Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Lei de Gerson vira 'Lei de Bet' nas toscas propagandas de sites de apostas
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Já vi e revi a propaganda algumas dezenas de vezes e ainda peno para captar a mensagem.
Com gravata escura e terno cinza, da cor dos armários de um vestiário ao fundo, um campeão mundial de futebol, autor de gol do título da Champions League, olha para a câmera e ensaia um tutorial para quem quer se tornar um campeão.
A trilha sonora é uma música de suspense.
"Em primeiro lugar você deve ter um sonho. Sacrifique-se todos os dias por esse sonho. Se você cair, você se levanta. Uma vez. Duas vezes. Dez vezes. Quantas vezes forem necessárias. Seja sempre persistente. Pois em algum momento as oportunidades chegam. E depois de tudo isso, você está pronto para ser um campeão."
Neste momento a música é interrompida e murcha, como uma quebra de clímax. E o que se sobressai dali em diante é o som de um microondas avisando que o prato está aquecido.
Na cena seguinte, o ex-atleta está na cozinha, com um robe branco, contando que agora é o treinador dos melhores jogadores do Brasil: os que lançam a sorte em determinado site de apostas.
Se o meio é a mensagem, um especialista em semiótica poderia ver ali uma comunicação subliminar. Mas o que seria? Que, naquela plataforma de apostas, você fica rico antes do miojo ficar pronto? Que é possível cozinhar e manejar a sorte ao mesmo tempo? Que as promessas de dinheiro fácil não duram 30 segundos? Que estamos todos sendo cozinhados?
Realmente não consigo entender, mas desconfio que, em meio ao escândalo de manipulação de jogos, uma das primeiras medidas de regulação de sites do tipo passa pela qualidade das irritantes propagandas nos intervalos de programas esportivos.
Não é só a lisura das competições nacionais que está em jogo, mas a fama de celeiro de craques publicitários conquistada com o muque e uma coleção de leões de Cannes nos últimos anos.
Se não, como explicar que alguém tenha aprovado uma peça publicitária, igualmente onipresente, em que um zagueiro da seleção diz que em sua anunciada (e fantasiosa) volta ao Brasil não vai ter dancinha nem cabelo nevado. "Vai ter o que, então?", pergunta uma voz em off.
"Vai ter emoção!", grita o defensor, numa performance de líder motivacional digna do Prêmio Cigano Igor de Atuação.
Posso estar enganado, mas acho que os gênios do comercial entenderam que o público-alvo de seus anúncios eram apostadores saudosos do futebol-raiz e do joguinho moleque.
No elenco de embaixadores de sites do tipo, dá para montar uma seleção de antigos craques, inclusive a dupla do penta, Rivaldo e Ronaldo, que emprestam prestígio em comerciais de gosto duvidoso com mensagens que lembram os tempos em que os atletas, em busca de um dinheirinho extra, topavam de tudo, até comercial de cigarro.
Em 1976, pouco depois de erguer a Jules Rimet com a seleção brasileira no México, o ex-meio-campista Gerson virou palavrão ao dizer, num comercial de TV, que comprava os maços de certa marca porque gostava de levar vantagem em tudo.
A fala ensaiada, que deveria chamar a atenção para os preços daquela marca, resultou na promulgação da "Lei de Gerson", sinônimo de malandragem com a qual o ex-atleta, craque dentro e fora de campo, se bateu pelo resto da vida. Virou exemplo do que não se fazer.
Era um tempo em que tanto a publicidade quanto a preocupação com a imagem pública ainda engatinhavam no país. Ou talvez não tivesse ninguém para avisar que pegaria mal aparecer na festa em foto com bicheiro.
O que estranha hoje é que tanto os atletas (ou ex-atletas) quanto suas assessorias não tenham avisado que reputação não é ou não deveria estar atrelada ao que já pode ser chamado de "Lei de Bet".
No Brasil, a febre dos sites de apostas promoveu milagres como o da multiplicação de lan houses, um fenômeno de décadas passadas que hoje atrai "jogadores" sem conexão em casa ou habilidade para acessar sozinhos as plataformas. Tem como extrair mais suco de Brasil dali?
Tem.
Em reportagem publicada pelo TAB, um trader esportivo explicou por que o país se tornou um nicho vantajoso para essas empresas. Vivemos, afinal, em um país onde a maioria dos apostadores "não tem a mínima noção de educação financeira" e comete vários erros, "mesmo com pouco dinheiro". "É lucro certo para as casas", define.
Em um país empobrecido, onde o acesso à educação é ainda privilégio, nada parece mais promissor do que oferecer atalhos para a fortuna. Um atalho percorrido antes mesmo da marmita esquentar no microondas. Tudo uma balela promovida por quem usa a fé para enriquecer vendendo o que não passa de promessa.
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