Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Monark e companhia dizem viver uma ditadura pois não têm ideia do que é uma
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Adriana Calvo de Laborde estava grávida de seis meses quando foi sequestrada por agentes da ditadura argentina, em 1977. Semanas depois, ela entrou em trabalho de parto. Estava no banco de trás de um automóvel, com as mãos amarradas e os olhos vendados.
Os guardas que a conduziam não atenderam aos seus apelos para que parassem o automóvel. Apenas a xingavam e riam de sua situação.
Ela só teve tempo de tirar a calcinha quando a filha nasceu. O bebê, ainda preso pelo cordão umbilical, caiu do assento. Mãe e filha seguiram viagem sacolejando no banco de trás diante da indiferença dos agentes.
A mãe só abraçou a filha depois de limpar as escadarias de mármore, suja com o sangue e a placenta estourada, para onde havia sido levada. Ela estava nua e humilhada.
Adriana e sua filha são dois dos milhares de exemplos de pessoas presas por uma ditadura sul-americana do século 20 que não tiveram direito a um julgamento justo.
Seu depoimento, reconstituído no filme "Argentina, 1985", de Santiago Mitre, desnudou o regime diante da opinião pública e mudou os rumos do julgamento que colocou ditadores do país no banco dos réus.
Os sequestros, torturas e mortes produzidas pelos militares levaram à prisão boa parte dos comandantes de um tipo de sadismo que, nas palavras do promotor Julio Strassera (personagem interpretado por Ricardo Darín), não se resumia a uma "ideologia política nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral".
Pré-selecionado para o Oscar de melhor filme internacional, "Argentina, 1985" é um refresco à memória de quem passou os últimos 40 anos esquecido ou, no caso dos nascidos já num regime democrático, cresceram sem ter noção dos horrores que é viver sob uma ditadura. A tal ponto que já não distinguem uma coisa da outra.
Quem não perdeu (ainda) a capacidade de ligar "lé com cré" consegue conectar as relações de causa e consequência entre discursos irresponsáveis transmitidos por redes abertas e privadas e os atos criminosos que se espalharam por Brasília no dia 8.
Autoridades e formadores de opinião, por ignorância ou má-fé, passaram os últimos meses dizendo que as eleições no Brasil foram fraudadas, que o sistema está corrompido e que é preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa, para salvar o país do abismo.
O discurso já seria um perigo se fizesse a cabeça de dez pessoas. Em Brasília, milhares de pessoas com a cabeça feita, alimentadas por conversas do tipo, resolveram agir por si, como se estivessem acima da lei.
A ultrapassagem da linha que divide o delírio e o ato criminoso levou uma multidão à cadeia, de onde terão agora a oportunidade de provar a inocência ou pagar o que devem ao país.
Outros, após algumas horas de perrengue, responderão a seus processos em liberdade. A maioria são pessoas de idade avançada ou mulheres com crianças.
Assim funciona uma democracia: existem as leis e quem quiser atropelá-las deve responder por isso, com direito garantido à ampla defesa e eventuais apelações dentro do próprio processo judicial que um dia tentaram destruir.
Tem quem veja nisso um paralelo com um campo de concentração — uma ofensa à memória e aos familiares de quem sobreviveu ao Holocausto.
A tentativa de botar abaixo a República com a invasão e o quebra-quebra nas sedes dos Três Poderes é um crime com mandantes e executores.
Neutralizar os mandantes envolve medidas para neutralizar os meios por onde as mensagens criminosas, amparadas em uma ambiguidade supostamente ingênua, são transmitidas.
Por isso muitos desses influencers tiveram as contas em suas redes sociais suspensas.
As medidas podem e devem ser questionadas.
Mas é bom que ninguém se esqueça: esses questionamentos estão dentro de uma discussão da ordem jurídica e dos limites entre liberdade de expressão e incitação ao crime.
Há quem veja nisso, porém, os tentáculos já materializados de uma "ditadura" em curso. É o caso do youtuber Bruno Aiub, o Monark, um entusiasta da criação de um partido nazista brasileiro, e de políticos e influencers que começam a ser responsabilizados por usarem seus canais para induzir uma multidão a atacar as sedes e os representantes dos Poderes. No caso de Monark, a responsabilização veio com a suspensão de sua conta no Twitter.
A sanha punitivista tem seus percalços e contradições, mas num ponto os grupos se dissociam: do lado de cá do muro civilizatório, ninguém em sã consciência deseja que os agentes e os executores do caos experimentem na pele a botina de uma ditadura para aprender na prática o que desprezaram como teoria e registro histórico.
Não seria crível imaginar que quem se formou em história e sociologia pela Universidade Twitter, YouTube e Associados — ou com a verdade torturada de best-sellers politicamente enviesados e produtoras de vídeos responsáveis pela criação de realidades históricas paralelas — guardem um tempo para conferir livros de autores de referência sobre a ditadura no Brasil para compreender o modus operandi que orientou, em escalas diversas, a perseguição a opositores do regime.
Mas seria útil que eles se dedicassem alguns minutos do dia para assistir ao longa de Santiago Mitre para ao menos ter ideia do que estão dizendo.
Talvez assim descubram que ninguém vive de fato em uma ditadura só porque alguns meninos mimados estão sendo impedidos de divulgar ideias criminosas em suas redes sociais. Pode-se discutir a eficácia e a legitimidade de medidas do tipo para conter o incêndio golpista e fundamentalmente violento que se propaga pelo país.
Mas quem testemunha o depoimento de vítimas reais de uma ditadura deveria sentir vergonha em dizer que vive em uma porque o bedel, encarnado por Alexandre de Moraes, não deixou o jovem adulto mimado e limitado, moral e intelectualmente, botar fogo no parquinho.
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