'No cinema se faz denúncia'

Aos 75 anos, a cineasta negra Adelia Sampaio conta como ainda é desafiador trabalhar e viver no Brasil

Henrique Santiago Colaboração para o TAB

Adelia Sampaio tenta, há mais de 30 anos, realizar seu segundo filme de ficção. "A Barca das Visitantes" revive a ditadura militar no Brasil, com base nas lembranças de cartas enviadas a presos políticos. Sua ideia era emplacar a obra logo na sequência de "Amor Maldito", de 1984, reconhecido hoje como o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher negra no país. Mas falta dinheiro para tirar o projeto do papel.

Aos 75, a cineasta nascida em Belo Horizonte acumula uma carreira de mais de meio século no cinema e no teatro. Ela cresceu profissionalmente na ebulição do Cinema Novo, ao lado de diretores como Leon Hirzman e Nelson Pereira dos Santos, quando conseguiu largar o emprego de telefonista da distribuidora Difilm para ser roteirista e diretora de produção. Adelia trabalhou em dezenas de filmes até chegar à direção de sua primeira obra, o curta-metragem "Denúncia Vazia", em 1979.

Após aceitar a entrevista com TAB, enviou uma semana antes da conversa uma mensagem ao WhatsApp: "disponibilizei filmes meus no YouTube, beijos". Essa é uma das poucas formas, além dos festivais de cinema e downloads ilegais, de ter acesso à filmografia de Adelia Sampaio. Seus filmes nunca chegaram à mídia física ou ao streaming. "Deve ser porque eu sou preta, né?", diz ela, sobre a amnésia da indústria audiovisual.

Confinada em sua casa no Leblon, no Rio de Janeiro, a cineasta aproveita o tempo de quarentena para escrever o roteiro de três novos trabalhos para o cinema. Em meio à rotina de escreve-apaga-escreve, ela ainda se preocupa com o paradeiro dos negativos de sua obra, possivelmente perdidos em algum lugar da Cinemateca do MAM Rio (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro).

TAB: Como são seus dias de quarentena?
Adelia Sampaio:
Estou escrevendo muito, tenho alguns roteiros encaminhados. Estou muito dedicada à proposta do meu último longa, "A Barca das Visitantes", que eu não sei como será. Com o [apoio de Jair] Bolsonaro eu não vou nem a Caxias, compreendeu? É um filme que fala da repressão, da visita do preso político, é uma coisa séria muito séria que eu vivi com o pai dos meus filhos. Vai mostrar como [o governo] foi violento com aquelas pessoas que não fizeram nenhuma opção ideológica. Elas estavam simplesmente ali para ser solidárias com filho, irmão, tio. Certamente, se eu não durar até lá, meu filho [Vladimir Porfírio, jornalista] garante que vai fazer. Estou deixando um roteiro hiper, hiper decupado. Fazer esse filme é como se eu fosse fechar a tampa da panela. Fazer os curtas de "O Olhar de Dentro", e outros projetos como "Meu nome é Carretel", que é a história de um menino que vive na favela e quer crescer na vida, e vou parar, né. Porque não dá.

TAB: Tem visto filmes?
AS:
Fiz um revival de Woody Allen. Ganhei um box de nove filmes dele. Não gosto do que ele faz hoje, gosto do Woody Allen do passado. Vejo muitos filmes russos, tenho cópias em casa. William Cobbett, marido da minha irmã [Eliana Cobbett], era dono da Tabajara Filmes, uma empresa que importava filmes russos. Acabei tendo acesso. O que me motivou a descobrir o cinema foi ver "Ivan, o terrível". Ali começava a minha vida.

TAB: Até hoje é difícil acessar sua obra, que não está disponível em mídia física e streaming. O que explica isso?
AS:
Eu não sei, mas deve ser porque eu sou preta, né? Mas não estou nem aí também, entendeu? Como são filmes em película, ninguém vai destruir. Essa coisa de digital me dá medo. Não trabalhei para ser a primeira cineasta negra do Brasil. Trabalhei a minha vida inteira para chegar num set de filmagem e dirigir um curta-metragem. Pensei que jamais chegaria como a primeira cineasta negra, e nessa época jamais conseguiria realizar um longa-metragem tão polêmico e tão falado. E nem optei por fazer "Amor Maldito", por achar que seria um filme polêmico. Eu fiz esse filme tomada da revolta com que acompanhei a história. Disse para mim mesma: "Ou eu faço isso ou não tem sentido".

TAB: Você criou um canal no YouTube para publicar seus filmes, entre eles "Amor Maldito". Essa decisão vem para democratizar o acesso à sua obra?

AS: Exatamente, porque quando vou a exibições [de cinema] que fazem ajuntamento de pessoas, as pessoas falam que queriam ter visto o filme antes para poder falar melhor. Agora não tem mais isso, agora pode ver. Se não quiser de novo, não vê, está tudo bem.

TAB: Você foi descoberta e redescoberta no começo da década de 2010. Como estava sua vida profissional naquele momento?
AS:
Fugi para o teatro nessa época. Tive um grande aprendizado e ganhei muito dinheiro [como assistente de direção] com o Miguel Falabella. Ele me convidou para trabalhar com ele, aceitei e foi glorioso. Quando aconteceu, tínhamos feito um acordo que "Império" seria nosso último trabalho. Foi um espetáculo badaladíssimo. Minha filha, Gogoia Sampaio, me ligou e disse para eu falar com uma moça. E liguei para a Edileuza [Penha, pesquisadora de cinema negro] e eu ouvi gritos do outro lado. Fui com ela participar da criação da Mostra Competitiva de Cinema Negro. Ela fez o festival que acontece todo ano. Me pegou de surpresa, eu não sabia. Isso tudo é muito legal para mim, sabe?

TAB: "Amor Maldito" trata do caso real de um julgamento moral de um relacionamento amoroso entre duas mulheres na Justiça brasileira, que deixou em segundo plano o suicídio de uma delas. Há semelhanças do discurso em "defesa da família cristã" com o Brasil de 2020?

AS: Total, meu filho. É Bolsonaro total. Ave, Maria, cruz credo! Esse país, infelizmente, é um país sem memória. Isso está comprovado, e é um país de recuos, não de avanços. Quando se percebe que tem alguém avançando, alguém inventa uma história e acaba. Quanto mais ignorante o povo, melhor para eles [o governo]. Essa onda homofóbica está tomando uma dimensão absolutamente absurda. Recentemente, uma amiga minha, uma atriz de que não vou falar o nome, ajudou uma mulher travesti que foi arrebentada por um cara que foi fazer sexo com ela e broxou. E ele desconta nela, né? Aí vem a homofobia, a violência doméstica, essas duas coisas estão entrelaçadas. É por isso que deixo bem clara e enfática em "Amor Maldito" a violência do pastor com a própria filha. É violento, entende?

TAB: Para que "Amor Maldito" entrasse em cartaz você teve de aceitar que fosse lançado como pornô. Como foi?
AS:
[Após enviar a proposta] A Embrafilme respondeu para mim o seguinte: o governo não vai financiar pornografia. Peguei meu roteiro, meus orçamentos, chamei os atores e conversei com eles: "não sei como vou fazer, mas vou fazer, só não sei quando". Uma amiga me sugeriu um projeto de cooperativa, ou seja, com envolvimento de todas as pessoas, uma conexão da diretora ao menino que varre o chão. Depois que o filme ficou pronto, fui atrás de exibir. Conversei com um distribuidor, ele disse que gostou e ia lançar em três cinemas, mas que teria que "travestir". Estávamos vivendo a era do pornô naquela época e não iria acontecer se não fosse assim. O filme foi lançado e eu pensei que ia ser uma merda: não era pornô, o povo ia jogar pedra. E aí eu fui salva pelo Leon Cakoff [morto em 2011], um crítico de cinema de peso, que dissecou o filme. É proteção cósmica que eu tenho.

TAB: Seu primeiro curta, "Denúncia Vazia", conta também a história real de um casal de idosos que comete suicídio por não ter dinheiro para bancar um apartamento depois de despejo. É um filme que permanece atual?

AS: Mas sem dúvida! Eu nunca tinha ouvido falar nessa tal de denúncia vazia [lei de despejo pelo locatário de um imóvel]. Eu morava na Rua Paissandu, num apartamento muito legal e, de repente, recebi a denúncia vazia. Fui procurar meu advogado e ele disse que não tinha saída. Nessa época, meus filhos eram pequenos. Ele disse que a solução era fazer um acordo. A proprietária não aceitou e fui atrás de um apartamento em Laranjeiras. Chegando lá, era um apartamento de merda, mas eu aceitei. De repente, meu filho [me mostrou um jornal] disse que um casal de velhos se suicidou por causa de uma denúncia vazia. Voei na mão dele, peguei a notícia e falei: "ah, mas eu vou fazer esse filme é hoje!". Eu fiz "Denúncia Vazia" tentando mostrar, sem sensacionalismo, imaginando o que seria um casal de velhos ao ter uma atitude de: primeiro, ver fotos; segundo: tomar um chá; três: dormir para sempre. Se o cinema é para denunciar, é o que eu vou fazer. É uma lei perversa que perdura até hoje, não caiu, não. Está aí presente.

TAB: De que forma você avalia políticos e parte da população saudar torturadores e pedir a volta da ditadura?
AS:
Convivi estreitamente com o Darcy Ribeiro, um antropólogo incrível, não estou acostumada com baixaria, não. É assustador pensar que tem uma mulher de 20 e poucos anos [Sara Giromini, extremista de ultradireita] que descobriu o hospital onde estava aquela menina estuprada e grávida. Quer dizer, o que ela ganhou com isso? Nada. Mas ela é apoiadora do Bolsonaro. É essa filosofia que está assustando um pouco, me dando medo. Sofri diretamente com a ditadura. Conheci meu ex-marido [Pedro Porfírio, jornalista] nessa época. Quando bate 1964 a coisa fica feia, ele estava trabalhando no Correio da Manhã e na Última Hora, chegou em casa e disse: "tenha cuidado, porque está tendo manifestação na Cinelândia". Eu trabalhava na Difilm, na Cinelândia, e no dia seguinte, quando voltava para casa, levei uma borrachada na barriga [de um policial]. Eu estava grávida de sete meses e meu filho nasceu morto. A ditadura me deve isso. Era uma criança, tive que fazer certidão de nascimento e certidão de óbito.

