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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sucesso nos corredores de Brasília, 'Ministério de Prazer' é 100% clichê

"Ministério de Prazer", de Lola Fox - Reprodução
'Ministério de Prazer', de Lola Fox Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

19/02/2023 04h00

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Foi-se o tempo que política era só tema de editoria capaz de despertar paixões apenas entre entre os retratados e os autores das notícias.

Naquela época, nem tão distante assim, nada poderia ser mais brochante do que, no meio de uma roda de conversa, alguém soltar qualquer comentário a respeito de senadores e ministros do Supremo.

Era pedir para ficar quieto no canto, isolado e sem amigos, durante toda a festa.

Alguma coisa mudou no momento em que ficou mais fácil escalar os 11 ministros do STF do que os pontas da seleção. No país do futebol, a inversão representou a abertura de um campo de "multiverso" que nunca mais se fechou.

Um amigo, saudoso das tendências e referências pop dos anos 1880 e 1990, costuma brincar que, se as revistas eróticas ainda existissem, elas hoje apostariam as fichas não mais em dançarinas de programas de auditório ou esportistas com bigode, e sim nas musas e musos do Congresso.

Ao lado dos destaques, se as bancas de revista ainda vendessem revistas, ele visualiza uma profusão de livros das coleções "Sabrina", "Julia" e "Momentos Íntimos" inspirados no noticiário de Brasília.

Esse amigo talvez não saiba, mas isso já acontece ao vivaço — não em papel impresso, mas em plataformas online.

No Kindle, por exemplo, entre obras de títulos sugestivos como "Prometido pra herdeira", "A Bela e o Mafioso" e "Uma família de aluguel para o magnata", desponta como fenômeno de vendas o e-book "Ministério de Prazer — O Ministro do STF e a Filha do Senador Patriota", de Lola Fox, pseudônimo de uma misteriosa autora de ficção erótica.

Na obra da nossa Elena Ferrante do "soft porn" — nem tão soft assim —, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real não é mera coincidência.

A começar pelo nome do protagonista. Alexandre Cássio de Alencar, o "Xandão", é descrito como um ministro do Supremo que ganhou fama na internet por "frustrar arquiteturas políticas de extrema direita e defender a democracia como guardião da Constituição Federal de 88".

O livro flerta com alguns (muitos) pecados, mas não fica em cima do muro ao desnudar o moralismo com pés de barro que pautou as últimas eleições. Desnudar, aqui, é em sentido literal.

"É vigiando e punindo que se torna possível dificultar a condução da extrema direita nesses atos antidemocráticos e de vandalismo", filosofa o herói da história logo nas páginas iniciais.

Perseguido por comandar as investigações que mandaram para a prisão "deputados e senadores corruptos" beneficiados pela "mamata do antigo governo", certo dia ele recebe a visita de uma ex-namorada preocupada com os rumos dos inquéritos sobre "rachadinhas" em gabinetes parlamentares.

Eva Campobelli, como o título sugere, é a filha sedutora do "senador patriota". Flávio é o nome do sem-vergonha.

A negociação para barrar a investigação contra o pai serve para testar até onde vão os princípios do ministro, que em uma das cenas, lamenta não ter cabelos para puxar diante da tensão.

A partir dali o livro é uma sucessão de trocadilhos entre mamatas e mamadas e clichês de filme erótico disponibilizado não no Kindle, mas no Xvideos, onde proliferam histórias igualmente liberais nos costumes e conservadoras na estrutura sexista.

Eva, como o nome sugere, é a encarnação da figura tentadora com voz infantil, fútil e ambiciosa, capaz de fazer qualquer coisa para manter a família e o futuro marido, um deputado novato de nome Nicolas, longe da caneta do galã da história. Ah, sim: o Nicolas da história seria um homossexual enrustido que, a exemplo da futura esposa-troféu, é um dos estandartes do conservadorismo nacional.

A fantasia de Eva, ex-aluna de "Xandão" no curso de Direito, é despida quando a porta do gabinete do ministro é trancada.

Tentado pela moça da maçã, o ministro tem o desafio de provar que é "homem" sem abandonar o rigor processual inscrito nos papéis espalhados em sua mesa.

"Putinha" e "safada" são alguns dos apelidos carinhosos do ministro pegador e incorruptível para a visita. É tanto pronome de tratamento a serviço do fetiche masculino que fica difícil acreditar que o livro tenha sido escrito por uma mulher.

Depois de um certo buzz nas redes sociais, "Ministério de Prazer" desponta entre os mais vendidos da seção de política, literatura e ficção do Kindle. Até a finalização deste texto, havia recebido nota 4,1 (de 5) entre os leitores.

"Entretenimento certinho no que foi proposto", escreveu uma leitora.

"Li numa sentada", disse outra, sem atentar sobre a paronomásia. "Xandão merece um amigo que o desestabilize da maneira certa."

"Péssimo e de mau gosto. Romance e política, ainda mais de esquerda, não combina (sic)", escreveu um leitor anônimo.

Divididos no espectro político, (e)leitores de direita e esquerda tendem a concordar em ao menos uma virtude da obra, que pode ser adquirida por R$ 1,99 na plataforma (assinantes do Kindle não pagam): nenhuma árvore foi derrubada para dar corpo às 60 páginas disponíveis como ebook.

Curtinho, o livro termina antes que os leitores entrem em estágio avançado de sofrimento. A natureza agradece.