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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dá pra descansar em paz sendo 'assombrado' por IA e youtuber de cemitério?

Cemitério da Consolação, em São Paulo - Camila Svenson/UOL
Cemitério da Consolação, em São Paulo Imagem: Camila Svenson/UOL

Colunista do UOL

11/07/2023 04h01

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Desconfio que o conceito de "descansar em paz" deixou de ser um objetivo em vida desde que alguém do Plioceno decidiu repousar depois de uma semana de labuta e recebeu uma visita inesperada no sétimo dia.

Atire a primeira pedra quem não saiu catando meias pelo chão ao ouvir as primeiras palmas em frente de casa e se deparou com o primo de segundo grau que estava passando por ali e resolveu se convidar para o café da tarde.

O medo da visita inesperada implantou um estado de alerta permanente a todo aquele que (ainda) se move. A vida, em resumo, é trabalhar cinco ou seis dias da semana e faxinar a casa sempre que possível: mais vale o esforço do que o risco de ouvir o cunhado ou a cunhada perguntando quanto tempo não se lava as janelas nessa casa ou se não é a hora de contratar alguém para organizar nossa estante por onde se espalham livros, cabos de celular e bolacha cream cracker.

Não, não existe descanso nessa vida, mas nessas horas costumamos respirar fundo sob a sombra macabra de um velho ditado e nos conformar: "Vamos ter tempo de sobra para descansar na eternidade".

Deveria ser um ditado amplo, geral e irrestrito, mas ultimamente só tem valido para quem passou pela vida despercebido, sem fama, riqueza ou grandes marcas dignas de nota.

Caso contrário o risco é seguir fazendo hora (e jobs) por aqui em propagandas com ajuda de inteligência artificial e outros recursos.

Na esteira das novidades, despontam profissões do futuro para atender às demandas do lado de cá. Não duvido que um desses ofícios sejam representantes mediúnicos que atuarão como prepostos de nossos interesses na terra para pelo menos dar um toque aos produtores audiovisuais não carregarem tanto na maquiagem do holograma. Não há prova de que não exista vaidade depois da morte.

Não bastasse essa preocupação, descubro agora, pelo jornal, que já tem gente acumulando filas de inscritos em canais dedicados a visitar túmulos de personalidades famosas. Nessa categoria não estão apenas artistas. Estão também assassinos, assassinados e gente que passava discretamente pela vida até os 45 minutos do segundo tempo, quando alguma tragédia encurtou a estadia e alçou algum nome às manchetes. Eis o pior dos mundos: ser lembrado justamente por aquilo que não queremos.

Até pouco tempo, podíamos ao menos imaginar que, passada a comoção, poderíamos pensar em descansar em paz após alguém mais interessante bater as botas.

Agora, com os youtubers caçadores de túmulos e lápides (um deles tem mais de 150 mil inscritos), já não basta, ao longo da vida, lidar com as questões mais profundas da existência, da finitude, da dor de não saber se cumprimos a missão ou vamos mesmo dessa para melhor. Agora temos de nos preocupar em deixar a casa eterna arrumada para caso algum videomaker decida nos visitar sem avisar (mais ou menos como o parente que chega sem avisar no domingo).

Nos vídeos, um dos temas abordados é o estado de conservação do sepulcro. E aí que não basta passar a vida toda comendo sardinha e arrotando peru nas redes; agora temos que pensar em como queremos ser vistos pelas visitas enquanto somos literalmente comidos pela terra.

"Pô, esse tava mal hein"; "Nossa, coitado, custava botar um mármore em cima desse concretão?"; "Olha lá: deixou tudo para os filhos e agora não tem um pra passar um paninho na lápide de vez em quando."

Sério, eu morreria (duas vezes) de vergonha.

Uma coisa é conviver com um ou outro visitante que passa em nossa alameda eterna no dia de Finados e deixa algum comentário indesejado. Outra é parar no YouTube e viralizar em um momento que, digamos, não estamos muito apresentáveis (aos interessados póstumos: vocês podiam ter feito isso no nosso auge, quando estávamos bonitões, com mais pele que osso, os cabelos bem aparecidos e podíamos ao menos escolher nossa camisa favorita).

Pior ainda é, depois de tanta demanda em vida, virar mártir e endereço de romarias e pedidos por milagre, um dom, até onde eu sei, distante do meu job description nos tempos em que zanzava por aqui.

O trabalho dos youtubers sommeliers de sarcófago parece encarnar (com o perdão do trocadilho) o protagonista do livro "Todos os Nomes", de José Saramago, cujo hobby era colecionar recortes de jornais sobre celebridades. Um dia ele se depara com uma notícia sobre uma pessoa comum, que já tinha morrido, e começa a procurar obsessivamente informações sobre ela. A busca chega ao cemitério, onde alguém voluntariamente faz o trabalho de trocar as lápides de certos mortos: tudo para garantir que quem não queria ser encontrado em vida não fosse amolado também na morte.

Taí outra possível profissão do futuro.

Se não teve apólice de seguros capaz de garantir em vida o sossego prometido na propaganda, que ao menos na morte possamos descansar, longe das visitas, em paz.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL