vida por uma razão que poucos, além dela e pessoas próximas, entendiam: a relação do companheiro com o álcool.
Dava o fim de semana e aquela alegria incontida dos primeiros anos se transformou em melancolia, violência, irresponsabilidade — como pegar o carro de madrugada e sair pela cidade em busca de mais álcool, mais paz de espírito, mais tudo o que já não havia na sobriedade. Para ela aquilo tudo virou um risco. Um trauma. Como é para muita gente que lida com uma multidão de homens ressentidos que se tornam violentos sob efeito de uma droga permitida, liberada, incentivada, normalizada.
Do esporte para o qual agora lançamos os olhares e as atenções, existem inúmeros casos de batalhas travadas fora do campo entre estrelas e a dependência. Maradona talvez seja o maior dos exemplos.
O relato de seu médico a respeito de seus últimos dias, quando precisou conviver com a abstinência para se recuperar de uma cirurgia, é revelador das engrenagens, pressões e derrotas que mobilizam o espetáculo esportivo por detrás das coxias.
Não deixa de ser trágico que homens devastados como Maradona sejam escalados para levar alegria e um pouco de escapismo para uma plateia igualmente devastada — mas festiva sob estados alterados da mente e do corpo.
Sou um desses torcedores que sentem falta de alguma coisa quando a bola rola e não há nada para beber por perto. O que antes era fonte de euforia hoje é uma porta de entrada para a melancolia.
O escândalo da proibição do que se tornou um produto estruturante do nosso modo de (não) estar no mundo deveria nos fazer repensar nossa relação com o álcool. E isso não tem a ver (só) com a quebra de um acordo comercial.
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