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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Entre incitação ao ódio e 'piada' de Léo Lins, só a embalagem é diferente

O comediante Léo Lins precisou remover vídeo no YouTube em razão de ofensas a minorias - Reprodução/Instagram
O comediante Léo Lins precisou remover vídeo no YouTube em razão de ofensas a minorias Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

19/05/2023 04h00

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Por conta de um zum-zum no Twitter, soube que um comediante chamado Léo Lins precisou retirar de seu canal no YouTube um especial de comédia por ordem da Justiça.

A decisão revoltou a classe, da qual faz parte gente influente como Fábio Porchat, que saiu em defesa do colega e do seu direito a fazer piada ofensiva.

Porchat e companhia chamavam de absurda e inaceitável a censura pela qual passava o humorista.

Fui, então, conferir, a razão da celeuma. Em sua apresentação, o tal Léo Lins diz coisas do tipo: "Negro não consegue achar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim".

Não fossem as risadas ao fundo (sim, aparentemente alguém achou graça), seria difícil entender que aquela era uma piada. Parecia até aquela tia racista falando sério sobre a dificuldade em contratar empregados. A diferença é que no almoço da família ela não fica sem resposta ou constrangimento. Sempre tem alguém para avisar que ela seria algemada se falasse em público o que murmura no privado.

A mesma frase, dita em outro contexto (vamos supor, um tuíte, uma bancada de telejornal ou uma tribuna no Congresso), levaria o autor a enfrentar alguns problemas. Demissão, cancelamento de contrato, processo judicial. No mínimo.

Fosse um debate, alguém poderia questionar: o que você quer dizer exatamente com isso? Que pessoas negras são avessas ao trabalho? Que exploração de corpos negros era emprego? Ou motivo de risada?

Só que a fala odiosa de Léo Lins tem outra embalagem. Ela vem embrulhada sob o selo de piada. E, dentro desse invólucro, transforma seu autor num sujeito autodeclarado inimputável, como uma criança que não tem responsabilidade pelas consequências do que diz ou pensa, sobretudo diante de uma multidão.

Uma piada é uma piada, é verdade, mas ela não exime o humorista de expor à plateia as ideias que habitam seu universo mental. No de Léo Lins, pessoas negras vão ao inferno quando morrem e provocam situações cômicas. MC Kevin, morto após cair da sacada, chegaria achatado a uma festa promovida pelo demônio e passaria por debaixo da porta. E Marielle Franco, vereadora assassinada a tiros no Rio, sujaria o chão de Asmodeu se tomasse algum drinque, deixando a bebida "tudo vazando pelos furos".

Quem, porventura, retirar o invólucro de piada sobre uma ideia bastante clara de mundo corre o risco de se deparar com um crime. Mas é só uma brincadeira, eles dizem, e se há razão para alarde ou protesto é só porque os ofendidos e as autoridades estão pedindo medidas para conter sua difusão. Mesmo entre os humoristas que costumam manifestar posições progressistas, como Fábio Porchat. A solidariedade entre os representantes de classe, corpo e cor de pele é maior. Nenhum deles está sendo achincalhado por não ter emprego ou ouvir que a tataravó reclamava à toa quando nascia com "emprego" garantido na senzala.

Léo Lins já foi criticado e/ou processado por fazer piadas com pessoas com deficiência, entre elas uma criança com hidrocefalia, em cuja cabeça habitaria, segundo ele, o único lugar com água em sua cidade, no interior do Ceará. A piada causou a sua demissão do SBT. Mesmo Silvio Santos tem ainda alguma preocupação com a imagem de sua empresa.

Lins também foi processado após ofender a mãe de um menino autista que em suas redes ousou dar um toque sobre o uso inadequado da condição neurológica como adjetivo. O piadista respondeu com um manual de instruções sobre como a mulher deveria proceder diante de uma "piroca". Não era engraçado?

Tirando o selo de piada, fica até parecendo que o comediante não gosta nem de mulheres, nem pessoas negras nem de crianças com deficiência. Não a ponto de sentir qualquer remorso por enxovalhar alguém antes de correr ao guarda-chuva de expressões como "era só brincadeira" — o mesmo de onde tiram o "estava sob efeito de remédio".

"Perturbador" era o nome do espetáculo do comediante, e a única piada pronta é que o protagonista realmente parece um sujeito perturbado.

Para a turma, qualquer absurdo dito sob o selo do deboche é aceitável e não deveria ser perturbado. Não mesmo? E se alguém resolvesse tirar frases sobre pessoas com deficiência, negros e judeus do livro "Minha Luta" e montasse um show de comédia?

O importante, afinal, é não perder a piada, mesmo quando ela funciona como o último reduto dos canalhas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL