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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Caso das 'malas trocadas' mostra como tráfico se infiltrou em aeroportos

Duas mulheres chegam ao aeroporto com as malas cheias de cocaína que receberiam as etiquetas das bagagens das brasileiras presas - Reprodução/ TV Globo
Duas mulheres chegam ao aeroporto com as malas cheias de cocaína que receberiam as etiquetas das bagagens das brasileiras presas Imagem: Reprodução/ TV Globo

Colunista do UOL

11/04/2023 04h01

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A veterinária Jeanne Paolini, 40, e sua companheira, a empresária Kátyna Baía, 44, foram parar em um presídio feminino em Frankfurt, na Alemanha, após terem as etiquetas de suas malas trocadas por criminosos no aeroporto de Guarulhos (SP).

A reconstituição das cenas, mostradas em detalhes no último domingo em uma reportagem do "Fantástico", da TV Globo, revela como suas bagagens foram desviadas em uma área restrita do terminal. No lugar, elas transportaram sem saber, segundo seus advogados, cerca de 40 quilos de cocaína.

Para embarcar, a droga passava como bola no meio-de-campo de uma equipe das mais entrosadas: chegou por meio de duas mulheres que nem sequer viajaram, foi despachada por uma funcionária da companhia aérea e embarcada com a ajuda de dois empregados de uma companhia terceirizada, que trocavam etiquetas por meio de sinais e comunicação por celulares. Os acusados da história parecem protagonizar um misto de "Aeroporto — Área Restrita" com o filme "Os Infiltrados", de Martin Scorsese. Coisa de profissional.

O grupo foi alvo de uma operação da Polícia Federal no último dia 4.

Um mês antes, as brasileiras detidas na Alemanha cruzaram o caminho da organização ao embarcar de Goiânia em direção a Guarulhos; de lá, elas seguiram para as férias na Europa. Segundo a PF, as passageiras não tinham conhecimento do conteúdo ilícito dentro das malas. "Em favor das brasileiras presas há uma série de evidências que levam a crer, de fato, que não há envolvimento delas com o transporte da droga, pois não correspondem ao padrão usual das chamadas 'mulas do tráfico'", informou a entidade em nota.

Apesar disso, a empresária e personal trainer Kátyna Baía e sua esposa seguem detidas em uma cela fria, sem janela e com as paredes escritas com fezes, segundo relataram ao Fantástico. Elas se queixam da demora da Justiça alemã para analisar as provas da inocência e também da falta de acesso a medicamentos de uso contínuo que estavam em uma das bagagens desviadas e que não reapareceram até agora — uma prova de que não passava de lenda o argumento das companhias aéreas de que pagar para despachar a mala resultaria em excelência no serviço.

Kátyna Baía descreve a situação como um pesadelo.

Ainda longe de um fim, a história até aqui mostra de forma didática como se estrutura silenciosamente a engenharia do tráfico internacional de drogas — com infiltrados, profissionalismo e cooptação onde menos se espera.

O problema, como se vê, escapa à compreensão rasa baseada na criminalização de usuários flagrados (e encarcerados) com pequenas quantidades de drogas e de territórios periféricos, alvos de tiroteios entre agentes de segurança e traficantes numa guerra declarada com poucos vencedores e muitos derrotados, a começar pelas vítimas das balas perdidas.

Enquanto isso, o espaço aéreo brasileiro já está dominado por funcionários de companhias aéreas e empresas terceirizadas cooptadas pelo crime (na casa de uma funcionária investigada, a polícia encontrou R$ 40 mil). Isso quando a droga não embarca em aviões de missões oficiais.

O esquema não começou ontem. Segundo o colunista do UOL Josmar Jozino, agentes policiais apuraram que entre 2019 e 2020, o golpe da mala trocada se repetiu ao menos 27 vezes só em Guarulhos.

Em uma dessas tentativas, ocorrida em janeiro de 2020, um funcionário estranhou a presença de um tratorista em uma área fora do setor onde trabalhava e avisou seus superiores. O tratorista estava prestes a deixar o local com duas malas recheadas de cocaína.

Quatro dias depois, o funcionário "delator" foi assassinado a tiros.

Tanto quanto a capilaridade do grupo, chama a atenção a forma como os envolvidos empurram o problema para o colo uns dos outros — um sintoma aparente do desmonte decorrente da privatização dos serviços aéreos.

Ao ser procurada pelo Fantástico, a concessionária que administra o aeroporto disse que o manuseio das bagagens é de responsabilidade da empresa aérea; a empresa aérea afirmou apenas que colabora com a investigação; o terceirizado flagrado pelo circuito interno trocando as etiquetas jurou que não faz parte de qualquer esquema criminoso e a empresa que o contratou se esquivou dizendo que "verifica os antecedentes criminais dos funcionários antes das contratações e que o tráfico de drogas é um problema de segurança pública".

No meio do imbróglio, as brasileiras que alegam inocência seguem presas na Alemanha na esperança de que a Justiça local ouça o que têm a dizer a polícia e o governo brasileiros. Um drama que poderia ser escrito por Franz Kafka se vivesse em 2023.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL