BARRA PROFUNDA

Elitização ameaça apagar história de bairro industrial que propagou o samba por São Paulo

Rodrigo Bertolotto (texto) e Camila Svenson (fotos) Do TAB, em São Paulo

Bairro. Trilhos. Bairro. Desde seu início, a Barra Funda é cortada ao meio, cada lado com seu jeito. Os dois, porém, estão mudando de forma acelerada. O de cima entrou de vez no circuito gastrocultural da cidade, enquanto o de baixo é alvo do mercado imobiliário, que vê a área horizontal perto do centro como ideal para empilhar unidades para casais com filhos e/ou pets.

A antiga chácara foi povoada no século 19 por imigrantes italianos e negros recém-saídos da escravidão. Hoje, as rodas de pagode, os jogos de seu futebol de várzea e os cortiços remanescentes ainda mostram essa mistura. Um deles, centenário, é vizinho de muro do novíssimo ateliê coletivo chamado Bananal. Um vazamento de botijão de gás, em 2019, o fez pegar fogo e os moradores correram para a calçada — a mesma que recebe cadeiras de praia para servir coquetéis e petiscos para os visitantes do vizinho nos fins de semana.

Coincidência ou não, a 100 metros dali ficava o Largo da Banana, mercado ao lado das estações de trem e berço do samba paulistano. Hoje, só uma placa azul embaixo do viaduto Pacaembu marca o lugar em que a população negra vinda do interior se estabelecia atrás de emprego. Quem chega agora é apelidado de "barrafunders", jovens descolados que buscam aluguéis baratos e uma parte da cidade em um estado bruto que ainda lembra o passado industrial.

"A Barra Funda vai acabar. O que está subindo de torre é uma festa. Os caras ainda querem chamar aqui de Nova Higienópolis. Pode isso?", diz à reportagem do TAB Antonio Pereira da Silva Neto, o Zulu, 74, sambista que viveu a vida toda no bairro e é a voz que dá as notas do Carnaval paulistano.

Os italianos chegaram quando a Barra Funda era só lagoa e mato. "A gente caçava rã pra comer. Só tinha que ter cuidado quando sentisse a correnteza. Aí começava o rio Tietê", recorda-se Querinto Pieroccini, 93. Seu avô veio de Luca, na Toscana, e comprou um sítio na várzea em 1886. Com uma carroça puxada por burros, transportava os grãos e frutas que chegavam nas estações da Sorocabana e da São Paulo Railway e distribuía nas mercearias.

Enquanto Querinto disputava provas de natação de uma ponte à outra no rio, sua família erguia casas para alugar no terreno alagadiço. Os quartos com banheiro coletivo abrigavam napolitanos e calabreses e reservavam os porões para os negros chegados do interior após o fim da escravidão. Como outros oriundi, os Pieroccini têm várias casas e até uma avenida com nome de antepassado. "Italiano não vende terreno: só compra. Mas os herdeiros se desfazem", teoriza Querinto.

"Nasci e cresci em cortiço, belo! Não me acostumo em prédio: não sou passarinho pra viver em poleiro." De boina na cabeça, Roberto Villa, vulgo Bonitão, profissão bicheiro ("Pode colocar aí, não tem problema"), mora hoje em casa própria, mas tem de encarar as típicas enchentes da área. "Uma madrugada fui sair da cama e já pisei naquela água gelada. Perdi tudo. Ainda bem que os amigos me ajudaram."

Muitos italianos que desbravaram a Barra Funda eram carpinteiros e serralheiros que trabalhavam para os barões do café nos casarões vizinhos dos Campos Elíseos. Hoje, o bairro conta com escolas e "labs" que ensinam publicitários estressados a fazer "marcenaria detox". Já os galpões das fábricas (a mais emblemática era a dos Matarazzo) estão dando lugar a ateliês e galerias de arte.

As italianas eram parte do exército de costureirinhas que trabalhavam nos fundos das maisons da rua Barão de Itapetininga e travessas. Atualmente, a função cabe a bolivianos e paraguaios, que moram nas pensões e trabalham em confecções clandestinas ou legalizadas. Mesmo à sombra dos guindastes e sob o pó das demolições, tudo muda para seguir sempre igual.

Antes era o ritmo marcado do samba. Hoje, o que se escuta é o bate-estaca das construções. Saindo para a rua em 1914, o Cordão da Barra Funda foi o primeiro grupo organizado de samba no Carnaval de São Paulo e deu origem à Camisa Verde e Branco. A batida tinha começado no século anterior no Largo da Banana, onde os negros depois do expediente tocavam e dançavam.

"Tinha um cocho onde os cavalos de transporte bebiam. A gente ia lá e soltava uma bombinha. Os bichos saíam a milhão, e era banana para tudo que é lado. Tinha só menino bonzinho ali", brinca Zulu, lembrando da central de abastecimento que funcionou até a década de 1950.

As mesmas ferrovias construídas por mãos escravizadas trouxeram levas de negros das plantações — muitos carregando e descarregando vagões na Barra Funda.

Eles sambavam agachados sob o teto baixo dos porões ou na beira dos trilhos. "Naquela época, a polícia chegava enquadrando com a tal lei da vadiagem. A gente corria pelos trilhos e se perdia entre as linhas para não ir preso", lembra Zulu.

Na década de 1940 veio a primeira onda de especulação imobiliária da Barra Funda, efeito da expansão do Pacaembu. Isso acabou forçando o caminho da população negra em direção à zona norte, povoando bairros como Casa Verde, Limão, Parque Peruche e Brasilândia.

Xará mora no Tremembé, encostado na serra da Cantareira, mas vai ao samba no bar do Zonga duas vezes por semana, onde os músicos da Camisa Verde e Branco se reúnem. Ao lado fica uma pizzaria descolada. Em frente, um arranha-céu alto padrão está para inaugurar.

Os cortiços vão aos poucos desaparecendo do bairro, como os que foram despejados para a ampliação da Casa Mário de Andrade. O escritor modernista (1893-1945), que sintetizou em sua obra a cultura nacional, pouco escreveu sobre o bairro em que viveu metade de sua vida e onde morreu. Em 2022, no centenário da Semana da Arte Moderna, o centro dedicado a ele recebeu verba para ser ampliado, e as famílias que moravam nos sobrados ao lado, que originalmente pertenciam à família de Mário, acabaram despejadas. Algumas voltaram e invadiram o local. A polícia e os tapumes se encarregaram de afastar esses moradores definitivamente dali.

"Vai na perna", grita o técnico-torcedor do time da Vila Nova Cachoeirinha (zona norte) no confronto contra a equipe local do Passou É Rodo. Os rivais se embolam e caem. Começa um empurra-empurra. Osvaldo Barbosa, o Val, juiz do futebol de várzea do Parque da Barra Funda, puxa o cartão amarelo. "O juiz é sempre caseiro, mas não pode ser ladrão. Senão, os visitantes não voltam mais", teoriza Val, que já avisa: visitante folgado sai de lá derrotado. Ele embolsa R$ 50 como pagamento a cada jogo.

A Barra Funda recebe bem os de fora, mas tem que chegar na maciota. O chef Checho Gonzales se deu conta. "Minha inclinação era abrir o restaurante na Mooca, mas lá é muito fechado, o negócio só vira se você tem uma relação com o bairro. Aqui é diferente. Muita gente da Vila Madalena mudou para a Barra Funda e se integrou aqui", conta o boliviano que veio criança para o Brasil com a família — ao contrário da maioria da comunidade, ele não tem nada a ver com a indústria têxtil. O pai trabalhava como cartógrafo.

Outro bem recebido foi Davi Ribeiro, 34, sem-teto que ganhou o apelido de Boraceia, nome da rua em que morava na calçada e onde há um abrigo municipal. Ele virou zelador do parque onde está o campo de futebol. Dorme à noite num colchão ao lado do vestiário.

Às 6h, abre os dois portões; às 22h, fecha. Quando alguns nômades da "cracolândia" atravessaram a passarela, ele fechou um dos portões e ficou de prontidão no outro para que uma das poucas áreas verdes do bairro industrial não fosse invadida.

O gramado agora é sintético, mas antes era um areião. O problema foi que em pouco tempo a areia sumiu — foi parar nas reformas vizinhas. Só sobrou pedra no piso, para terror dos pés dos jogadores. "Jogo aqui saía lasca de tão disputado", lembra José Tenucci, presidente do Classe A, time que uniu italianos e negros e chegou a campeão nacional de futebol amador.

Um pedinte, com uma marmita de alumínio moldada na cabeça, interrompe a história que Vivi contava. Ela abriu sua casa de comida mediterrânea na esquina que já abrigou anos atrás o clube de rock CB e no início do século 20 era o armazém de secos e molhados Casa Belfiore, nome que ainda adorna a fachada. Não é a primeira empreitada de sua família por ali: seu tio Luis Gelpi foi sócio do Radar Tantã, onde se apresentaram como novidades nos anos 1980 atrações como Barão Vermelho e Lulu Santos.

Essa foi a primeira "redescoberta" da Barra Funda e incluía a mítica casa de shows Projeto SP. A segunda onda também foi musical e noturna e aconteceu no final na década de 1990, com baladas como CB, Berlin, Clash e D-Edge. A atual leva é capitaneada por chefs e marchands, e é vista como uma extensão da cena que tomou a Santa Cecília e que atravessou o outro lado do Minhocão, junto com os santa ceciliers, atrás de aluguéis mais baratos.

Bistrôs dos Jardins, Pinheiros ou do Baixo Augusta migraram ou abriram filiais. Lojas conceito, padarias veganas, grifes de estilistas despontam onde havia oficinas, gráficas ou pequenas fábricas.

Ilustra bem essa mudança a história de dois Paulos. O PM aposentado Paulo José da Silva assumiu há 15 anos uma sucata do bairro. "Compro até do pessoal da 'cracolândia'. Só não pego cobre porque a procedência é em geral roubada. Alguns me reconhecem da época que era da cavalaria no centro", conta. Outro Paulo, o chef Paulo Shin, abriu na calçada em frente o restaurante de comida coreana Komah, em 2016.

"A Barra Funda não era nem minha quarta opção. Mas, com o orçamento que eu tinha, conseguia sobreviver um ano enquanto em Pinheiros ficaria um mês. Até morei no restaurante para economizar", relata Shin. Ele ainda dividia o imóvel com as irmãs, que tocavam uma fábrica de calçados femininos. O cheiro do couro se misturava ao da acelga fermentada.

Os pais de Shin migraram para São Paulo em 1976 e montaram uma confecção no Bom Retiro, bairro vizinho que é reduto coreano. "Até hoje, poucos clientes são do bairro. Isso pode mudar com os prédios que estão surgindo, mas também pode descaracterizá-lo. Por ser fora da rota, o restaurante virou o destino final, mas as pessoas se fascinam por esse lugar escondido da cidade."

Na fachada dos novos prédios de alto padrão, as disciplinadas fileiras de palmeiras contrastam com o entorno industrial. Esses novos habitantes da várzea só saem de carro, e dentro de seus condomínios há até feira livre. Resta saber se eles um dia vão cair no samba.

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