Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

George Santos: filho de brasileiros é Cavalo de Troia para radicais nos EUA

George Santos, pivô de um escândalo por mentiras no currículo, faz um gesto com a mão esquerda ao votar no líder republicano da Câmara, Kevin McCarthy - Evelyn Hockstein/Reuters
George Santos, pivô de um escândalo por mentiras no currículo, faz um gesto com a mão esquerda ao votar no líder republicano da Câmara, Kevin McCarthy Imagem: Evelyn Hockstein/Reuters

Colunista do UOL

22/01/2023 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

É um fenômeno de ordem global: em qualquer roda de conversa, em qualquer lugar do mundo, não é difícil encontrar adeptos da cartilha conservadora encarnada por Donald Trump e a direita extremista que ascendeu nos EUA e migrou para países como o Brasil.

Em dois minutos de bate-papo é possível ouvir que nunca nossas cidades foram tão violentas, que a esquerda não enfrenta como adultos problemas relacionados a segurança e economia, e que nossas famílias estão ameaçadas por perversões como o aborto e a "ideologia de gênero".

O aquecimento global, para eles, pode até ser um problema, mas aposentar os combustíveis fósseis para impor um modelo mais limpo de energia só vai produzir mais pobreza e injustiças — males que só são enfrentados com uma noção clara de deveres, não dados supostamente alarmistas ou conceitos (para eles) abstratos sobre direitos.

Não importa a origem social, a cor, a raça, a etnia ou a orientação sexual: segundo essa cartilha, ninguém precisa de ajuda para enriquecer em um país como os EUA, onde a liberdade seria um valor inegociável. A "terra das oportunidades" é um avião sem escalas, embora altamente poluente, para quem tem um único ativo na vida: o mérito.

Trata-se de um discurso de vencedor para convencer o derrotado a seguir trabalhando para ele. "Veja bem, não faltaram condições ou ferramentas para a vitória, e sim vontade e esforços. Que tal tentar um pouco mais?".

O manual do empreendedor de sucesso parece menos crível quando recitado por gestores e herdeiros das grandes fortunas, desses que habitam as capas de revistas dizendo como foi difícil virar CEOs das empresas onde começaram como estagiários — as empresas dos próprios pais.

Agora imagine as mesmas ideias serem replicadas por um filho de imigrantes assumidamente gay que diz conhecer a pobreza de perto e, em vez de abraçar o coitadismo, arregaçou as mangas, estudou, trabalhou, enriqueceu e agora está aí para dar o exemplo.

Parece mais atraente eleitoralmente, não?

Pois o conto de fadas virou um manancial de votos para George Santos, filho de brasileiros nascido no Queens, em Nova York, e que se tornou, em novembro do ano passado, o primeiro republicano abertamente gay a ser eleito para a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, aos 34 anos.

George Santos chegou lá vendendo na campanha o chamado sonho americano. Aquele que diz: vim, vi, venci e posso provar. O problema de George Santos é que ele não podia.

A lista de lorotas protagonizadas por ele é extensa.

George Santos não estudou nas universidades em que dizia ter estudado. Ele sequer tinha ensino superior.

O apoiador de Donald Trump também não era assim tão rico como se vendia. Os perrengues para pagar o aluguel o denunciavam. Os bancos em que dizia ter trabalhado também.

Por alguma razão, o Forrest Gump da eleição americana imaginou que se tornaria um candidato mais competitivo se mostrasse que sua trajetória de resiliência era um dom de família.

Para isso, levou os eleitores a acreditarem que seus avós eram sobreviventes do Holocausto e que sua mãe escapara por pouco da tragédia do World Trade Center em 11 de setembro de 2001. Sua mãe, que morreu em 2016, sequer estava em solo norte-americano naquele dia. E seus avós haviam nascido no Rio antes da ascensão nazista na Europa.

George Santos também dizia, em campanha, que tinha orgulho de ser judeu. Não era.

Por alguma razão, a estrela do partido de Donald Trump — de quem ele se mostrou um soldado fiel e incapaz de reconhecer as digitais na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021 — imaginou que ninguém se lembraria do que fez em verões passados ao assumir o posto de deputado nos EUA.

Vítimas de golpes aplicados por George Santos antes da fama não demoraram a reconhecer o bravateador agora famoso.

Um deles foi um comerciante de Niterói que, em uma das passagens do futuro político pelo Brasil, em 2008, vendeu a ele mais de R$ 2.000 em roupas e calçados (em valores da época) e recebeu dois cheques sem fundo como pagamento. Os cheques foram surrupiados de um idoso que era cuidado pela sua mãe.

Outra suposta vítima foi um veterano da Marinha que confiou a George Santos a missão de arrecadar fundos, com uma vaquinha online, para bancar a cirurgia para retirada de um tumor de um de seus cães. O futuro deputado, que nunca teve ONG em defesa de animais, como dizia, teria fugido com o dinheiro; o cão morreu sem assistência.

Quem também se lembra bem de George Santos é Eula Rochard, uma artista com quem Santos desfilava como drag queen nas paradas gay de Niterói e que hoje se diz chocada com o alinhamento do antigo parceiro ao extremismo nos EUA. O espanto faz sentido para quem sente na pele o perigo de se viver no Brasil, um dos países mais conservadores e ao mesmo tempo mais violentos contra a população LGBTQIA+.

As coisas seriam diferentes nos EUA, a ponto de personagens tão aparentemente díspares — um transfóbico e um performer — conviverem dentro da mesma personalidade?

O alinhamento, até onde se sabe, não era apenas no discurso. Entre os vitoriosos com a ascensão do cavalo de Troia meio nova-iorquino/meio niteroiense estava Carl Paladino, executivo imobiliário e político contratado para seu gabinete como porta-voz que, entre uma série de comentários racistas e homofóbicos, já elogiou a capacidade de liderança de ninguém menos que Adolf Hitler, a representação maior do ódio a minorias, inclusive pessoas gays.

Em uma entrevista aos repórteres João Batista Jr. e Flora Thompson-DeVeaux para o podcast "Rádio Novelo Apresenta", logo que foi eleito, era possível perceber uma série de lacunas no discurso do deputado republicano. Ele dizia, por exemplo, que sua casa foi vandalizada como vingança política por adversários, após uma viagem ao resort de Donald Trump, na Flórida — o fato nunca aconteceu.

Santos também nunca apresentou boletim de ocorrência do assalto que alardeou em campanha ter sofrido na cidade.

Ele falava também que era "persona non grata" na parada gay de Nova York, por puro "preconceito" dos organizadores em relação aos republicanos. Não há indícios de que isso tenha acontecido.

Tranquilo e bem-humorado, Santos falava tudo isso sem franzir a testa. Entre um exemplo de vida aqui e outro acolá, ele divulgava, na mesma entrevista, números fictícios e/ou descontextualizados sobre aborto e violência em lugares governados por democratas — uma estratégia conhecida da extrema direita norte-americana para assombrar e fisgar os eleitores mais conservadores. Dessa vez com a mentira vendida em uma embalagem igualmente falsa.

Santos assumiu seu mandato como deputado com os dias já contados. Rivais democratas querem apeá-lo de lá; os republicanos não têm coragem de sair em sua defesa.

É possível que muitas outras histórias sobre o fabulista profissional venham a público até que sua queda seja consumada.

Mas uma coisa é certa: George Santos é sujeito e objeto de uma sofisticada estratégia da extrema direita mais feroz para chegar ao poder vestida de cordeiro.

Como lembrou o militante antifascista britânico Joe Mulhall no livro "Tambores à Distância", houve um tempo em que a homofobia virulenta era a norma absoluta para todas as vertentes da extrema direita internacional. "A homossexualidade era descrita como 'degenerada' e 'perigosa'; atitudes que permanecem inalteradas dentro da extrema direita. No entanto, o quadro recente ficou mais misturado quando se trata do espectro radical e de extrema direita mais amplo (...). As atitudes em relação a direitos LGBT+ na extrema direita moderna é uma questão complexa, mas muitos agora mantêm diálogos limitados com homens gays, principalmente para fins estratégicos" — como, por exemplo, atribuir a intolerância apenas a países muçulmanos ou não-ocidentais.

"Esse desdobramento serviu para fazer com que a extrema direita moderna parecesse mais palatável durante um período de maior aceitação social em relação à comunidade gay", escreve Mulhall.

No caso de George Santos, essa estratégia parece clara: mostrar que ninguém precisa de leis específicas para sobreviver e até enriquecer em um país como os EUA, desde que aceite trabalhar duro, em silêncio obediente, sem reivindicações coletivas e sem fazer da luta contra a discriminação e a injustiça uma causa.

Fazia parte da lenda dizer que nunca sofreu preconceito por parte dos pitbulls republicanos (só, vejam que coincidência, entre militantes LGBTQIA+) e que era preciso evitar tratar, se possível com a força da lei, a abordagem em público de temas como direitos de pessoas gays — o famigerado "Don't Say Gay".

Esse suposto acolhimento a quem se comporta como os grupos hegemônicos desejam, inclusive assimilando a fala e os gestos do supremacismo branco, é tão autêntico quanto a biografia do personagem "útil" à narrativa dos vencedores.

George Santos é a minoria que a maioria adora. Com um detalhe: George Santos, assim como as pilastras da meritocracia, é apenas um personagem de ficção.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL