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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Acusados de golpe em Scarpa abraçam nas redes o lema Deus, pátria e família

Gustavo Scarpa, do Palmeiras, em ação na partida contra o América-MG, válida pelo Campeonato Brasileiro - André Ribeiro/Futura Press/Estadão Conteúdo
Gustavo Scarpa, do Palmeiras, em ação na partida contra o América-MG, válida pelo Campeonato Brasileiro Imagem: André Ribeiro/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

14/03/2023 04h00

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Até poucos dias atrás, a imagem que a torcida do Palmeiras guardava de Willian Bigode era a do atacante disposto a quebrar a perna para deixar um companheiro na cara do gol. Foi o que fez o jogador para alcançar a bola que morreu no fundo das redes, pelos pés de Deyverson, no duelo contra o Vasco da Gama, em 25 de novembro de 2018. A vitória por 1 a 0 garantiu a taça do Campeonato Brasileiro à equipe.

Desde a semana passada, essa imagem começou a ser manchada com a revelação de que o atacante, hoje no Fluminense, intermediou o contato de antigos colegas do clube com uma empresa de criptomoedas que prometia muito e entregou nada.

Entre os amigos estava o meia Gustavo Scarpa, que confiou em Willian e investiu cerca de R$ 6 milhões num fundo agora investigado como esquema de pirâmide. Ao menos dois jogadores do atual elenco palmeirense também acreditaram na conversa.

Scarpa, que hoje joga na Inglaterra, desconfiou que caiu num golpe quando quis resgatar o montante investido e foi solenemente enrolado pelos proprietários da Xland, uma empresa localizada no Acre e que dizia ter R$ 2,1 bilhões em pedras de alexandrita como lastro e garantia de bom negócio.

Willian Bigode era sócio da Xland por meio de uma outra empresa. A suspeita é que ele ganhava uma comissão por cada cliente indicado para a Xland.

Willian diz que é tão vítima quanto os ex-colegas de Palmeiras, e que também perdeu uma bolada com os sócios.

A história foi destrinchada numa longa reportagem do "Fantástico", da TV Globo, no último domingo (12).

Não é preciso ser especialista em criptomoedas para perceber que Scarpa, ao cobrar uma posição dos empresários (e o seu dinheiro de volta), foi tratado como criança que passeia no shopping e ouve "na volta a gente compra" dos adultos bons de lábia.

Scarpa, quando caiu na conversa, era o principal jogador em atividade do esporte mais popular do país. Ele foi peça fundamental na campanha do título brasileiro de 2022.

O meia tinha assessores e visibilidade suficientes para colocar a boca no trombone, caso se sentisse lesado num negócio como aquele. Foi o que fez.

A desfaçatez dos interlocutores nas conversas registradas e encaminhadas ao "Fantástico" leva o espectador a se questionar: se alguém fez o que fez com um atleta famoso e reconhecido, imagina o que fariam, se já não fizeram, com quem não tem os mesmos canais para publicizar o engodo?

Em um dos áudios a que a reportagem teve acesso, Scarpa pede ajuda a Willian e escuta que não tem muito o que fazer, a não ser orar.

Parece um detalhe na trama toda, mas não é.

Um dos contrassensos do mundo hoje, baseado em relações, investimentos e compartilhamento de afetos pelos meios digitais, é que nunca fomos tão desconfiados de tudo e de todos. Ao mesmo tempo, nunca corremos tantos riscos de cair em golpes eletrônicos — as pirâmides de barões e faraós de criptomoedas são só a ponta do iceberg.

Até a situação chegar onde chegou, uma relação de confiança foi construída entre atletas e empresários de olho nos rendimentos de quem sonha em manter o padrão de vida elevado ao fim da curta carreira. Junta-se ali a fome com a vontade de enriquecer.

Mas nem só de lábia vive uma relação de confiança prestes a terminar em decepção.

Na ponta da cadeia (ou da pirâmide) estavam empresários que assumiram personas públicas que, aos olhos do grande público, pareciam acima de qualquer suspeita: eles se mostravam pessoas religiosas, revoltadas com a corrupção e dispostas a lutar por um país melhor.

A ostentação da fé, ali, parece ter servido como ferramenta para afastar todo tipo de desconfiança sobre os interesses privados de quem em público vendia riqueza e lucro fácil, não exatamente nessa ordem.

Jean Ribeiro, um dos sócios da Xland, posa como pai de família em sua página no Facebook. Sua foto de perfil simula um dos braços de Jesus Cristo crucificado e uma inscrição em inglês que significa "Na cruz eu dobro meu joelho onde seu sangue derramou por mim".

Dias atrás, comentando uma postagem que criticava o parlamentar, Ribeiro saiu em apoio a um deputado bolsonarista de Mato Grosso do Sul que defendeu a leitura de "Minha Luta", de Adolf Hitler, na tribuna — com um exemplar nas mãos.

Gabriel Nascimento, o outro sócio, tem a conta trancada no Instagram, mas em sua descrição é possível ver que ele se define como um homem casado, trader especialista em "crypto" e que vive "por Cristo".

Ambos têm fotos em manifestações de apoio a Jair Bolsonaro (PL), ex-presidente que antes de deixar o cargo moveu meio mundo para ficar com R$ 16,5 milhões em joias presenteadas pela Arábia Saudita.

Toda vez que é pego em presepadas mundanas, Bolsonaro e companhia sacam do coldre alguma frase feita sobre perseguição a Cristo para convencer os mais bem-intencionados dos eleitores que só faz o que faz em nome da missão, Pátria, Deus, família etc.

Muitas vezes a citação da tríade é suficiente para desarmar os espíritos desconfiados de suas reais intenções.

A fascinação por metais preciosos não é o único ponto em comum entre o ídolo e seus adoradores do Acre.

Desde a história da Grávida de Taubaté, o Brasil parece ter se tornado uma incubadora de estelionatários que vendem histórias fantásticas e promessas de enriquecimento fácil e se aproveitam da boa-fé alheia para enriquecer em nome de Deus. Se tem uma profissão em alta hoje no país é a de coach messiânico. Eles não caem do pedestal mesmo quando sobem a montanha e colocam uma multidão em risco.

Nas redes, houve quem notasse a semelhança do caso dos atletas palmeirenses com os golpes aplicados por Jordan Belfort, o picareta interpretado por Leonardo DiCaprio no filme "O Lobo de Wall Street". Mais fácil resolver um cubo mágico do que perceber a enganação de quem mistura fé e oportunidade no mesmo balaio.

Vítimas e algozes parecem não ter se atentado a uma passagem bíblica a respeito de falsos profetas. Eles se aproximam disfarçados de ovelhas, mas no seu íntimo são como lobos devoradores. Está em Mateus, capítulo 7, versículo 15.