Matheus Pichonelli

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Opinião

Carmona dedicou gol do título a mãe de amiga e, sem saber, jogava pelo pai

Olga Carmona fez o gol do título da Espanha na Copa do Mundo feminina, no domingo (20), e na comemoração mostrou uma camisa escrita "Merchi".

Era uma homenagem à mãe de sua melhor amiga, que havia morrido recentemente.

"Comemorei o gol com a camisa dela e ela não pode estar aqui, mas dedico esse gol para ela também", explicou a lateral após o título inédito do Mundial disputado na Austrália e na Nova Zelândia.

Treze anos antes, na África do Sul, o meia Andrés Iniesta também lembrou de um amigo em meio à catarse por marcar o gol da vitória contra a Holanda, já na prorrogação da final do Mundial masculino. O gol solitário, também num chute cruzado, mas de pé direito, garantiu o título inédito da Copa para a Espanha.

"Dani Jarque sempre conosco", dizia a camisa do meio-campista, em homenagem ao zagueiro catalão, morto 11 meses antes, aos 26 anos, vítima de um ataque cardíaco.

Muitos anos depois, Iniesta contaria em um documentário que a morte do amigo, que atuava pelo Espanyol e estava no auge da carreira, foi um soco no estômago e o nocauteou. "Tudo era sombrio, eu via tudo escuro", disse o meia, que nasceu em Fuentealbilla, na província de Albacete, mas se identifica como espanhol e catalão, terra de seu amigo.

O quadro depressivo o levou a pedir para dormir com os pais por um tempo. O craque do Barcelona tinha 25 anos.

As homenagens foram uma forma de levar a campo, para uma festa, quem não pôde assistir à conquista.

No caso de Carmona, o drama tinha ares de um filme de Pedro Almodóvar. Ela liderou uma equipe rebelada contra a comissão técnica e dirigentes esportivos que não respeitavam as atletas nem na hora da premiação. Seu pai havia morrido na antevéspera da partida. A família decidiu preservá-la da notícia. Ela entrou em campo e decidiu a partida sem saber que, entre milhões de espectadores, um deles já não vibrava por ela.

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(Este é um pesadelo para todos os que vivem ou precisam passar um tempo longe dos familiares a trabalho. Será que está tudo bem MESMO quando perguntamos isso ao telefone? Em que momento a preocupação em nos preservar da má notícia não é uma quebra de confiança que nos fará desconfiar de tudo dali em diante até o resto da vida?)

Volto aos homenageados pelos espanhóis em seus dias de glória.

A cultura ibérica, de forte influência católica e muitos ecos no Brasil, reserva uma menção especial às pessoas que perdemos nos momentos solenes.

Na oração eucarística, damos os nomes e lembramos de irmãos e irmãs "que morreram na esperança da ressurreição e de todos os que partiram desta vida". Pedimos que sejam acolhidos na luz da face divina.

Mas fazemos isso com pesar e contrição, pouco antes da comunhão.

Nossos mortos depois são lembrados nas missas de sétimo dia, um mês, um ano e outras efemérides. Vestimos roupa de luto toda vez que falamos sobre eles.

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O futebol subverte essa lógica ao colocar a morte no centro da festa. Foi o que fizeram Carmona, órfã ainda sem saber de uma grande perda, e Iniesta. E foi o que fizeram os jogadores brasileiros que, após a conquista do tetracampeonato, nos Estados Unidos, rezaram e correram para o meio-de-campo com uma faixa escrita: "Senna, aceleramos juntos. O tetra é nosso."

O tricampeão de Fórmula 1 havia morrido cerca de dois meses antes, em um acidente em Ímola, na Itália.

Em "Viva — a Vida é uma festa", premiadíssima animação de Adrian Molina e Lee Unkrich, a experiência de quase morte do jovem Miguel o leva a descobrir que não morremos quando deixamos esta Terra, mas sim quando as pessoas desta Terra esquecem de quem já se foi.

A memória é uma forma de manter vivos os que amamos. A perda dela é a morte da morte.

O filme é um registro da tradição mexicana para o Dia de Los Muertos, uma data festiva originada na cultura asteca muito antes da chegada dos espanhóis ao continente. O sincretismo resultou no evento que conhecemos hoje, com muitas cores e caveiras estilizadas.

Mesmo que tenham se manifestado no campo individual, as homenagens dos atletas aos amigos nos lembram da importância do registro da memória para a construção das subjetividades também no campo coletivo, como é o esporte. Lá, a morte deixa de ser um tabu — e seus mortos são também chamados à festa.

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"Saiba que estou com você. E essa é a única maneira que eu posso estar", diz a música "Lembre de mim", de Héctor Rivera, cantada pelo protagonista na animação da Disney.

Merchi, Jarque, Senna e o pai de Carmona, mesmo que a filha ainda não soubesse, eram (e são) parte da festa que não puderam assistir em vida. A memória deles não foi esquecida nos dias tristes. Nem nos dias de glória.

Não há título maior que esse.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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