Matheus Pichonelli

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Opinião

Com Faustão, doações no Brasil têm tudo para crescer. Rede social é desafio

Desde que o Hospital Albert Einstein anunciou a indicação de transplante cardíaco, em 5 de agosto, até o último domingo (27), quando aconteceu a cirurgia, o apresentador Fausto Silva conseguiu um feito e tanto: despertou atenções e fez um país inteiro discutir doações de órgãos.

Se isso é bom ou ruim, ainda não dá para saber.

Até pouco tempo, a história ensinava que casos de comoção, como agora, produziam efeitos positivos. Foi o que aconteceu no início dos anos 2000 quando o ator Norton Nascimento decidiu falar publicamente sobre um problema congênito que o levou a ficar 53 dias internado à espera de uma cirurgia para correção de um aneurisma da aorta.

Em dezembro de 2003, ele foi submetido a um transplante de coração. Era o final feliz de uma novela de milhões de espectadores que acompanhavam e torciam por ele.

Até sua morte, em 2007, ele havia se tornado o rosto de uma série de campanhas em defesa da doação de órgãos.

Em 2003 e 2004, quando o assunto estava na vitrine, as taxas de transplante no país cresceram 8,3% (4.435 procedimentos) e 11,63% (4.951), respectivamente, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Nos dois anos seguintes, houve quedas de 4,48% e 0,59%.

"Meu filho salvou a vida de seis pessoas", me disse, certa vez, o oficial da reserva da Marinha Bráulio de Freitas Oliveira.

Seu filho, o médico Ricardo Veiga Oliveira, tinha 41 anos quando sofreu um acidente de automóvel, a caminho de Angra dos Reis (RJ), em 17 de dezembro de 2003. Ele foi socorrido e levado a um hospital de Copacabana, no Rio, onde teve a morte cerebral anunciada. "Meu filho era um médico querido, trabalhava com pessoas carentes. Por tudo o que ele havia feito, tinha certeza de que seria o primeiro a autorizar a doação", relembrou Oliveira na ocasião.

O coração, o fígado, os pulmões, os rins e as córneas de Ricardo foram doados a seis pacientes na fila de espera. Norton Nascimento foi quem recebeu o coração (não é comum o contato entre receptores e as famílias de doadores, mas o ator fez questão de investigar e conhecer a família do médico, convidando-os, sempre que possível, para assistir suas peças).

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O Brasil é um dos países com o maior sistema público de transplantes de órgãos do planeta. Mas os índices de doadores por milhão de habitantes é baixo perto de nações como os Estados Unidos, onde as taxas superam 30 doadores por milhão. A do Brasil é de 16,5, sendo que o índice de potenciais doadores é imenso (61,9 por milhão na média nacional e 90 em estados como Paraná, Santa Catarina, Rondônia e Sergipe).

Fatores como desigualdades regionais e falta de conhecimento adequado sobre o assunto são grandes entraves até hoje. O Amapá, por exemplo, sequer notificou potenciais doadores em 2022, segundo a associação.

Uma médica já me disse ter ouvido de familiares de um paciente que eles não autorizavam doação porque não queriam que a pessoa chegasse "incompleta" no céu.

Segundo a ABTO, as taxas de doação e transplante no pós-pandemia de covid andam em marcha lenta no Brasil. Em 2022, a taxa de negativa familiar (47%) foi 18% superior à taxa de 2019 (40%) e a mais alta dos últimos dez anos. E a taxa de contraindicação médica, que era de 15% em 2019, chegou a 23% no auge da pandemia em 2021.

Conversar com a família sobre o desejo de ser doador é fundamental para balizar decisões do tipo, que precisam ser tomadas rapidamente. Esse exercício simples tende a se tornar comum à medida que casos como o de Faustão ganham visibilidade. ("Ele foi salvo porque alguém teve a grandeza de autorizar a doação de seus órgãos. Quero fazer o mesmo se algo acontecer comigo", já ouvi mais de uma vez de pessoas próximas nas últimas horas).

O caso de Faustão tem tudo para fazer alavancar as doações de órgãos em um país que ainda trata a questão como tabu, por desinteresse ou total falta de informação.

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Mas há uma mudança preocupante no cenário em relação a 2007, quando Norton Nascimento fez do próprio drama uma causa pública: naquele ano, não havia tanta gente se informando apenas com o que lê e vê nas redes sociais.

Mal havia sido divulgada a notícia da cirurgia de Faustão, muita gente correu para as redes lançar desconfianças infundadas sobre um suposto privilégio do apresentador na lista de doações.

Por sorte, as redes que desinformam são as mesmas que combatem a desinformação.

Em uma postagem com mais de 1 milhão de visualizações no Instagram, o médico Daniel Becker falou sobre os perigos de comentários equivocados sobre o caso de Faustão. Ele lembrou que difamar um sistema que funciona bem e é justo acaba minando a sua credibilidade e desmobilizando potenciais doadores.

Becker criticou as muitas lendas urbanas que rondam o tema no país e ilações irresponsáveis sobre pagar para receber órgãos ou "furar a fila" — algo impossível em uma lista organizada pelo SUS, totalmente gratuita, e que se baseia em uma série de critérios técnicos sobre compatibilidade e urgência para definir os beneficiários.

Durante a pandemia, as redes sociais se tornaram um alto-falante para negacionistas espalharem todo tipo de desinformação a respeito de vacinas e medidas para conter a circulação do vírus da covid-19. Foi, de longe, uma das maiores barreiras para impedir o morticínio. Como sempre, é bom ouvir quem estuda e entende o tema antes de espalhar bobagem, mesmo que ela pareça fazer sentido.

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Mas, nessas horas, o que não falta é sanitarista, e agora, cirurgião que tirou o diploma na Faculdade do WhatsApp.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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