TAB: De que forma o racismo se mostrou na sua carreira?
AS:
Quando comecei no cinema, sabia que queria chegar ao set. Vivenciando o set eu teria aulas teóricas e práticas com várias cineastas. Qual foi a minha sorte? É que 90% da equipe técnica de cinema é negra, nós fazemos parte da "Turma da Pesada". Você vai encontrar uma continuísta branquinha, uma maquiadora branquinha, mas ali a maioria é de negros. Tive dificuldades logo de início, quando fui diretora de produção. No meu segundo filme, "Ibraim do Subúrbio", que era com José Lewgoy, um artista genial, mas uma pessoa insuportável, ele entrou no set, todo mundo tomava café, inclusive eu, e disse: "o que que essa neguinha está fazendo aqui?". Eu levantei e disse: "estou comandando o seu quilombo". Logo pensei que estava demitida, mas ele se assustou. E perguntou: "Quem é essa moça?", ao que eu disse: "Eu sou Adelia Sampaio e sou diretora de produção desse filme. É pegar ou largar!". Sempre fui abusada, minha mãe me ensinou a ser assim. Depois ele se tornou um grande amigo.

TAB: E você sofre com o racismo até hoje?
AS:
Certo dia, dentro de uma loja Renner, acompanhada de uma amiga branca, dei dois passos e o homem [segurança] dava dois passos. Eu parei, ele parou. Quando dei cinco passos e ele parou, dei uma ré, peguei no braço dele e disse: "Vamos passear no bosque". O homem queria morrer. E falei: "Você está me seguindo, vamos passear de braço. Por que você não parou ela que é branca? Você é preto, filho, esse papo de pardo é conversa para boi dormir. Ou você é preto ou você é branco".

[object Object] [object Object]

TAB: Sua obra tem sido descoberta e redescoberta nos últimos anos. Mas houve um intervalo de 34 anos até que uma diretora negra lançasse o segundo longa de ficção no Brasil, "Um dia com Jerusa", de 2018, de Viviane Ferreira. Como você avalia a presença da mulher negra no cinema brasileiro?
AS:
Eu ando muito emocionada. Viviane é uma grande cineasta. Outra grande cineasta é a Yasmin Thayná, que fez "KBELA". Tem várias, mas várias. Recebo muito material, aplaudo mesmo, tem muita gente com talento. Eu as aconselho a não querer fazer o genial, mas o coerente. Na medida em que você é coerente, com certeza terá um acerto.

TAB: São poucas mulheres negras na direção, mas ainda assim o número é maior do que quando você começou?
AS:
Quando eu comecei não tinha ninguém. Era eu comigo mesma, uma luta insana. Caminhei no exercício da minha solidão e sabia que eu estava sozinha.

TAB: Onde estão os originais da sua obra?
AS:
Sumiram. Ninguém sabe, nem viu. Me disseram que estão procurando e eu falei "aham, tá bom". Em algum momento alguém vai encontrar, disso não tenho a menor dúvida. Uma dupla de alunos da UFF (Universidade Federal Fluminense) se propôs a passar quatro dias no MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e vasculhar os arquivos, mas o diretor não deixou. São os negativos dos meus filmes, de som, de imagem e magnéticos, que eram guardados em um laboratório. A empresa fechou, e tudo que estava lá foi entregue à Cinemateca do MAM. O meu caso é pior porque eu perdi tudo.

TAB: Você revelou recentemente planos de lançar o curta "A Arca" e o longa "A Barca das Visitantes". A pandemia interrompeu seu trabalho?
AS:
A pandemia interrompeu tudo. "A Arca" é um discurso sobre o reaquecimento do cinema brasileiro que comprovadamente foi feito por mulheres, a partir de "Carlota Joaquina", de Carla Camurati. Está tudo no papel, na escrita. "A barca das Visitantes", haja o que houver, aconteça o que acontecer, eu vou fazer. Acredito no meu cinema, estou juntando uma grana, quem sabe eu consiga colocar um dinheiro nos meus filmes, né? Se eu consegui realizar em eras difíceis um longa-metragem ["Amor Maldito"] com câmera Arriflex, negativo, um elenco primoroso e em estado de cooperativa, com certeza vou conseguir repetir esse feito.

Leia também:

Divulgação

Ensaio sobre a cegueira

Fernando Meirelles: pandemia é 'titica' frente à crise do clima

Ler mais
Arte/UOL

Brasil no Drive-In

Cacá Diegues fala sobre país dividido entre modernidade e atraso

Ler mais
Arte/UOL

Não verás país nenhum

Ignácio de Loyola Brandão desconversa: 'realidade foi me copiando'

Ler mais
Topo