Matheus Pichonelli

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Opinião

Minha última crônica

Tem uma cena no filme "A Pior Pessoa do Mundo", de Joachim Trier, em que o personagem de Anders Danielsen Lie, no alto de seus 40 e tantos anos, descreve para a ex-namorada, interpretada por Renate Reinsve, recém-chegada aos 30, como era viver num tempo sem internet e celulares.

"Sei que pareço um velho chato, mas pensei muito nisso: que meu mundo, em grande parte, desapareceu. A gente pegava o ônibus até algum lugar, ia às lojas, eu ficava olhando os discos e os quadrinhos. É desses lugares que me lembro quando fecho os olhos. Cresci com objetos culturais físicos, e eles atraíram meu interesse. Podíamos nos cercar deles, segurar com as mãos, sentir o peso. Passei a minha vida colecionando coisas e experiências. E continuei assim durante uns 20 anos. Isso agora é tudo o que tenho: um monte de conhecimento e memórias de coisas completamente inúteis com que ninguém se importa."

Eu queria escrever sobre este filme, que entrou recentemente no catálogo da Amazon Prime, na coluna do último domingo (27). Mas deixei para depois.

Pensei então que esta coluna, em que me despeço dos leitores depois de pouco mais de seis anos, poderia ser uma oportunidade para falar finalmente sobre o longa que tanta gente me indicou nos últimos dias. Ele retrata como transitar em um mundo de tantas possibilidades e pouca aderência transformou as relações mais simples em convívios complexos, no campo afetivo, profissional, humano, enfim.

Não vamos dar spoiler, mas o diálogo citado acima é a metáfora de uma despedida física.

Quando criança, esperava os pais de meus amigos, que nos levavam para a escola, na guarita do prédio onde morava em Araraquara (SP). A mesa do porteiro tinha um interfone e uma pilha de jornais. Os moradores recolhiam um a um ao longo do dia. Ou pediam para que eles fossem enviados até seus andares pelo elevador.

Durante a espera, eu folheava as notícias de esportes, as estatísticas, as análises e as projeções de cada rodada. De caderno em caderno, chegava até a coluna da sucursal do Rio da página A2 da Folha de S.Paulo, em que Carlos Heitor Cony escrevia sobre temas aparentemente banais da vida urbana.

Aquele espaço era um espaço de prestígio. Havia sido ocupado antes por Otto Lara Resende. E hoje é habitado por Ruy Castro.

Por anos aquela foi minha coluna favorita do jornal. O momento mais esperado do dia. Tinha um caminho lá. Quando gostávamos muito de um texto, ele era recortado e guardado numa pasta. Alguns poderiam virar quadros.

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Não era bem um espaço para notícias. Nem para literatura. Era uma área de transição que, na mesma página, levava até os assuntos ditos sérios, escritos em Brasília e São Paulo, logo acima.

Certo dia, em 2002, saí de uma aula de jornalismo para fazer minha matrícula no curso de ciências sociais. No corredor da faculdade, um futuro colega perguntou por que eu queria fazer dois cursos simultâneos. Respondi que precisava de alguma bagagem para quando tivesse uma coluna "como aquela do Cony". Ele, com razão, riu. Todos aqueles autores que me inspiravam já tinham uma pilha de livros escritos quando assumiram aquele espaço nobre dos impressos.

Mais de 20 anos se passaram e o que tenho é uma pilha de livros ainda a serem escritos. Mas as andanças online permitem caminhos diversos até cavar algum espaço.

Na faculdade, fomos basicamente criados para escrever em jornal lendo seus cânones. Quando chegou nossa vez, os veículos entraram num processo de transição — suas páginas eletrônicas eram, até então, um misto de apostas com depósito de textos que não cabiam na versão impressa.

Os blogs, as grandes novidades da época, eram a nova fronteira. Eram ágeis e não precisavam passar pela gráfica nem atravessar estradas até chegar aos leitores.

Esses espaços ganhavam popularidade sem ter ainda o prestígio das folhas de opinião. E já parecem peças de museu quando penso na velocidade de youtubers e tiktokers para produzir e difundir conteúdo.

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Num antigo blog pessoal, comecei a dar meus pitacos sobre os assuntos que me espantavam, no bom e no mau sentido, entre uma missão e outra do trabalho burocrático de escrever, reportar e editar o que chamamos de "hard news". Falava de filmes, livros e angústias pessoais enquanto cobria, a sério, a agenda de algum candidato a presidente ou governador.

Desse mundo em transição, que o personagem de Danielsen Lie tão bem descreve, percebia que havia me transformado em uma força de trabalho que corre sem chegar exatamente a lugar nenhum — não falo dos bares, que nos recebiam ao fim do expediente, com já faziam os jornalistas dos anos 1950.

A figura do filho que meus pais projetavam colidia com a do pai, recém-parido, que minha companheira e meu filho esperavam. E decidi que não seria aquele cara que chega cansado ao fim do dia em casa para dar um beijo nas crianças quando elas já estivessem dormindo. Os novos papéis sociais exigiam algum equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

E então, em 2014, vim para o interior, onde cuidaria da comunicação de um instituto de cultura, escreveria e divulgaria as programações de cinema, concertos e debates com filósofos, escritores e psicanalistas. Do jornalismo mesmo queria apenas distância.

Mas um dia fui chamado a escrever análises sobre as eleições que estavam prestes a acontecer. Argumentei que estava longe do centro de tudo, e que falar sobre tudo à distância me renderia apenas uma síndrome do impostor a ser tratada no futuro. Só que, no ambiente online, distância é realmente um troço relativo. E a vida no interior tinha me dado algo que não tinha enquanto circulava apenas no circuito Paulista-Augusta: o convívio diário com um pedaço de Brasil que começa no interior e se estende até o Centro-Oeste. É meio agrário, meio urbano, meio arcaico e meio moderno. E já era uma força política cada vez mais organizada, mesmo que tenha demorado a entrar no radar das torres das redações.

Seus habitantes eram o termômetro de mudanças que dali a pouco fariam estragos nos grandes centros. Foi numa quadra de futebol, e não numa redação, que ouvi pela primeira vez expressões como "ideologia de gênero".

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De texto em texto, fui ficando. E pegando mais textos. E escrevendo para mais lugares.

O jornalismo é mesmo um vício.

Em 2017, o jornalista Antoine Morel, então editor do UOL Estilo, me convidou para escrever sobre cotidiano, comportamento e histórias sobre meu filho e perrengues com vizinhos sobre as quais compartilhava, até então, apenas no Facebook, a minha página A2 particular. Foi quando botei (pelo menos tentei botar) para sambar meus microcosmos com os grandes temas. Em casa, num esquema híbrido, típico de um tempo em transição, trabalhava com o que gostava e com o que me pediam, sem precisar ficar longe da família.

Seis anos se passaram. UOL Estilo virou Universa. As contribuições eventuais viraram duas colunas por semana. Migraram para TAB, a editoria dos sonhos para quem gosta de ler e escrever sobre personagens, tendências, fenômenos sociais ainda não devidamente nomeados nem compreendidos. E viraram crônicas diárias, que atravessaram uma eleição presidencial, uma pandemia e mais de um anúncio sobre o fim do mundo.

Esta é a última delas.

Dias atrás, procurei algum registro da cobertura que participei do julgamento do casal Nardoni, em 2010, por um outro portal, e descobri que os links já não existem. O que tenho (não, não fiz prints) é o testemunho de que um dia estive no fórum e acompanhei pessoalmente as cenas registradas em um documentário sobre o caso.

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Sim, eu também cresci em volta de objetos culturais físicos e eles atestavam não só a existência de um mundo exterior, mas a minha própria. Podia me cercar deles, segurar com as mãos, sentir o peso, colecionar. Hoje dão alguma utilidade às duas estantes da sala.

Em razão de uma série de mudanças editoriais do UOL, esta coluna será desativada em breve. E, daqui um tempo, este texto já não estará disponível para consulta. Será um item na memória enquanto tiver alguém para se lembrar. Ou até alguma editora publicá-lo numa coletânea em forma de livro — o registro mais efetivo do que chamamos de trabalho imaterial. Aceito propostas.

Seria melancólico demais refazer as palavras do personagem do filme sobre o que nos tornamos num mundo em que a perspectiva de permanência é transitória.

Prefiro falar da alegria, essa sim palpável, de dividir, se não um espaço em papel, um carrossel com tantos profissionais que já lia quando ainda esperava a carona para a escola. E outros tantos que vieram depois e aprendi a admirar.

Escrever uma coluna diária é um compromisso com o tempo. Pode não parecer, mas pensamos muito antes de definir sobre o que escrever e por quê. A coluna nasce na véspera, no meio de muita leitura, muitas dúvidas e algumas propostas de caminhos.

No UOL, esse exercício sempre foi um desafio e um exercício intelectual: começava com uma ideia e essa ideia era sucedida por debates com os editores sobre o que vale ou não ser dito. Nada aqui é aleatório.

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Deixo aqui um agradecimento especial aos meus editores, ao menos até o fechamento deste post, Olívia Fraga, Juliana Sayuri e Ivan Marsiglia. E a todos os que editaram essa coluna nos últimos anos (Luiza Sahd, Luciana Bugni, no TAB, Adriana Küchler e Vlad Maluf, nos tempos de Universa/UOL Estilo). E, claro, ao Antoine, que me abriu as portas da firma.

Vou sentir falta desses microdebates diários, que começam sempre com uma sugestão de pauta e terminam nas antíteses e sínteses propostas por leitores.

Não é fácil encontrar um ponto de equilíbrio em um mundo onde os espaços fixos já não organizam nossos pensamentos nem as fronteiras do que chamávamos de conhecimento até outro dia. Falo como leitor — como autor, não tenho outra pretensão a não se a de dividir o peso das perguntas.

Diferentemente de dez anos atrás, já não quero me aposentar tão cedo. Escrever é, em muitos aspectos, um vício e uma missão (fica aqui um último clichê para o último texto). E é o que pretendo continuar fazendo. Nem que seja com uma caneta Bic e um papel de pão.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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