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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Sentenças' contra médico que receitou sorvete são sintoma de doença social

Médico receitou sorvete de chocolate e "Free Fire" após paciente relatar sintomas gripais - Arquivo pessoal
Médico receitou sorvete de chocolate e 'Free Fire' após paciente relatar sintomas gripais Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

02/06/2023 04h01

"Hoje tá liberado tomar sorvete", disse a dentista para nosso filho pouco antes de extrair seu dente, na semana passada.

A brincadeira era parte da estratégia para quebrar a tensão que o menino, de 9 anos, sentia durante o dia todo — e na véspera e na antevéspera.

Para uma criança, nunca é fácil encarar o ambiente anódino de um hospital, unidade de atendimento ou consultório.

Os vaivéns de rostos sisudos e preocupados de outros pacientes ou acompanhantes na área de recepção já são suficientemente assustadores em qualquer idade. Não tem coisa pior do que pedir ajuda a um especialista e esbarrar num muro de cara amarrada, seca, fria, como o metal do estetoscópio.

Por isso demorei a entender a razão do estardalhaço nas redes sociais desde que uma mãe decidiu compartilhar sua indignação após levar o filho ao médico em Osasco (SP) e receber uma receita com alguns medicamentos e duas indicações inusuais: joguinho de celular e sorvete de chocolate. Duas vezes ao dia.

Nem tanto pelo tratamento heterodoxo, a receita parecia elogiável por outras razões. As indicações vinham em letras de máquina, como falamos no interior, e não em garranchos que atacam os esforços cursivos de boa parte da classe. E nela não havia indícios do famigerado kit covid.

A criança, segundo a mãe, apresentava febre, tosse, dor de garganta, vômito e não conseguia comer. Mesmo assim, garante que ela não foi examinada: o médico quis saber apenas se o menino preferia sorvete de morango ou chocolate.

A resposta balizou o receituário e deixou a mãe confusa se estava diante de um deboche ou de um tratamento conservador.

A história, contada assim, foi parar no tribunal das redes e levou à demissão do plantonista, além de um processo no Conselho Regional de Medicina. Foi o suficiente para que o tribunal decidisse levar a julgamento também a mãe, responsável por aprofundar os índices de desemprego no país.

A demissão foi revertida, mas era tarde: a medida drástica, assim como o sorvete, já tinham rachado o país.

Para uns, a punição era justa. Receitar sorvete como remédio para criança com dor de garganta era quase uma tentativa de homicídio com dolo. Se viva estivesse, minha avó, que costumava associar tosse com "pisar no gelado", diria que o mundo anda mesmo de ponta-cabeça. Por sorte ela não conheceu o Twitter.

Outros viram no episódio uma extensão das discussões sobre limites do humor. Ou da falta de limites, já que as piadas ruins povoam agora até receita médica, um dos últimos redutos da impessoalidade que deveria pautar a relação entre plateia — no caso o paciente — e o autointitulado humorista — no caso, o médico.

Especialistas foram chamados a discutir os benefícios e malefícios de cubos de gelo e pastilhas para a diminuição da dor de garganta. Mas os estudos não fizeram arranhão nas convicções dos formandos da Faculdade de Medicina do Twitter.

Como no filme "A Separação", de Asghar Farhadi, tudo ali, inclusive as opiniões, era decidido por frestas de uma história contada por perspectivas limitadas que suprimem nuances e contextos de uma mesma história. Essa doença é social.

"Tudo se resume, se presume, se reduz", diria o poeta.

Quem não gostava do prefeito da cidade viu no episódio uma chance para delatar o caos em que vive a saúde do município. O prefeito, para não passar recibo, entrou em campo e bancou a recontratação do doutor. Disse que a brincadeira era parte de um protocolo humanizado de atendimento.

Se a moda pega, o Brasil precisará importar sorvete de outros países para dar conta da demanda.

No meio do arranca-rabo, um problema mais grave surgiu sem causar a mesma estranheza: o médico usava carimbo como neurologista, mas não tem essa especialidade em seu cadastro no Cremesp. O desencontro só foi observado devido à repercussão da receita. (Não se sabe se antes ou depois de alguma operação.)

Ainda assim o vaivém no destino do médico, julgado, condenado e depois absolvido no calor da repercussão, pareceu sintomático desses tempos de apedrejamento em rede.

Um amigo prestes a se formar em medicina me disse que é difícil analisar o caso com base apenas nos relatos que vieram a público. Mas que não dá para dizer que receitar sorvete e "Free Fire" é parte do "tratamento humanizado" — a orientação em atendimento primário, aliás, vai contra as duas prescrições, justamente para levar em conta problemas com açúcar e obesidade e tempo de tela.

O médico faria melhor, afirma o meu amigo, se pedisse para a criança se hidratar e ficasse atento para o caso de a gripe ser sintoma de faringite, uma infecção bacteriana mais séria.

"Se for verdade o que a mãe diz, e ele realmente não olhou direito a criança, sorvete e joguinho não humanizam nada", diz. "Se um estranho não deve oferecer isso para alguém, por que um médico poderia?", questiona ele, que considera a demissão, em todo caso, um exagero.

Concordamos.