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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Símbolo de justiça, Robin Hood vira vilão em palestra de Abílio Diniz

Robin Hood - Disney
Robin Hood Imagem: Disney

Colunista do UOL

03/02/2023 04h01

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Uma multidão de golpistas vestidos de verde e amarelo invadiu as sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro, numa tentativa de abalar os pilares da República.

Nada que abalasse o apetite do "mercado" no dia seguinte, quando o Ibovespa fechou em alta de 0,54%.

Muito longe dali, o Brasil mostrou ao mundo a face mais nefasta da busca desenfreada por riquezas a partir de aldeias yanomamis, atravessadas por fome, desnutrição e doenças evitáveis em decorrência da contaminação de rios e terras agricultáveis promovida pelo garimpo ilegal.

Nenhum grupo ou associação de patrões foi a público manifestar preocupação ou postar um mísero olhinho em lágrimas com a bandeira do Brasil ao fundo.

Quem se pergunta o que, afinal, afeta a turma dos endinheirados no Brasil, além da preocupação com o vinho ideal para os convidados da noite, ganhou de Abílio Diniz, sócio e conselheiro do Carrefour, uma aula grátis sobre os segredos da mente milionária.

Em julho do ano passado, o magnata se negou a assinar uma carta em defesa da democracia. O manifesto, organizado pela Faculdade de Direito da USP, reuniu apoio de 500 mil pessoas, entre elas juristas, artistas, empresários e banqueiros que ainda não haviam perdido a capacidade de perceber os riscos contra as instituições e seus negócios diante de ataques infundados e questionamentos às urnas eletrônicas e o Estado de Direito promovidos por Jair Bolsonaro (PL) — que sequer era citado no documento.

Diniz preferiu não "polemizar", em nome da neutralidade e das boas pontes que pretendia manter com Lula e Bolsonaro. Ele dizia isso enquanto jantava com o então presidente e tirava dinheiro do bolso para doar a candidatos bolsonaristas durante a campanha — e ao PT após a vitória de Lula.

Desde a posse do petista, o novo governo já precisou enfrentar golpistas, uma crise militar e outra de ordem humanitária, no caso dos yanomamis.

Mas o que preocupa Diniz é outra coisa: que o novo presidente coloque em campo uma reforma tributária no modelo Robin Hood, "que tire dos ricos para dar aos pobres".

Foi o que ele disse a uma plateia lotada para ouvi-lo em um encontro promovido por um banco de investimentos.

Curioso que o empresário tenha usado a figura de um herói mítico da Inglaterra para expressar seu receio: na lenda sobre o hábil arqueiro dos bosques de Sherwood, em Nottingham, Robin Hood era o herói; os vilões eram justamente um xerife corrupto e a nobreza responsável por esfolar a população camponesa.

Como lembra Stephen Knight, historiador da Universidade de Cardiff e autor de "Robin Hood: uma Biografia Mítica", o personagem representa "600 anos de desenvolvimento de conceitos e sentimentos" a respeito de "ideais utópicos de justiça e liberdade". E é isso o que apavora Diniz.

Em 2021, o clube de milionários brasileiros passou de 207 mil representantes contabilizados no ano anterior para 266 mil. A fila para comprar um iate de R$ 54 milhões é de dois anos no mínimo.

O modelo de tributação e distribuição de riquezas do Brasil permitiu que, no mesmo período, 14 milhões de brasileiros entrassem em outro grupo, nada seleto: o dos que acordam todos os dias sem saber se terão café, almoço e jantar. (Um grupo que hoje conta com mais de 33 milhões de pessoas. E pagam proporcionalmente mais impostos do que os ricos).

Mas o medo de Diniz e companhia é que alguém aponte que nada disso é digno, sustentável ou moralmente justificável — mesmo para os bem-nascidos apoiados na plaquinha do "eu mereci".

Há quem chame a mudança nesse modelo perverso de justiça social. Outros, de "comunismo".

Outros ainda procuram numa lenda britânica um nome para o próprio medo. No mercado de ações o que não falta é gente com a Síndrome do Xerife de Nottingham.

Mas é em outro personagem, este italiano, que Diniz parece se identificar. É o príncipe de Falconeri, do romance "O Leopardo", de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, segundo quem as coisas em seu país em transição poderiam até mudar, desde que tudo ficasse como estava.

No Brasil, isso significa iates para poucos e ossos para muitos. Como diria o ídolo (assumido ou não) da turma: e daí?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL