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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Os Banshees de Inisherin' não é filme sobre amizade. É sobre um mau amigo

Colin Farrell e Brendan Gleeson em cena de "Os Banshees de Inisherin" - Searchlight
Colin Farrell e Brendan Gleeson em cena de "Os Banshees de Inisherin" Imagem: Searchlight

Colunista do UOL

12/02/2023 04h01

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A certa altura da vida, você é capaz de arrancar um dedo para ficar sozinho e em paz por alguns dias. Isso é um spoiler, não um conselho.

Parece estranho dizer isso quando tudo conspira contra a solidão — aquele moinho de vento contra quem investimos tantos recursos para tapar, com todo tipo de conexão, consumo e exposição em redes, seus insuportáveis minutos de silêncio.

Essa relação com o tempo começa a mudar aos primeiros sinais da maturidade. Nessa fase, ficar em silêncio é uma arte. E também uma urgência, uma questão de sobrevivência quando todos ao redor parecem ocupados demais aperfeiçoando todo tipo de neuroses. Como discos riscados (olha aí a marca idade), os papos não mudam. As queixas também não.

E cortar os dedos sem anestesia parece ser mais agradável do que ouvir marmanjo descrever em detalhes os dramas pueris de suas rotinas, quase sempre envolvendo dinheiro, boletos, bebedeiras, perrengues com filhos, disfunções matrimoniais e outras pequenas competições da vida adulta.

Deve ser por isso que saí da sessão com a impressão de que poderia passar o dia todo falando sobre "Os Banshees de Inisherin", filme de Martin McDonagh indicado a nove estatuetas do Oscar de 2023, inclusive a principal.

Fiquei um tempo me perguntando se aquele era um filme sobre a guerra, sobre a amizade, sobre as intermitências da morte, sobre o dilema do processo criativo ou um pouco de tudo isso.

A chave de compreensão veio no filme da sessão seguinte.

Em "Os Fabelmans", este sim favorito ao Oscar de melhor filme, o jovem Sammy, alter ego de Steven Spielberg, recebe a visita de um tio distante que trabalhava no circo e percebe a verve artística do menino.

Todos na família de sua mãe evitavam aquele tio. Pudera: ele era o único parente que não sufocou no ninho a urgência de viver como um artista em troca de uma vida comum e organizada. (Todo o drama é baseado no dilema da mãe do diretor, uma pianista e cantora talentosa que se deprime no confinamento do lar.)

Como um banshee, figura da mitologia celta responsável por trazer maus presságios, aquele tio avisa o sobrinho já transtornado com a paixão pelo cinema que fazer da arte uma profissão, e não apenas um hobby, era assinar um contrato de tempo indeterminado com a solidão.

Volto para "Os Banshees de Inisherin".

No início do filme, descobrimos que Colm Doherty, um velho violinista interpretado por Brendan Gleeson, não quer mais saber de papo com o amigo Pádraic (Colin Farrell).

Eles vivem na pequena ilha de Inisherin, na Irlanda. O filme se passa no começo dos anos 1920, quando o país era atravessado por uma sangrenta guerra civil. As bombas que explodem no continente são um aviso de que aquele pequeno pedaço de terra cercado de águas por todos os lados não está imune às infiltrações do conflito.

Diferentemente da guerra, Colm não precisou de um estopim para se afastar de Pádraic. O desprezo é silencioso, mas comunicado de forma abrupta.

Tudo parecia bem entre eles até a véspera. Um dia o violinista decide não conversar mais com o velho companheiro de bar e bebedeiras diárias.

O chão é riscado no momento em que o amigo mal-humorado tem coragem de dizer o que todo mundo pensa do jovem criador de animais daquela província: "Você é chato."

Colm usa como exemplo o dia em que o amigo passou duas horas contando o que encontrou no cocô de seu pônei.

Em depressão e perto do fim da vida a cada dia, Colm descobre que não tem mais tempo a perder com os papos furados do parceiro falante, limitado e incapaz de perceber suas urgências. Quer usar o tempo que lhe resta para compor uma canção e ser lembrado após a morte.

E ele não conseguiria fazer nada disso sem uma imersão profunda em si.

Num mundo que, cem anos depois, rejeitaria a solidão com todos os utensílios e tecnologias, o propósito do artista parece fora de razão.

Nos anos 20 do novo século, não fazemos outra coisa se não jogar tempo e conversa fora o tempo todo para não dar trela a medos e pensamentos profundos anunciados não por espíritos, mas pelo corpo.

A real é que Pádraic não aceita aquela interdição.

"Os Banshees de Inisherin" não é (só) um filme sobre a amizade. É um filme sobre um mau amigo, e isso demoramos a perceber porque Pádriac é um personagem simplório, mas cativante, como sua jumenta tratada como pet dentro de casa.

É ele quem faz de tudo para boicotar o desejo do ex-amigo. Cada investida para levar o artista à superfície daquela rotina tosca e pouco interessante representa uma supressão física de um acordo desrespeitado.

O elo do artista com aquela ilha é, na verdade, um aprisionamento que precisa cortar com tesoura para expandir seu universo para além do continente e suas influências.

Para mostrar que falava sério, Colm alerta que estava disposto a se mutilar para que o amigo entendesse que não queria MESMO conversa. É o que países em guerra fazem quando um acordo é quebrado.

Pádriac sabe que o amigo não poderá tocar seu violino se levar a sério a sua promessa/ameaça de cortar um dedo cada vez que ele se aproximar. Mas o faz ainda assim.

Quando percebem, aquele rompimento que deveria ser amigável se transforma numa declaração de guerra, como fazem os conterrâneos do continente irlandês — e como fariam os habitantes de outras ilhas naquele século marcado por conflitos.

Em uma das cenas, um policial alcoólatra e violento conta ao improvável amigo violinista que no dia seguinte vai executar uns prisioneiros da guerra civil. Só não sabe de que lado eles lutam. E lamenta: antigamente era mais fácil reconhecer quem era o inimigo. E eles eram todos britânicos.

Tudo se confunde e se complica quando começamos a nos matar entre iguais. A guerra, mostra o diretor, é resultado do cansaço — e os clichês sobre o "outro" que não conhecemos não se sustentam. O perigo é quando deixamos de nos reconhecer.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL