Nem antes, nem depois

A foto de março de 2020 anunciava a ameaça da pandemia. A foto de 2021 dá ideia do estrago: 300 mil mortes

Felipe Pereira (texto) e Edson Lopes Jr. (fotos) Do TAB Edson Lopes Jr./UOL

No cemitério da Vila Formosa, fileiras de covas cobertas de grama verde, vizinhas a sepulturas marrons por causa da terra recém-depositada, contam a história da pandemia no Brasil. Na linha do tempo da peste, o ciclo das mortes aceleradas está em curso outra vez.

Em São Paulo, os caixões não chegam mais na individualidade do carro funerário: vêm em grupos numa van. Os enterros são expressos. Os três corpos que estavam na carroceria, durante a reportagem, foram sepultados em 13 minutos.

Ivani Macedo, 65, foi a última pessoa enterrada ali, na terça-feira (23). No final de semana, os médicos disseram que ela devia voltar para casa nesta quarta. "Doença traiçoeira", reclama o irmão, João Batista Macedo, 56. Ela saiu do hospital para o cemitério.

Os funcionários do cemitério da Vila Formosa afirmam que nem todas as pessoas enterradas no local da foto aérea morreram de covid-19, mas reforçam que boa parte delas, sim. A imagem, registrada em março de 2020, foi capa de jornalão norte-americano e passou nas TVs do mundo todo.

Telespectadores e internautas viram coveiros em macacões brancos de plástico grosso, transportando caixões e manuseando pás. A imagem aérea das sepulturas feita semana passada tem quase 300 mil mortes de distância da original.

Na rotina do Vila Formosa, a única coisa que mudou desde março do ano passado é que as roupas estão manchadas pela terra. Com metade do tamanho do Parque do Ibirapuera, o cemitério é a quarta área verde de São Paulo em extensão: tem 763.175 m². A abundância de espaço permite que novas sepulturas sejam abertas constantemente.

O lugar é tão grande que há várias ruas internas, por onde uma dupla pilotava duas miniescavadeiras no final de tarde de segunda-feira (22). Menores que um Fusca, essas máquinas têm um braço hidráulico capaz de arrancar imensos nacos de terra de uma vez só. Covas são abertas em minutos, porque a expectativa é de muita demanda nas próximas semanas.

O prefeito Bruno Covas (PSDB) sempre afirmou que as premissas de sua gestão da pandemia eram não deixar pessoas sem atendimento médico e dar enterro digno a todos os mortos. As filas por vaga em UTI colocaram por terra o primeiro princípio. Para respeitar o segundo, um plano de contingência está em curso.

O departamento funerário contratou 35 funcionários para fazer sepultamentos nos 22 cemitérios municipais. Está em andamento a locação de seis miniescavadeiras com operador e combustível, para agilizar a abertura de sepulturas.

O trabalho de exumação de cadáveres continua no mesmo ritmo, dizem os funcionários. Em covas públicas, a lei permite que depois de três anos a ossada seja retirada para dar lugar a outros. Ela é identificada e vai para um ossário, ficando à disposição da família, que escolhe a destinação. Os coveiros depositam um saco azul ao lado das lápides e começam a cavar. Encontram o caixão quando a terra está acima dos joelhos. O ritual lúgubre também é uma lição de humildade. O terno caro, o sapato de marca e o caixão de madeira de lei não diferenciam ninguém. Tudo vira um emaranhado, a ser descartado na caçamba de entulho.

O finado será lembrado pelo que fez, não pelo que teve. Sem capacidade de mudar sua história, até o ato de ceder o lugar a outra pessoa é involuntário. A retirada da ossada obedece as providências do enfrentamento à crise sanitária.

O esquema emergencial dos próximos dias também contará com oito torres de iluminação para permitir enterros à noite nos cemitérios públicos da cidade. Hoje, o serviço vai até 18h, mas esse limite dá conta de 400 sepultamentos por dia. No último domingo (21), São Paulo bateu seu recorde de enterros: 373. Se a foto aérea foi o símbolo da pandemia nos cemitérios na primeira onda, o esquema emergencial é candidato a se tornar a marca desta.

No Vila Formosa, as famílias fazem fila para enterrar seus mortos. As pessoas param seus carros no espaço entre o muro do cemitério e o começo das covas. Naquele dia eram tantos veículos que parecia estacionamento na avenida Paulista. Mas ninguém briga por vaga.

As vans com os caixões passam lentas entre os carros e manobram para a traseira apontar para as covas recém-abertas. O nome da pessoa a ser enterrada está escrito num papel, pendurado na extremidade do caixão.

Um funcionário do cemitério grita o nome com espalhafato. A família aparece para conferir a papelada e logo o caixão é carregado pelos coveiros para a beira da sepultura. Não há cerimônia, oração coletiva ou discurso. Mãos treinadas pela repetição passam cordas pelas alças do caixão, que logo está no fundo da terra. Um trio de pás cobre o corpo num instante.

A maior parte dos rompantes de sofrimento acontece nesta hora. O filho consola a mãe desesperada que está imóvel. Ela não responde ao abraço e nem nota que o funcionário do cemitério pegou o ramo de flores de sua mão para depositar na lápide.

Percebendo que o enterro está acabando, outro funcionário abre a porta da carroceria da van e grita o nome de outra vítima. "Parentes da Suely Farid Lopes." Tudo é frio e automático. Os enterros seguem como uma linha de produção industrial.

Sylvia dos Santos, 39, atendeu ao chamado e apresentou os documentos referentes a Suely. Vivia uma situação inacreditável: era a segunda semana seguida que ia ao Vila Formosa. Estava prestes a enterrar a mãe, seis dias depois de sepultar a irmã.

Talyta Lopes tinha 36 anos e sofria de paralisia cerebral. Sylvia conta que ela não andava nem falava, mas a capacidade de reconhecer e entender pessoas funcionava à perfeição. Por esse motivo, sabia o quanto era amada pela mãe.

A covid-19 entrou na vida de ambas quase ao mesmo tempo. A primeira a baixar no hospital foi Talyta. A situação se deteriorou rápido e, no dia em que a mãe era internada, a filha morria.

O único consolo da família foi Suely não saber da perda. No mais, a história não tem nada de positivo. A doença foi avassaladora e nem a intubação evitou sua morte. Suely partiu em menos de uma semana, aos 68 anos. Não haverá mais aniversário com esfirra e sonhos, suas especialidades.

A foto aérea de covas esperando corpos lembra o lado animal da existência — na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Mas os cemitérios também mostram que o ser humano é mais que uma combinação de elementos da tabela periódica carregada nas porções de oxigênio, carbono, hidrogênio e nitrogênio.

João Batista e outro irmão estavam juntos quando receberam a notícia da morte de Ivani. Não falaram nada. Nem precisavam. No abraço que trocaram, chorando, estava claro que cada um deles compreendia e partilhava a dor do outro.

A irmã mais velha olhou por eles desde criança e virou matriarca da família depois da morte dos pais. Sua personalidade faz parte do jeito como João Batista educou os filhos, das escolhas que fez ao longo da vida, do que virou. O enterro de Ivani é a despedida de um pedaço de si.

Tão presente quanto as velas e as coroas de flores, o luto está no cotidiano dos cemitérios. Trata-se de reação física e psíquica extremamente particular. Mas só existe luto onde houve amor. Não há remédio que livrará do sofrimento. É a vivência do luto que ameniza a força da ausência. Não significa esquecimento; isto é impossível. Haverá aceitação.

O processo acontece sem prazos e pode durar mais do que a pandemia no país que não parou para fazer um minuto de silêncio aos seus 300 mil mortos. A tragédia é nacional. O luto, individual.

Leia também:

Reinaldo Canato/UOL

CALAMIDADE FINANCEIRA

Na ruína econômica, pai de família dorme no trabalho e mãe aceita risco de o filho virar motoboy

Ler mais
UOL

O SENTIDO DO FIM

Em quase cinco meses, a Covid-19 matou 100 mil brasileiros. Qual o significado dessa perda?

Ler mais
UOL

CÓDIGO DE BARRAS

O drone deu asas ao menino da quebrada, e então ele descobriu o cemitério São Luiz

Ler mais
Topo